Sebastião Salgado é um dos mais consagrados fotógrafos documentais do mundo. Mais do que um artista da imagem, foi — e continua a ser — um artivista humanista com uma lente voltada para as grandes questões sociais, ambientais e humanitárias do nosso tempo. Ao longo de mais de quatro décadas de trabalho, não documentou apenas o mundo: interpretou-o, denunciou injustiças e fez dele um lugar melhor através da fotografia
POR MARIA JOÃO RAMOS

Sou completamente a favor do artivismo — que é como quem diz, utilizar a arte como ferramenta de comunicação para promover causas sociais, políticas, ambientais ou culturais. Sinto que o artivismo é extremamente poderoso. Uma das suas maiores vantagens é a amplitude de públicos que consegue atingir. A arte tem provado, ao longo do tempo, ser um instrumento essencial na mudança de mentalidades.

Outra grande vantagem do artivismo está na enorme diversidade de formas que pode assumir: arte urbana, teatro, cinema, pintura, ilustração, música, literatura, escultura… Já pensaram na quantidade de pessoas que podem ser impactadas por estas expressões? Desde os mais novos aos mais velhos, com os mais variados interesses. Abre-se um mundo de oportunidades — e de coisas bonitas — que se podem criar, com mensagens poderosas a ecoar por todos os cantos.

É disso mesmo que vos quero escrever hoje: de mensagens poderosas. E deixei uma das mais espetaculares formas de artivismo para o fim porque quero falar-vos de fotografia. Ou isto não se chamasse Portal Ver.

“Ver” leva-nos para o olhar, o olhar leva-nos para tudo o que está à nossa volta e que pode constituir uma imagem. E uma imagem, por sua vez, transporta-nos para o imaginário — mas, acima de tudo, para a realidade.

Mas não vos quero falar de fotografia no abstrato. Quero falar-vos de um fotógrafo em particular. O melhor dos nossos tempos. Um artivista, um humanista, um comunicador raro: o Sebastião Salgado.

O Painel Intergovernamental para as alterações climáticas (IPCC) afirma — e bem — que uma das formas mais eficazes de comunicar e envolver as pessoas é falar sobre o mundo real. Contar histórias humanas. Dar exemplos com os quais as pessoas se identifiquem. Muito mais do que mostrar estatísticas e gráficos, é preciso dar nomes às pessoas e às coisas. Criar ferramentas e mecanismos que toquem o coração. Sebastião Salgado foi exímio nesta arte de comunicar. Foi um defensor inabalável de causas sociais e ambientais. Provocou. Informou. Sensibilizou. Envolveu. E, o mais importante: inspirou ação. Levou muitos a tomarem medidas, a refletirem, a mudarem comportamentos. Afinal, não é exatamente isso que a comunicação deve fazer?

Mostrou o bom e o mau, o feio e o belo, os sucessos e as tragédias, sempre emocionantes. Despertou sentimentos de revolta, de empatia, de compaixão. Levou-nos a sentir o peso das nossas escolhas, a encarar a humanidade — e a natureza — nos olhos. Levou-nos a VER. E é justamente por isso que vos quero contar quem é Sebastião Salgado.

Sebastião Salgado é um dos mais consagrados fotógrafos documentais do mundo. Mais do que um artista da imagem, foi — e continua a ser — um artivista humanista com uma lente voltada para as grandes questões sociais, ambientais e humanitárias do nosso tempo. Ao longo de mais de quatro décadas de trabalho, não documentou apenas o mundo: interpretou-o, denunciou injustiças e fez dele um lugar melhor através da fotografia.

Nos anos 70 trocou a economia pela máquina fotográfica e nunca mais voltou atrás. O seu trabalho foi sempre guiado por uma preocupação profunda com os direitos humanos, a dignidade dos mais vulneráveis, as migrações forçadas, a desigualdade económica e a destruição do planeta. A sua câmara tornou-se uma forma de denúncia, mas também de celebração da resistência, da força e da beleza da vida.

São muitos os exemplos que temos dele, como o livro que publicou em 1993 em que documentou a condição humana em contextos extremos. Em “Trabalhadores” (Workers) captou imagens de homens e mulheres em trabalhos pesadíssimos e por vezes quase medievais — como os mineiros de ouro da Serra Pelada, no Brasil. As fotografias desses milhares de homens a escavar um imenso buraco à mão, cobertos de lama e suor, tornaram-se icónicas. São imagens que falam de esforço, desigualdade e exploração, mas também de coragem.

Outra das suas grandes séries foi “Êxodos” (Exodus), de 2000, um retrato poderoso das migrações humanas — forçadas por guerra, pobreza ou perseguição. Fotografou refugiados em África, na ex-Jugoslávia, no Médio Oriente, entre outros. Imagens como a de uma mulher ruandesa com o olhar vazio, a carregar um filho nos braços, tornaram-se símbolo da tragédia do genocídio e da indiferença global. Sebastião Salgado não captava apenas a dor, mas também a dignidade daqueles que lutam para sobreviver.

Mais tarde, após testemunhar tanta destruição e sofrimento, virou a lente para a natureza e o planeta. Nasceu assim o projeto “Génesis” (Genesis), publicado em 2013, uma verdadeira ode visual à Terra em estado puro. Fotografou zonas intocadas do planeta — glaciares, desertos, tribos isoladas, animais selvagens — numa tentativa de mostrar a beleza que ainda resta e a urgência de a proteger. Este trabalho marca uma viragem ecológica no seu percurso, mais tarde reforçada pela criação do Instituto Terra, organização fundada por ele e pela mulher, Lélia Wanick Salgado, para reflorestar a Mata Atlântica no Brasil. O projeto já recuperou milhares de hectares de floresta degradada.

A sua obra é sempre a preto e branco — uma escolha estética que intensifica a força dramática das imagens e retira qualquer distração cromática. O seu uso da luz, da composição e do contraste é profundamente influenciado pela pintura clássica, mas ao serviço de temas de uma brutal atualidade.

Recebeu, entre muitos outros, o Prémio Príncipe das Astúrias das Artes (1998), foi nomeado Embaixador da Boa Vontade da UNICEF, foi Comendador da Ordem das Artes e das Letras em França, e ganhou o Prémio da Paz do Comércio Livreiro Alemão (2019). Em 2021, recebeu o Prémio da Fundação Praemium Imperiale, considerado o “Nobel das Artes”.

Foi também objeto de um documentário tocante, que é imperativo VER, “O Sal da Terra” (2014), realizado por Wim Wenders e pelo seu filho Juliano Ribeiro Salgado. O filme retrata a sua vida, o impacto do seu trabalho e a evolução do seu olhar e é, simplesmente, imperdível.

Sebastião Salgado não é apenas um dos grandes fotógrafos do século XX e XXI. É alguém que colocou a sua arte ao serviço de causas urgentes. As suas imagens são simultaneamente belas e perturbadoras, líricas e cruéis. Mostram o melhor e o pior do mundo, com um olhar que nunca é indiferente. A sua obra é uma ponte entre a arte e o ativismo, entre o olhar e a consciência. Provou que a fotografia pode ser um instrumento de transformação — não apenas porque denuncia, mas porque faz sentir. É isso que o torna verdadeiramente extraordinário.

Foto: © Sebastião Salgado

Consultora de Estratégia e Comunicação para o Desenvolvimento Sustentável

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