No início do século XX, a Rússia passou por uma transformação radical que mudou o curso da sua história e do mundo inteiro. No dia de 1 de maio de 1920, apenas dezoito meses após o Partido Bolchevique liderado por Lenin tomar o poder, milhões de russos participaram num novo tipo de celebração do Dia do Trabalho, conhecido como subbotnik, ou «Sábado Comunista». Este evento simbolizou a tentativa dos bolcheviques em redefinir a sociedade russa, mobilizando a população para o trabalho voluntário em prol da construção de um estado socialista. No entanto, este período também foi marcado por uma série de desafios profundos, incluindo a devastadora guerra civil, a fome, a repressão política e as drásticas políticas económicas que tiveram impacto em milhões de vidas
POR PEDRO COTRIM

No dia 1 de maio de 1920, dezoito meses depois de o Partido Bolchevique de Lenine ter tomado o poder, milhões russos saíram às ruas das suas cidades para participar numa nova forma de Dia do Trabalho que os soviéticos então designaram como «subbotnik» (Sábado Comunista).

Uma professora de Petrogrado conta esta experiência: «Na praça entre o Palácio de Inverno e o Almirantado, tudo parecia uma verdadeira colmeia. Havia realmente um número enorme de trabalhadores, muito mais do que o necessário para o trabalho ser realizado. Envolveu o desmantelamento do portão do Palácio, que havia sido destruído desde a Revolução de 1917 e deixado como estava. Infelizmente, no final de contas, continuava a haver lixo aos montes. Não há dúvida: a desmontagem da cerca, embora incompleta, custou dez vezes mais do que a sua construção».

Os «sábados comunistas» iriam tornar-se regra no país durante décadas. Mas em 1920, trabalhar sem remuneração era comum, pois o dinheiro havia praticamente desaparecido. De facto, havia rublos em circulação, mas tinham perdido 95% do seu valor e dizia-se que a importação (paga a partir da reserva de ouro do Banco da Rússia) da tinta e do papel necessários à sua impressão custava mais do que o seu valor nominal.

Na verdade, era melhor para o governo tornar gratuitos certos serviços públicos, como os correios, o telégrafo e os transportes, em vez de desperdiçar uma fortuna a colocar notas em circulação.

Nas cidades russas não havia quase nada para comer e as pessoas abandonavam-nas para voltarem a tentar sobreviver no campo.

Os bilhetes de racionamento substituíram os rublos. Uma vantagem aos olhos dos aprendizes de feiticeiros que foram os bolcheviques que chegaram ao poder sem preparação: permitiram aplicar a luta de classes na distribuição dos alimentos, de acordo com o lugar de cada pessoa na sociedade.

Foram estabelecidas cinco classes definidas para distribuir a escassez. Os soldados e os trabalhadores das fainas mais duras tinham direito a uma ração de primeira classe, ou seja, meio quilo de pão por dia, meio quilo de açúcar por mês, meio quilo de gordura, quatro quilos de arenque. Os outros recebiam uma ração de segunda classe e assim por diante, até aos burgueses (ou ociosos), que só tinham direito a «pão suficiente para não esquecerem o cheiro», conforme gozou Lev Kamenev, vice-presidente do governo.

Mas, na realidade, nas cidades russas isoladas dos mercados internacionais e mesmo do campo pela guerra civil, não há quase nada para comer e as pessoas abandonavam-nas para voltarem a sobreviver no campo. O ‘desenrascanço’ generalizava-se: não era raro ver trabalhadores a trocarem nas ruas os pregos feitos pelas próprias mãos por outros bens que se tornaram igualmente raros. Assim se sobreviveu na Rússia depois de dois anos de uma guerra civil extraordinariamente violenta.

E Lenine dançou de alegria

Quando em 1918 vários forças contrarrevolucionárias – os exércitos brancos – iniciaram as suas ofensivas a partir do noroeste, do sul e da Sibéria, com o apoio militar, logístico e financeiro da França, do Reino Unido, dos Estados Unidos e até do Japão, a URSS, resultante do golpe de Outubro de 1917, parecia condenada a curto prazo, a tal ponto que Lenine dançou de alegria em cima da neve quando o regime revolucionário ultrapassou os dois meses que durara a Comuna de Paris. Em 1918, a situação deteriorou-se dramaticamente.

Muito rapidamente, o verdadeiro poder dos bolcheviques, que depositaram todas as suas esperanças na eclosão de uma revolução socialista na Alemanha para salvar a sua revolução na Rússia, apenas foi exercido sobre uma parte reduzida do antigo império dos czares, basicamente reduzido ao antigo império original: a Moscóvia.

A Finlândia, os países bálticos, a Polónia e a Ucrânia declararam-se independentes. Os alemães ocuparam grande parte dos territórios ocidentais e da Geórgia. Os britânicos estavam em Murmansk e no Cáucaso, os franceses na Crimeia.

A situação militar parecia desesperada: Petrogrado, a capital da revolução, era defendida apenas por 10 mil Guardas Vermelhos; o regime contava com apenas 300 mil homens para defender uma frente imensa e móvel da qual os soldados, especialmente os de origem rural, desertavam em massa (houve 3,7 milhões de desertores entre 1918 e 1921).

O início foi obra de Leon Trotsky. O presidente do Soviete de Petrogrado, nomeado Comissário do Povo para a Guerra, reconstituiu um exército de 5,5 milhões de homens com medidas enérgicas: regresso do recrutamento (as famílias foram responsabilizadas e tiveram de pagar pelos filhos desertores), restauração da disciplina militar, convocatória de 50 000 ex-oficiais do exército do czar, devidamente vigiados por comissários políticos de confiança – uma falha podia significar uma execução sumária.

Trotsky viajava de uma frente para outra num comboio blindado equipado com um cinema e um tribunal militar, discursando para os soldados nas prisões, persuadindo os desertores a lutar enquanto gozava com os oficiais. A sua presença galvanizou as tropas. Conseguiu também fornecer armas, equipamentos e alimentos, obtendo primazia sobre Lenine, que presidia à comissão de suprimentos.

O Exército Vermelho consumiu metade do vestuário, tabaco e açúcar do país, mas conseguiu repelir as tropas brancas e reconquistar boa parte dos territórios perdidos, incluindo o leste da Ucrânia. A cavalaria chegou mesmo às muralhas de Varsóvia antes de recuar.

À medida que o controlo se afrouxou em 1919, o modelo militar apelou à liderança do Partido Comunista. Em vez de desmobilizar os 5,5 milhões de soldados, Trotsky transformou boa parte deles em «exércitos de trabalho», que poderiam ser mobilizados para onde o regime precisasse de produzir, como nas minas de Donbass, abandonadas pelos mineiros.

Os soldados eram trabalhadores pobres. Lenin encarregou Trotsky de aplicar o seu método ao sector estratégico das ferrovias, onde duas em cada três locomotivas estavam desativadas. Para 1,5 milhões de ferroviários e operários, a greve foi portanto vista como uma traição, e os seus sindicatos integrados na gestão política. Milhares de processos disciplinares tomaram forma.

Contudo, a perspetiva de estender o sistema a toda a indústria causou uma divisão entre os bolcheviques; a «oposição dos trabalhadores», próxima dos sindicatos, protestou veementemente. Lenin, embora favorável às opiniões de Trotsky, decidiu a favor deles, partindo do realismo político: «Se o partido entrar em luta com os sindicatos, será certamente o fim do poder dos sovietes».

Mas o verdadeiro drama estava no campo, onde uma guerra menos conhecida, mas muito real, ocorria praticamente sem ecoar nos ouvidos de quem não combatia. O desastre industrial foi tal – a produção das minas e da indústria representa hoje apenas 21% da de 1913 – que não sobrou nada para comprar. Os camponeses deixaram de querer vender a sua produção às cidades e até a reduziram, limitando o que semeavam.

Os bolcheviques tinham apenas um conhecimento muito vago do campesinato e, para a maioria deles, o campo representava um mundo arcaico por excelência. Não tinham ideia das tradições de solidariedade e resistência das comunidades aldeãs russas e imaginaram resolver o problema através da luta de classes, cobrando dos «comités de camponeses pobres» os excedentes das colheitas aos camponeses médios; e especialmente dos ricos.

Lenine professou não hesitar em aplicar métodos bárbaros para lutar contra a barbárie. Referia-se sobretudo aos camponeses.

Mas mesmo a perspetiva de reter parte das apreensões não motivou os bedniaks. Era necessário criar um «exército de abastecimento» cujos destacamentos, muitas vezes compostos por trabalhadores desempregados, cruzassem o campo. Apesar dos apelos de Lenine à repressão dos kulaques, as requisições renderam apenas dez por cento do esperado.

A partir de 1919, mudou-se de escala: as requisições de cerca de vinte produtos (trigo, manteiga, ovos, batatas, mel, carne, natas, leite, etc.) foram distribuídas por províncias, e distritos, tendo em conta as comunidades aldeãs solidariamente responsáveis. O resultado ainda não chegava, pois a recolha de 1920 apenas cumpriu 34% do objetivo.

Os relatórios da Cheka, a polícia política, que permaneceu secreta até ao colapso do regime comunista em 1991, revelam a extensão da violência exercida sobre os camponeses, como este exemplo relativo à região de Omsk na Sibéria datado de 1922, citado pelo historiador Nicolas Werth:

«Os abusos dos funcionários responsáveis ​​pelos abastecimentos atingiram proporções inimagináveis. Em quase todo o lado, os camponeses presos eram trancados em celeiros gelados, chicoteados e ameaçados de morte. Os que não conseguiram pagar o imposto em espécie foram perseguidos pela aldeia e pisoteados por cavalos. Várias mulheres foram espancadas até ficarem inconscientes; outras foram enterradas nuas na neve e violadas».

Além da recusa das requisições, outras motivações animaram os camponeses: o apego à Igreja Ortodoxa face a um governo ativamente ateu e o antissemitismo virulento combinado com o medo de ver o governo retomar, na forma de sovkhose ou kolkhosen, propriedade da terra, a grande conquista da Revolução de Outubro para a população rural. Os relatórios da Cheka evocam assim o desejo de um uma espécie de poder soviético sem comunistas.

A partir de 1920, o campo estava em estado de insurreição. De uma província para outra, os camponeses levantaram-se em nome do «socialismo real», da «liberdade real» e até do «poder soviético real sem comunistas», à medida que se espalhavam rumores muito negativos sobre Lenine e Trotsky.

Os verdadeiros exércitos reagrupavam-se, totalizando várias dezenas de milhares de insurgentes armados, capazes de ocupar cidades como Tobolsk na Sibéria e manter o terreno durante meses contra o Exército Vermelho, que teve de usar tanques e aviões para os derrotar.

Seguiu-se uma fome tremenda que matou muitos milhões. Esta guerra camponesa forçou a liderança do Partido Comunista a mudar radicalmente de lado ao decretar em 1921 a «Nova Política Económica», permitindo o regresso das trocas comerciais e da atividade produtiva, industrial e agrícola.

A partir de 1925, com a morte de Lenin, os comunistas foram dilacerados pela economia. Uma linha de esquerda, apoiada por Trotsky, exigia uma marcha acelerada em direção à industrialização da URSS, impondo que o campesinato pagasse um tributo, permitindo a acumulação primitiva de capital para a indústria.

Nesta altura, Estaline evitou tomar uma decisão. Porém, uma vez eliminado Leon Trotsky, em 1927-1928 foram postas em prática as ferramentas experimentadas durante a guerra civil: requisições, repressões, fomes. Na Ucrânia, o Holodomor matou 4 milhões de pessoas. Bukharin foi executado após os julgamentos de Moscovo em 1938, Trotsky morreu assassinado por um agente da GPU, sucessora da Cheka, no México em 1940.

A tomada do poder por Estaline deve ser colocada na continuidade da guerra civil e na generalização do exercício da violência política. Não só, como dizem aqueles que caracterizam o regime pela sua estrutura política, porque o partido aprendeu o monopólio do poder e a sua manutenção através da repressão, mas sobretudo porque o Estado, e antes de mais as suas instituições militares, se tornaram nos agentes da acumulação económica.

Tudo isto ilustra um período tumultuado da Rússia pós-revolucionária, onde os bolcheviques, liderados por figuras como Lenin e Trotsky, enfrentaram inúmeros desafios para consolidar o poder e estabilizar o país. Os «sábados comunistas» simbolizam a tentativa do governo em mobilizar a população em torno de uma nova forma de trabalho coletivo, refletindo a difícil realidade económica e social do período. A guerra civil, as requisições forçadas no campo e as políticas de Trotsky para militarizar o trabalho urbano revelam as medidas extremas adotadas para manter o controlo e sustentar a revolução.

Apesar dos esforços e das medidas draconianas, as dificuldades económicas, as insurreições camponesas e a fome devastadora evidenciaram as limitações e falhas das políticas bolcheviques. A introdução da Nova Política Económica em 1921 foi uma tentativa de mitigar estes problemas, permitindo um retorno temporário à economia de mercado e à produção agrícola. No entanto, a morte de Lenine e a subsequente ascensão de Estaline marcaram um retorno às políticas repressivas e coercitivas, culminando em tragédias como o Holodomor na Ucrânia.

Em última análise, o período retratado demonstra de como a Revolução Russa e as suas consequências moldaram profundamente a sociedade e a política soviética. A violência política, a repressão e a luta pelo poder interno tornaram-se características duradouras do regime, influenciando não apenas a estrutura do Estado, mas também o curso da história mundial. A trajetória da Rússia Soviética, desde os subbotniks às purgas estalinistas, reflete uma luta contínua entre idealismo revolucionário e realismo brutal, com impactos duradouros nas vidas de milhões de pessoas

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