POR HELENA OLIVEIRA
O Outono chegou finalmente, com a esperança de deixar para trás a silly season que, habitualmente, caracteriza o Verão. Todavia, e como sabemos, esta season pouco teve de silly, antes pelo contrário. E tanto o Outono, como o Inverno, como o resto das estações afiguram-se “quentes”, não estivesse “o mundo em pedaços” como o caracterizou António Guterres, na abertura da 72ª Assembleia Geral da ONU, a decorrer entre 19 e 25 de Setembro, em simultâneo com um conjunto de eventos que, em comum, têm – ou teriam – como principal objectivo a discussão dos progressos (?) dos Objectivos do Desenvolvimento Sustentável estabelecidos até 2030. Também em modo de debate intenso esteve, esta semana, o Fórum Económico Mundial, na sua cimeira inaugural sobre o impacto do desenvolvimento sustentável.
Ora, e passando em breve revista os acontecimentos que marcaram os últimos meses, razão total tem o actual secretário-geral da ONU ao afirmar que o mundo está em pedaços ou, como afirmam tantos outros, que o planeta está a enviar uma forte mensagem à humanidade face ao piorar do já seu habitual estado de mau comportamento. Por parte deste último, cinco furacões de elevada intensidade, dois terramotos, incêndios generalizados, cheias e desabamentos de terras parecem indiciar que a natureza está mesma zangada; por parte da espécie humana, ameaças de uma 3ª guerra nuclear, com Trump a responder às provocações do líder da Coreia do Norte, com uma ameaça, e na sua estreia na ONU, de “destruição total” do território liderado pelo não menos louco Kim Jong-un; uma “limpeza étnica” da minoria muçulmana que levou 420 mil rohingyas a fugir para o Bangladeche, sob o olhar muito impávido (e sereno?) da líder de Myanmar Aung San Suu Kyi, a Nobel da Paz (?) em 1991; os já “triviais” ataques terroristas perpetrados “aleatoriamente” um pouco por todo o mundo e sempre reivindicados pelo Daesh; os conflitos intermináveis que a comunidade internacional não consegue – ou não quer – resolver; e ainda a publicação de um relatório que alerta que e pela primeira vez em 10 anos, a fome está a aumentar, com 815 milhões de pessoas a sofrer de subnutrição em 2016 (face a 777 milhões em 2015, mas ainda abaixo dos 900 milhões no ano 2000). A razão apontada para este acréscimo? A proliferação dos conflitos e os cada vez mais intensos desastres climáticos.
Posto isto, o que fazem milhares de líderes governamentais, de negócios, de organizações sem fins lucrativos, empreendedores sociais, académicos, especialistas de esferas distintas do conhecimento e mais uns quantos em mais de uma dezena de grandes eventos, cimeiras, assembleias e conferências a terem lugar em simultâneo nestes primeiros dias de Outono? Debatem, debatem e debatem este inequívoco sentimento apocalíptico que é impossível não sentir face ao estado catastrófico em que se encontra o Planeta e a espécie que mais negativamente o afectou em toda a sua longa História.
Tendo como base o bom discurso, em jeito de sumário “de tudo o que está mal no mundo”, proferido por António Guterres na abertura da 72ª Assembleia Geral da ONU e a visão de Klaus Schwab, o fundador e presidente executivo do FEM que afirma que pela primeira vez na história da Humanidade estamos a testemunhar um “colapso generalizados dos sistemas” que sustentam os ideais para um planeta melhor, o VER tenta sistematizar os grandes temas desta rentrée atribulada e partilhar algumas ideias que estão em curso para, mais uma vez, se tentar consertar aquilo que parece não ter conserto.
O perigo dos que demonizam e dividem
Aumento da insegurança, crescimento da desigualdade, disseminação de conflitos e multiplicação de eventos climáticos extremos. É assim que o secretário-geral da ONU elenca as principais catástrofes que estão a abalar a ordem mundial já de si pouco ordenada.
Sublinhando que enquanto a economia global está, finalmente, a compor-se e a afigurar-se como mais “integrada”, a comunidade global está, por seu turno, cada vez mais em processo de desintegração, o mesmo acontecendo com as sociedades a fragmentarem-se e os discursos políticos a polarizarem-se. “A confiança no interior e entre os países está a ser deitada abaixo por aqueles que demonizam e dividem”, sublinhou ainda, sem saber de antemão como seria a estreia acesa, na casa da ONU, demoníaca e com convite a uma divisão ainda maior por parte do presidente dos Estados Unidos.
No seu tom conciliatório, António Guterres recordou ainda a máxima das máximas, em mínimos tão mínimos como os que se colocam hoje, de que essa falta de confiança só poderá ser restaurada se trabalharmos todos em conjunto e, começando por recordar o regresso da ameaça nuclear, fez também lembrar que as ansiedades que rodeiam este perigo se encontram nos níveis mais elevados desde a Guerra Fria. Condenando veementemente os testes provocadores do lançamento de mísseis por parte da Coreia do Norte, Guterres afirmou ainda que este “medo não é abstracto” e que o “grande líder”, em conjunto com os demais membros do Conselho das Nações Unidas, não se pode esquecer do cumprimento obrigatório das resoluções do Conselho de Segurança, o que, e como sabemos, parece não preocupar minimamente Kim Jong-un.
Para fazer frente ao terrorismo, o secretário-geral da ONU anunciou também a sua intenção de vir a convocar, em 2018, e naquela que será a primeira reunião da História sobre este tema, os responsáveis das agências de contraterrorismo, com o intuito de se estabelecer uma nova “Parceria Contra Terrorismo”. Adicionalmente, muito há ainda por fazer para se compreender as raízes da radicalização, incluindo as injustiças reais e os níveis elevados de desemprego e ressentimento que grassam sobretudo entre os mais jovens. E é por isso que convoca – sem deixar de sublinhar o seu dever – os líderes políticos, religiosos e comunitário para se erguerem contra o ódio e servirem de modelo de tolerância.
No que respeita aos conflitos em escala e às violações sistémicas do direito humanitário internacional – com particular enfoque no “tema da actualidade” que tem sido protagonizado pelo escalar de tensões sectaristas no Estado Rakhine de Myanmar e talvez com alguma esperança (infundada, como se veria mais tarde) que o discurso da líder Aung San Suu Kyi viesse trazer alguma dignidade à situação cada vez mais preocupante – Guterres apelou ainda ao cessar das actividades militares das autoridades birmanesas e à garantia de acesso em segurança da ajuda humanitária, a qual que está a ser negada às mais de 400 mil pessoas que se encontram em fuga para o vizinho Bangladeche, depois de verem as suas aldeias destruídas e de estarem a sofrer atrocidades de ordem variada. Os contínuos conflitos sangrentos na Síria, no Iémen, no Sudão do Sul, no Afeganistão e em vários outros locais – e que a comunidade internacional não consegue, de todo, resolver ou amenizar – também tiveram lugar no discurso do secretário-geral, não só no que respeita à urgência de soluções políticas para a sua resolução, como também inter-relacionadas com a erradicação do terrorismo, na medida em que em muito contribuem para o mesmo.
Alterações climáticas e o lado negro da inovação tecnológica
Milhões de pessoas e triliões de activos em risco devido às disrupções climáticas. Introduzido outro desafio global que está a colocar em perigo tanto a espécie humana como o planeta, Guterres relembrou que o número de desastres climáticos quadruplicou desde 1970, e que está mais do que na altura de trilhar um caminho que não seja o das “emissões suicidas”. Com um recado directamente dirigido ao grande “negador” das alterações climáticas – o responsável das Nações Unidas sublinhou – e para quem ainda não quis perceber – “que sabemos hoje o suficiente para podermos agir” e que “a ciência é inatacável”. E apelando, mais uma vez, à acção urgente por parte dos governos para que implementem o Acordo de Paris ainda com maior celeridade e ambição, citou igualmente evidências que as economias poderão crescer mesmo que as emissões sejam reduzidas.
Adicionalmente, e tendo em conta que apesar do comércio global estar em franca expansão e os progressos tecnológicos não pararem de nos surpreender, foi igualmente sublinhado que os ganhos daqui resultantes continuam a não ser partilhados de forma igualitária em todo o mundo – nem pouco mais ou menos – e utilizou o vergonhoso número, que tem sempre impacto nestes discursos, de que oito pessoas possuem metade da riqueza correspondente à que aufere metade da população mundial. A ideia era recordar que a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável tem como objectivo(s) mudar o estado mais do que desigual do mundo.
No elencar de outras ameaças adicionais, a tecnologia e a inovação, que representam o centro do ambicionado progresso partilhado, fizeram também parte do discurso de abertura do secretário-geral, mas com ênfase no seu lado mais negro. Como temos vindo a testemunhar também, as ameaças à cibersegurança estão igualmente a aumentar e uma ciberguerra terá todas as condições (e já mostrou provas disso) para causar a disrupção entre Estados e abalar, de forma violenta, as estruturas e sistemas da vida moderna.
Finalmente e como não podia deixar de ser, António Guterres deixou ainda um recado sobre a “mobilidade humana” – “a qual eu não percepciono como uma ameaça, apesar de muitos o fazerem”, afirmou sarcasticamente – a qual e a seu ver, poderá, se bem gerida, unir o mundo em vez de o dividir.
Com a correcção política que o cargo que ocupa exige, o secretário-geral da ONU frisou que e apesar de cada país ter o direito de proteger as suas fronteiras, essas mesmas acções têm, por seu turno, o dever de proteger os direitos de todos aqueles que se encontram “em movimento”. Assim, é mais do que importante “restabelecer a integridade do regime de protecção aos refugiados e a simples decência da compaixão humana”, ressalvou, acrescentando que com uma verdadeira partilha global de responsabilidade, estes números podem ser geridos.
Como compromisso inerente ao cargo que ocupa há ainda menos de um ano, Guterres reafirmou a sua vontade de reformar as Nações Unidas através da construção de um “sistema de desenvolvimento” que ajude os Estados a melhorar a vida dos seus cidadãos, reforçando a capacidade para salvaguardar a paz, a segurança e os direitos humanos e que ajude a abraçar práticas de gestão que façam avançar esses objectivos, em vez de os inibir. “Estamos aqui para servir”, concluiu, mas com muitos dos discursos que se seguiram a porem em dúvida as suas boas intenções.
Guerra ‘pós-moderna” coloca sociedade global em risco de colapso
Tendo em conta a Assembleia Geral das Nações Unidas e recordando o título do Relatório da mesma organização a propósito dos 17 Objectivos do Desenvolvimento Sustentável [ODS] (e de mais de uma centena de metas) – “O mundo que queremos” – o Fórum Económico Mundial marcou, para a mesma altura, a sua primeira cimeira inteiramente dedicada ao impacto suposto destes mesmos Objectivos. Se também no FEM são muitos os líderes que ali chegam para debater os problemas que afligem ao mundo, a verdade é que, e pelo menos, deste tipo de reuniões saem também e sempre iniciativas concretas – e passíveis de ser avaliadas – que visam dar uma ajuda, e neste caso em particular, a concretizar algumas das “promessas” feitas pela Organização das Nações Unidas, as quais muitas vezes mais não passam de meras boas intenções.
De qualquer das formas, e tendo em conta a Quarta Revolução Industrial que, em 2016, deu o mote à habitual reunião de líderes mundiais em Davos, esta Sustainable Development Impact Summit inaugural pretendeu acompanhar a agenda da ONU, mas lançar também várias novas iniciativas que visam obter resultados concretos na consecução de pelo menos algumas das metas previstas para a Agenda 2030 dos ODS.
Como refere o presidente do FEM, esta cimeira consiste numa plataforma que junta líderes políticos, empresariais e outros para a proposta de soluções inovadoras – em termos de colaborações público-privadas – e utilizando as oportunidades tecnológicas da Quarta Revolução industrial – para uma agregação de vontades e acções que visem atingir os objectivos globais propostos.
E a visão do estado do mundo partilhada por Klaus Schwab serve, neste caso, como um bom complemento aos problemas elencados pelo discurso claro, mas sempre demasiado idealista, do secretário-geral da ONU (seja ele António Guterres ou qualquer outro).
O que Schwab começa por sublinhar no seu discurso – e que também não é propriamente uma novidade – é que o principal problema que nos afecta enquanto espécie humana é termos de lidar não só com uma multitude de questões diferentes e em “concorrência”, mas também com um conjunto de desafios intimamente interligados e interdependentes entre si. Como sublinha, “enquanto os Objectivos Globais são encorajados para serem vistos como uma ‘tapeçaria’ de soluções que devem ser encontradas até 2030”, na verdade o mais profundo desafio que a humanidade enfrenta é evitar um colapso geral dos sistemas que são exactamente os mesmos que sustentam estes mesmos Objectivos Globais.
“No passado, as ameaças convencionais à humanidade, como as guerras, a fome, as pragas ou os desastres naturais, eram relativamente localizados”, diz. Mas agora, acrescenta, “a nossa existência humana global está a ser posta em causa por pressões inter-relacionadas e aceleradas que afectam os sistemas institucionais, financeiros, ambientais – globais – e que constituem a base da sobrevivência humana e da harmonia social”.
Schwab dá como exemplos “simples” deste colapso de sistemas a incapacidade que temos de assegurar a inclusão e de preservar os nossos recursos naturais. E, muito provavelmente, avança, este é o primeiro colapso de sistemas que a humanidade enquanto um todo está a provocar contra si própria – uma ‘guerra’ pós-moderna na qual a nossa sociedade global está em vias de colapsar, à medida que vamos destruindo esses mesmos sistemas dos quais dependemos.
Adicionalmente, e quando as pessoas sentem que os sistemas dos quais dependem estão a ser profundamente ameaçados, a reacção é a de uma desintegração societal – também referida por António Guterres – caracterizada por uma polarização politica perigosamente crescente.
Todavia, acrescenta, se por um lado “podemos ser a primeira geração a ser confrontada com uma ruptura global dos nossos sistemas, por outro somos também a primeira geração a possuir os meios tecnológicos e científicos – “mesmo na ausência de um momentum politico”, sublinha – para colocar um travão neste processo de espiral descendente que, se nada for feito, se tornará rapidamente irreversível.
Tal como também alertou o secretário-geral da ONU, parece mais do que claro que os governos, as empresas e a sociedade civil não têm condições de, sozinhos, enfrentarem esta ameaça de colapso global. E é por isso que mais do que palavras ou actos isolados, é necessário estabelecer uma agenda (outra?) para a cooperação público-privada, com o objectivo não de defender interesses individuais, mas para manter em mente o destino da humanidade enquanto um todo. E se os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável fornecem uma estrutura útil para não perdermos de vista as múltiplas necessidades do planeta, não podem, contudo, ser encarados apenas através de uma lente que foca 17 questões distintas e não relacionadas.
Ou, e em suma, os desejos naturais para se lidar com os diferentes desafios que integram os objectivos globais, com base nos interesses particulares de diferentes governos e organizações, têm, de acordo com o presidente executivo do FEM, de ser reforçados e complementados por uma abordagem de liderança “baseada em sistemas”. Se é verdade que todas as questões exigem respostas individualizadas, não é possível esquecer, no entanto, que as mesmas fazem parte de um ecossistema que só funcionará se tiver respostas holísticas.
Existe apenas um “pequeno” problema nas abordagens de Guterres e de Schwab: nem estando à beira de um precipício, nem com catástrofes jamais vistas, nem com o regresso de fantasmas que há muito pareciam estar enterrados, os líderes mundiais parecem perder o seu autismo. E quando não se quer, não se faz. Para mal de todos nós.
Editora Executiva