A educação tem estado na berlinda e tem sido a notícia dos telejornais. Há greves, há multidões de professores a descer as ruas, há contestação e dissonância. No VER, pelo seu carácter semanal e pela impossibilidade de estar em campo constantemente a avaliar o que se passa, optou-se por se falar com um professor. Não costuma fazer greve, mas desta vez está também na luta. Recebeu-nos em sua casa numa tarde de invernia. O ambiente de uma sala lindamente decorada e pejada de estantes de livros foi o pano de fundo para esta conversa em que o professor Henrique, de 53 anos, nos mostrou o que vive quem vive quem, no fundo, está a causar este estado de coisas
POR PEDRO COTRIM
O que é ser professor? Como é que se quer ser professor?
No meu caso, foi um propósito pessoal desde muito cedo. Sou filho único e sempre brinquei muito sozinho. Habituei-me, tive uma infância muito feliz, brincava muito com a minha imaginação, concebia histórias e lia muitíssimo. Aprendi bastante e fui, desde muito cedo, um aluno exemplar. Deu-se a circunstância de ter 6 primos direitos mais novos, 3 de um irmão do meu pai e 3 de um irmão da minha mãe. E nos anos oitenta havia muitas greves. Eu, como estava no secundário, tratei muito da educação escolar dos meus primos que estavam no ciclo preparatório ou na primária. Via o que fazia, percebia o que fazia, gostava do que fazia. Lá para os 14 anos, deixei de ter dúvidas sobre o que queria ser.
No seu caso, foi absolutamente uma coincidência. Ou não será uma coincidência e o Henrique seria professor, com ou sem primos mais novos para ensinar?
Eu sou existencialista, a banda sonora da minha vida talvez se resuma bem ao Road to Nowhere, do David Byrne. Atribuo muita responsabilidade ao livre arbítrio sem entrar em histórias de julgamentos ou de karmas. Creio que a necessidade surge do perigo, da vocação e da paixão e de outras somas da vida. Tive esta circunstância e foi isto que procurei. Se não fosse professor, imagino-me com crianças, porque já não concebo um dia-a-dia sem elas. Educador, pediatra, animador… é um atrevimento pensar assim, mas pronto, aqui tem. Ou, alternativamente, e permito-me a imodéstia, autor de histórias para crianças. Sempre na tal estrada que não vai para lado algum.
Então ser professor, mais que gostar de leccionar, é mesmo uma vocação de crianças. Pelo que de si conheço, acredito que a paixão pelo saber também ocupa lugar.
(risos) Sim, no meu caso sim. Olhe, peço-lhe que não ponha o que disse antes na entrevista. Ou antes, e porque estou a coberto do anonimato, deixe ficar assim, pois a coisa é autêntica.
Custa-me que não queira ser identificado, mas, por outro lado, tenho ideia de que um testemunho sem rosto poderá ser mais revelador. Assim sendo, preparo-me para escavar. Dá licença?
Sim! Vamos lá às profundezas.
Sei que está do lado da contestação. Como é fazer greve para quem, como o Henrique, tanto preza, tanto ama a educação? O que se sente quando se falta assim aos alunos?
É um drama. Imagino o desalento dos miúdos perante quem prometeu pô-los acima de tudo e fico triste por fazer greve. Uma vez que a entrevista é anónima, alongo-me. Deploro o comportamento de revanche ou de celebração que vejo em alguns colegas e outros profissionais da educação. Muitos estão nas lides do ensino por lhes ser mais cómodo ou por não terem outra via.
Um dos grandes problemas. Quem vai parar à profissão por não ter alternativa…
Olhe que não é bem assim. Como em tudo, há bons e maus. Digo-lhe que há professores por acaso que são excelentes e que há professores por vocação que têm péssimo desempenho. Essa não cola e é precisamente o que eu ia acrescentar a seguir. Quem começa a desempenhar uma tarefa, muitas vezes acaba por ser bom no que faz e a apreciar a sua faina. Claro que é mais provável que quem tenha um… «chamamento» seja mais capaz, mas quantas vezes uma pretensão não dá com os burrinhos na água…
Sim, o raciocínio é bem válido. Corre muitas vezes a opinião contrária, infelizmente. Também é verdade, em tempos de escolha reduzida, uma profissão é um orgulho. Os vieses da vida poem-nos os fatos à medida, quase.
É isso! E repare, em não querendo ser moralista nem sentencioso, quantas profissões não são lindamente desempenhadas pelas pessoas que acabamos por conhecer como «o padeiro», «a senhora da fruta», «o mecânico» e outros. Vivemos numa época em que às pessoas caem os parentes na lama se se virem a desempenhar uma função ao público. Creio que qualquer trabalho é um trabalho digno!
Eu teria muito a acrescentar e o maior gosto em continuar neste rumo, mas temo que, por tempo e extensão, tenhamos de voltar aos professores…
Claro que temos. E também há professores que se recusam, por exemplo, a endireitar uma cadeira caída no chão. Muitas vezes somos os primeiros a entrar na sala e os miúdos saíram a correr há dez minutos para o intervalo. É difícil que a sala esteja imaculada. Na minha opinião, o colega que entra na sala e, ao chegarem os miúdos, ordena com voz de trovão que endireitem a cadeira por onde acabou de passar, faz uma triste figura. As pessoas têm medo de perder a dignidade por coisas que lhes trazem dignidade, e estão dispostos a perdê-la em circunstâncias que lhes fazem mesmo perigar o carácter.
Por causa de um certo sainete em ser professor.
Claro que há! Quem não gosta do tratamento? Aqui no bairro, onde me conhecem, tratam-me por «professor Henrique». Aceito o tratamento por me rever, mas não me escandaliza nada que me tratem por «Henrique» ou por «senhor [apelido]». Por «senhor Henrique» é que não, mas aí pode ser o meu preconceito a falar… Tenho colegas que se ofendem se não forem tratados na rua por «senhor professor» pelas pessoas que sabem o que eles fazem. Outros que quando se apresentam pela primeira vez num sítio, mencionam logo a circunstância para facilitar o «professor». Não tenho pachorra.
Portugal é um dos países em que se vive, há muito, de aparências. Mas nós, no fundo, somos aparências. Lembro-me do Erving Goffman e do seu Representação…
Um texto fundamental e que seria do programa de Filosofia, fosse minha a decisão. Em tudo, somo actores. No meio desta greve, quem não concorda com ela, faz por concordar. Quem concorda, faz por acentuar o carácter. Há códigos em tudo e há mensagem em tudo. Contudo, e desta vez, ouso afirmar que os professores estão mais unidos que nunca.
Quer explicar o que se passa, então. Muita gente ainda não percebeu.
Há muitos sindicatos. Muitas vezes há discórdia, mas desta vez agregámo-nos todos em volta do denominador mais comum: a precariedade. Que é real, que não se pense que andamos por aí a barafustar de barriga cheia e que ganhamos mil e muitos euros por mês. Há casos dramáticos.
Quer exemplificar?
Olhe, um dos meus colegas tem 32 anos e é daqui de Lisboa. Deu aulas na Guarda durante três anos. Foi lá colocado e não teve opção. A mulher trabalha a partir de casa, por isso mudaram-se. Sucede que a mulher tem uma doença auto-imune e que sofre grandemente com o frio. A Guarda até no Verão é fria, como sabe. Um Inverno lá em cima é duríssimo e durante seis meses está um gelo na rua que não se aguenta. Ora a mulher pouco podia sair de casa, porque aqueles graus negativos batidos a vento não a deixavam. As ruas da cidade são desertas no Inverno porque não se consegue estar muito tempo na rua a não ser com roupa polar. Resultado: uma tremenda depressão que lhe causou um burnout. Tem 30 anos e tão depressa não vai poder trabalhar novamente. Estão agora em Lisboa, com este custo de vida, e com apenas um ordenado de 1400 euros, porque ela tem ordenado zero. Com tratamentos necessários e acompanhamento psiquiátrico, imagina o que sobra…
Um caso trágico. Mas a mobilidade, a ida para outras terras,
Vem, mas para isso, se um professor que fique colocado longe da área de residência, que o vínculo passe então a ser maior. Eventualmente o tempo de serviço, como sucede, por exemplo, nas forças armadas. Eu dei aulas em Leiria durante cinco anos e bem me custou. Só via a minha mulher e os meus filhos aos fins-de-semana. No fim de contas, é como uma comissão militar.
É por tudo isso que se luta? Ou, conforme opinião corrente, os professores são um meio de esquerda, sobretudo, e estão habituados ao ambiente de contestação?
Os professores são, efectivamente, um meio de esquerda. Não gosto de falar em termos numéricos, mas digo-lhe que, na minha percepção, diria que talvez 50% serão muito de esquerda, uns 30% ao centro e os restantes á direita. Genericamente e de acordo com o que observo. É um facto de que a classe média intelectualizada tende a ser de esquerda. É uma massa crítica importante em qualquer país. Não pode haver apenas cargos de política e administração e trabalhadores indiferenciados. Este meio de advogados, engenheiros, médicos, professores e outros trabalhadores qualificados pelo trabalho intelectual é um dos grandes recursos de qualquer país. Se a política falhar, quem irá defender os restantes? Não queremos uma nova revolução bolchevique, já vimos o resultado. Não podem ser apenas os lavradores a liderar os destinos do país, e afirmo-o sem qualquer preconceito.
Então esta greve não é de esquerda. É mesmo pelo reconhecimento. E, pelo que me diz, pela democracia.
Com efeito! É mesmo o que diz. E não digo que os professores sejam os pilares da democracia, mas há uma pergunta que gosto de fazer: no meu horário, tenho mais de 30 horas com os alunos. Há algum pai ou mãe que esteja tanto tempo com eles durante a semana? Mesmo ao fim-de-semana, a catadupa diária apenas se aligeira um pouco. Diz-se que nós, professores, não temos responsabilidades na educação, que só nos compete ensinar. Quem diz um tal disparate terá noção do que profere?
Cada cabeça, sua sentença. Às vezes não nos pomos na pele dos outros…
O mundo gira à volta do nosso quarto. O centro do universo está em todo o lado. Se assim não fosse, seria bonita a bulha. Bulha que não falta na educação. Repare que no país inteiro há alguns milhares de estabelecimentos de ensino afecto ao Ministério da Educação. Cada um é uma unidade, dos alunos aos professores, aos auxiliares educativos, ao pessoal das refeições, etc. Cada um é uma unidade que tem de funcionar exemplarmente. As crianças têm de comer, as instalações têm de ser limpas e tudo tem de estar perfeitamente afinado. Por exemplo, no Ministério da Saúde não há tantas unidades absolutamente autónomas. Há os grandes hospitais, mas nos centros de saúde a logística não implica, por exemplo, serviços e alimentação. E são muito mais pequenos que qualquer escola.
Sabe-se que é, talvez, a pasta mais complicada. O que podemos esperar então que resulte destas acções?
Dignidade, retribuição e progressão na carreira. Anos de serviço bem contados, actualização de tabelas salariais e uma reforma que não signifique uma vida em aflição. No fim de contas, tudo elementos por direito de uma sociedade justa. Há possibilidade de o fazer. A pasta, como diz, é a mais complicada. O ministro tem de ser absolutamente capaz e os assessores têm de ser absolutamente capazes. Não é uma questão de números. Os únicos que nos interessam realmente são os dos indicadores do bom aproveitamento escolar. E os que nos permitem proporcionar aos alunos esse bom aproveitamento escolar.
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