A educação inclusiva para crianças com necessidades especiais está finalmente na agenda mundial, mas há uma consciência generalizada de que não chega debater o tema: é urgente agir e garantir uma educação gratuita e de qualidade para todos, como conclui um relatório do Secretariado Internacional da CGE. Em Portugal, esta questão foi discutida na Semana de Acção Global pela Educação, e resultou num manifesto dirigido à Assembleia da República
Compreender a deficiência é dar um passo significativo para a igualdade, a qual “obriga” ao acolhimento de todas as pessoas como cidadãos plenos de direitos. O “modelo social da deficiência”, criado pelo Consórcio Internacional para o Desenvolvimento e a Deficiência (IDDC), reconhece que as pessoas com necessidades especiais são “detentoras de direitos”, que podem e devem “determinar o rumo das suas vidas, na mesma medida que qualquer outro membro da sociedade”, considerando que as limitações impostas pelo ambiente social e físico são autênticas “violações” desses direitos. Todavia, esta igualdade só existe na teoria e os números não deixam margem para dúvidas: estima-se que cerca de 93 milhões de crianças, uma em cada 20, com 14 anos ou menos, vivam com algum tipo de necessidades especial, moderada ou grave, e que é nos países de baixo e médio rendimento que estas crianças estão mais propensas a ficar excluídas da escola. Os números e conclusões estão presentes no Relatório intitulado “Os mesmos direitos, as mesmas oportunidades”, elaborado pelo Secretariado Internacional da Campanha Global pela Educação (CGE), que apresenta os dados actuais sobre as barreiras que as crianças com deficiência enfrentam constantemente na educação, as quais acabam por se traduzir numa vida adulta com menos direitos. O documento em causa explora igualmente o que pode ser feito pelos decisores políticos, apresentando sete estratégias de actuação que visam reduzir essas barreiras e garantir uma educação para todos. Foi com base nestes dados que a “Educação Inclusiva para Crianças com Necessidades Especiais” surgiu em 2014 como tema por excelência da Semana de Acção Global pela Educação, promovida anualmente pela CGE. A iniciativa decorreu entre os dias 4 e 10 de Maio, simultaneamente em mais de 100 países, “com o intuito de mobilizar a sociedade civil para exigir aos governos e à comunidade internacional que cumpram os objectivos fixados em 2000 para a Educação para todos”. Em Portugal, as ideias discutidas na iniciativa deram origem a um Manifesto (ver caixa) dirigido à Assembleia da República, com propostas concretas para que os governantes transformem esse direito numa realidade. Segundo o relatório da CGE, a inclusão de crianças com necessidades especiais nas escolas regulares promove a realização do ensino primário universal e contribui para o fim da discriminação. Este facto leva ao surgimento de oportunidades significativas de aprendizagem, também para os restantes jovens, sendo igualmente muito desafiante para os professores, na medida em que lhes exige uma grande motivação na criação de estratégias que se adaptem a diversos alunos, com os mais variados estilos e ritmos de aprendizagem. A educação inclusiva pode ser também um elemento transformador para a sociedade, tornando-a mais justa, na medida em que contribui para que estas “minorias” sejam mais facilmente aceites pela maioria. Facilita, ainda, o acesso a uma educação de qualidade para crianças com deficiência, contribuindo para o desenvolvimento do seu potencial e das comunidades onde se inserem. No entanto, esta inclusão consiste ainda numa miragem em muitos países, nos quais os sistemas educativos apresentam uma qualidade bastante duvidosa ou, pior ainda, não impementam quaisquer soluções para que estas crianças tenham acesso à alfabetização, prejudicando o desenvolvimento de outras capacidades, como a criatividade e a capacidade de análise – como concluiu o Relatório Mundial sobre a Deficiência, em 2011, ao qual recorreram os signatários do documento em análise.
A pobreza é uma consequência A África do Sul é o país onde a taxa de frequência escolar de crianças com deficiência é maior. É, no entanto, a Índia a nação que, embora não apresente uma das mais altas taxas de frequência escolar, manifesta menores discrepâncias entre os dois grupos (com e sem necessidades especiais). De mãos dadas com a exclusão por deficiência vêm outras formas de marginalização, como o género. O relatório conclui que as raparigas com deficiência têm menos hipóteses de frequentar a escola que os rapazes em situação semelhante, em países como o Maláui, por exemplo. Esta realidade leva a taxas de alfabetização muito reduzidas em idade adulta, sendo as mulheres com deficiência o grupo mais débil e vulnerável. Combater a marginalização a este nível é, por isso, fundamental. No entanto, o fosso entre quem frequenta a escola e quem não tem essa possibilidade está mais acentuado, de ano para ano, o que leva a uma discrepância crescente entre a maioria e as chamadas “minorias esquecidas”. A pobreza surge como uma das mais graves consequências da discriminação por deficiência, tendo em conta que os jovens de ontem e adultos de hoje, por não terem tido acesso a alfabetização, têm menos probabilidades de trabalhar, tornando-se inactivos do ponto de vista económico e não tendo hipótese de gerar riqueza nos países onde vivem. O documento faz referência ao Relatório de Monitorização da Educação para Todos de 2010, que deixa claro que a marginalização continua a ser uma preocupação periférica, mesmo estando o seu combate previsto na Acção de Dakar, sobre a Educação para Todos, e nos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM), que defendem o acesso igualitário à educação básica. Há, inclusivamente, uma “crítica” a estes últimos, e uma consciência generalizada de que não vão ser cumpridos, tendo em conta que neles não há referência aos milhões de cidadãos que vivem com deficiência (apesar de serem os que menos contribuem para o desenvolvimento económico dos Estados, originando níveis mais elevados de pobreza, como referido). Por este motivo, o relatório sublinha que, no âmbito do chamado “quadro de desenvolvimento pós-2015”, que está a ser trabalhado, esta situação irá ser corrigida, incluindo-se a deficiência nas estratégias a adoptar. A força do artigo 24 No entanto, este princípio só se transformou em direito em 2006, aquando da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com deficiência (CDPD). Em 2013, foram 133 os países que ratificaram a CDPD e ficaram obrigados, por força do seu artigo 24, a garantir a igualdade de acesso a um “sistema de educação inclusivo a todos os níveis”, de qualidade e gratuito para todas as crianças, “sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades”. Há, no entanto, quem confunda três conceitos distintos: educação segregada, educação integrada e educação inclusiva. A realidade mais comum, global e historicamente, é aquela em que as crianças com deficiência têm acompanhamento em escolas separadas, preparadas especificamente para determinadas necessidades especiais: esta é a educação segregada ou “especial”. As vantagens deste tipo de ensino estão relacionadas com o facto de estas crianças terem acompanhamento de profissionais especializados nas suas dificuldades, mas tem a desvantagem de não mitigar a discriminação, visto que se pressupõe o isolamento destes alunos. A educação integrada prevê que os alunos com necessidades especiais estudem em escolas regulares, mas sejam agrupados em turmas formadas por outros alunos com as mesmas necessidades. São alunos que, tal como na educação segregada, têm acompanhamento de professores especiais, em salas de aula separadas, sendo, por isso, limitada a sua integração. A educação inclusiva pressupõe que cada aluno seja tratado como um titular de direitos, independentemente de ser ou não portador de deficiência, promovendo a mudança dos sistemas educativos, e da sociedade em geral. Ao colocar os grupos marginalizados em contacto directo com a maioria, a inclusão obriga à “remoção” de barreiras culturais e políticas e à aceitação da diversidade. Para a UNESCO, a educação inclusiva é um processo que consiste em “lidar com a diversidade e responder às necessidades de todos os alunos, através do aumento da participação na aprendizagem, culturas e comunidades, reduzindo a exclusão dentro da educação e a exclusão da educação”. Implica, por isso, a existência de “alterações e modificações no conteúdo, abordagens, estruturas e estratégias, (…) e uma convicção de que é da responsabilidade do sistema regular educar todas as crianças”.
É urgente agir Derrubar as barreiras da exclusão é um dos grandes objectivos expressos no documento da Campanha Global pela Educação. Para isso, a organização sugere a implementação, pelos governos nacionais, de sete estratégias, previstas em “Os mesmos direitos, as mesmas oportunidades”, todas elas baseadas em modelos de educação inclusiva “testados e provados”. Estas estratégias de acção são dirigidas a países com médios e baixos rendimentos, mas é importante (ou até fundamental) que os mesmos sejam apoiados por doadores bilaterais e pela comunidade internacional, já que estes lhes “oferecem” assistência, apoio jurídico, segurança e outros tipos de ajuda. Projectando as estratégias propostas no futuro…, o relatório conclui, desta forma, que “a maré está a começar a mudar”. A deficiência começa a ser vista como motivo de exclusão social, e a educação inclusiva começa a ser entendida como uma “opção política credível” com impacto suficiente para estar no topo das preocupações dos Estados, a nível mundial. No entanto, discutir esta questão não é suficiente. É preciso, segundo o documento que serviu de base a um manifesto político em Portugal, “que se avance mais depressa e com maior urgência, para a acção”.
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Jornalista