Quando a Covid assentou arraiais, houve preocupações legítimas com a economia e surgiram memes como o da imagem. Somos dados a extremismos, mesmo os cidadãos mais pacatos, e, seriamente, nem o mais brando dos seres deixará de ter o seu calcanhar de Aquiles no que toca a uma qualquer embirraçãozinha particular. O humor, ou a falta dele, que nestes dias se alia às redes socias, faz o resto
POR PEDRO COTRIM
A Covid já era, pelo menos na sua versão mais mortífera. Regressamos às preocupações sobre a verdadeira pestilência, aquela que se prepara para matar os nossos filhos ainda não nascidos: a modificação do clima da Terra.
Mas, para os nossos filhos não nascidos poderem nascer, terá de haver economia, senão não haverá condições. Há uma questão de equilíbrio muito delicada e as fundamentais decisões são fundamentais. Ninguém quer acudir a uma árvore a arder com um dilúvio que encharque a Terra inteira.
Passemos então ao «economês» da salvação da Terra; ou então para a linguagem do lucro e da perda perante a catástrofe iminente: a questão climática é realmente audível pelas finanças. Os avisos de Mark Carney ajudaram a formular a estratégia actual da economia verde: por um lado, a promoção da transparência sobre a exposição aos riscos climáticos; por outro, pelo desenvolvimento do mercado de títulos verdes, definindo com exactidão este «verde». É necessário incentivar os mercados financeiros a integrar os riscos climáticos na valorização dos títulos, direccionando os investimentos para a transição energética.
O facto de os títulos verdes terem taxas de juros mais atractivas do que os outros pode ser um incentivo para investir na transição energética. Mas, novamente, a maioria dos economistas duvida que seja suficiente. «Direccionar investimentos para projectos verdes é um objectivo louvável, mas tem de haver projectos verdes em número suficiente», alerta Stefano Battiston, professor da Universidade de Zurique. Afinal, «não se pode pedir ao sistema financeiro que faça o que os Estados não fazem», observa. As finanças podem ajudar a canalizar fundos, mas a chave para a transição energética está nas políticas energéticas, nos preços e nos limites da energia renovável. Cabe aos governos enviar os sinais certos, mostrando os benefícios, incluindo os económicos, de uma trajectória de crescimento assente no baixo carbono».
Ouse-se: a emergência climática é também uma emergência financeira. Os fluxos de investimento devem ser massivamente redireccionados para que o «business as usual» seja efectivamente a transição para uma economia de baixo carbono. Tendo ignorado esta responsabilidade durante muito tempo, o mundo das finanças percebeu que as alterações climáticas o afectam de forma mais directa que o esperado.
Há ainda outra questão que salta aos olhos nesta COP27 que se realiza por estes dias em Sharm El-Sheikh. Resumidamente, que o combate às alterações climáticas é uma história escrita pela metade; até agora, foi contada pelas economias grandes e poderosas: teremos de ouvir os outros narradores para a conhecer melhor.
A mudança para um mundo de baixas emissões de carbono vai ganhando momentum. O número de países e empresas que se afirmam comprometidas em fazer a transição das suas actividades para alcançar as emissões zero aumentou drasticamente. De facto, 90% do PIB à escala global está neste momento abrangido por estes compromissos.
Mas não é suficiente. Projecta-se que as políticas e as acções do mundo real resultem num aquecimento global real de 2,7 graus Celsius. No entanto, o objetivo do Acordo de Paris de 2015 foi limitar os aumentos de temperatura a longo prazo a um valor consideravelmente abaixo dos de 2 graus: estipulou-se o valor de 1,5 graus Celsius. Acrescente-se que quem vive nas economias emergentes irá sofrer mais e sentir-se mais incapaz de se proteger. Em muitas instâncias, a sua capacidade de antecipação, preparação e resposta a distúrbios relacionados com as mudanças climáticas já está no limite.
O nível de preparação para o clima nas economias emergentes é muito variável, mas de forma geral é muito baixo. Muitas destas economias estão actualmente mais dependentes dos combustíveis fósseis do que as desenvolvidas; significa isto que na corrida para atingir as emissões zero, a pista não está nivelada.
Se quisermos alcançar uma transição justa para uma economia de baixo carbono, mais eficiente em termos de recursos e socialmente mais inclusiva, governos e empresas precisam de tomar mais medidas para cumprir os seus compromissos: não apenas de construir uma economia verde, mas também de pôr as pessoas e os seus direitos bem no centro de tudo. Deverão ajudar a garantir que as pessoas mais afectadas pelas mudanças climáticas estão equipadas para se protegerem.
Aplica-se o mesmo aos investidores privados. Muitos reconhecem-no e perguntam de que forma se podem combinar iniciativas económicas que se afastam da geração de carbono enquanto se criam oportunidades para funcionários, trabalhadores e comunidades locais?
A resposta é multipartida: os investidores devem comprometer-se com as estratégias de adaptação ao clima, que o Pacto de Glasgow define como «ajudar os que já sofrem com os impactos das alterações climáticas», e não apenas reduzir as emissões. Devem igualmente trabalhar para melhorar os produtos financeiros e as condições dos seguros concebidos para pessoas em risco e medir o seu impacto através do retorno da comunidade: não se atingirá o valor zero até meados do século sem milhares de biliões de dólares em finanças privadas; um investimento que ainda não foi posto em marcha.
Estima-se que os países desenvolvidos dediquem anualmente 100 mil milhões de dólares ao financiamento climático para apoiar os países em desenvolvimento, mas para implantar tais fundos de forma eficaz, os investidores precisam de mais exemplos reais de investimentos que impulsionem uma transição justa e a justiça climática de forma mais abrangente.
Os custos da adaptação climática anual podem chegar aos 300 mil milhões de dólares em economias emergentes em 2030 e, à primeira vista, os investimentos da COP26 parecem muito práticos e exequíveis. No entanto, os dados mais recentes sugerem que o apoio financeiro em todos os países permanecem muito mais baixos para a adaptação do que para a mitigação. É essencial um aumento das actividades de adaptação, incluindo a preparação dos grupos mais afectados pelas mudanças climáticas. A inovação é uma componente muito importante deste sucesso.
Uma dificuldade fundamental com o risco de transição decorre da sua natureza em grande parte endógena. A questão dos riscos financeiros climáticos está condicionada pelas decisões de governos e empresas em manter uma trajectória pouco activa, em total oposição ao Acordo de Paris, ou de embarcar uma política activa de mitigação dos riscos climáticos. À partida podemos até dizer que o Acordo de Paris já era e que terá de haver um novo e derradeiro. Terá de contemplar estratégias inovadoras de adaptação ao clima que se podem expressar de várias formas, inclusivamente pelo desenvolvimento de culturas mais resilientes e de novos sistemas de irrigação.
O ramo dos seguros será fundamental para a subsistência de muitos pequenos agricultores, pois as colheitas ou os animais por eles tratados são a sua única fonte de rendimento. O trabalho nesta área pode ajudar na construção de uma estrutura de sustentabilidade e com consequências em todas as classes de activos. As estratégias de adaptação climática podem ser realmente um pilar da maioria das ofertas de financiamento climático.
O objetivo das autoridades que lidam com a estabilidade financeira terá de ser a organização dos fluxos financeiros para o verde e integrar estes novos riscos a fim de evitar uma crise financeira sistémica, o que poderia atrasar drasticamente a transição.
Há uma ligação directa entre a questão das finanças climáticas e a reorientação do financiamento que não pode ser evitada. Por um lado, a integração destes riscos pode permitir um reajustamento relativo dos fluxos financeiros para actividades compatíveis com os objectivos climáticos; contudo, enquanto o poder público não puser verdadeiramente em marcha esta transição, o risco sistémico associado ao fluxo de activos encalhados aumenta. E, no fim de contas, o que queremos sempre, e no momento presente, é salvar, pelo menos para já, a nossa pele. E a este raciocínio ninguém escapa.
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