Estamos a viver uma era de transição económica que irá afectar não só os indivíduos, mas toda a estratégia empresarial. Quem o afirma é o canadiano John Dalla Costa, especialista em ética e desenvolvimento sustentável. Em entrevista ao VER, Dalla Costa oferece a sua visão sobre a actual crise de legitimidade, mais perversa ainda que o declínio da confiança, e que para ser restaurada exige, no mínimo, duas atitudes: a responsabilização dos que estão no poder e um respeito prioritário e inclusivo por aqueles que mais vulneráveis ficaram por causa da crise
POR HELENA OLIVEIRA
John Dalla Costa é o fundador do Centre for Ethical Orientation, uma consultora canadiana, sedeada em Toronto, que trabalha com empresas, com o sector público e com grupos não-governamentais com o objectivo de estimular a excelência ética nas suas operações e resultados. Dalla Costa esteve em Lisboa, a convite da APAN – Associação Portuguesa de Anunciantes –, numa conferência que debateu o desenvolvimento sustentável e a comunicação. Em entrevista ao VER, o especialista em ética empresarial argumenta que, face à crise estrutural que estamos a viver, a economia se encontra numa fase de transição – já apelidada de “pós-consumidor” – e que as empresas devem partilhar os custos sofridos pelos indivíduos nesta era de austeridade. Mais ainda, Dalla Costa alerta para algo mais problemático do que uma mera crise de confiança: “estamos a viver uma crise de legitimidade”, afirma, acrescentando que muitas das instituições “construtoras dos princípios morais” também sofreram as suas próprias crises, com uma consequente perda de credibilidade, deixando os indivíduos sem referências.
Opinião pública e sustentabilidade: dado o perfil das empresas portuguesas no que respeita à forma como comunicam as suas práticas de sustentabilidade, quais são, a seu ver, os principais desafios e oportunidades destas?
Provavelmente, o mais difícil desafio enfrentado pelos profissionais de marketing é o de compreenderem de que forma a experiência e as expectativas dos cidadãos se alteraram desde 2008. Em recessões ou crises financeiras anteriores, a prioridade residia em manter os negócios enquanto se esperava por melhores condições de retoma e crescimento. Muitos especialistas encaram a instabilidade actual como estrutural, o que significa que esta irá persistir por muito mais tempo e terá efeitos profundos na forma como as pessoas escolhem os produtos e serviços, pagam as suas dívidas e constroem a sua poupança para o futuro. Alguns começaram já a apelidar esta realidade como a “a economia pós-consumidor”. As pessoas continuarão a precisar de muitos bens e a procurarem, tal como no passado, variedade, qualidade e valor. Mas os que os especialistas estão a sugerir é que o consumo será apenas um meio, e não um fim, para a satisfação humana.
A sustentabilidade, no geral, significava, até agora, manter o status quo. Nesta nova realidade, a sustentabilidade irá exigir comportamentos de restrição e de responsabilidade, a par de um abandono de gratificações de curto prazo em troca do bem comum de longo prazo para a comunidade, sociedade e ecologia.
Que características são mais visíveis nesta “nova economia” anunciada?
Os economistas já começaram a mapear aquilo a que apelidam de “economia de crescimento lento” ou “economia de não crescimento”. O que se reveste em um desafio muito desencorajador para as empresas, dado que as suas avaliações básicas de sucesso sempre envolveram o crescimento nas vendas para aumentar os lucros. Assim, não existem dúvidas de que esta transição exige muitas mudanças difíceis, a começar pela questão da governance, mas afectando também a estratégia, os incentivos da gestão, o estilo de marketing, a própria marca e a formação dos recursos humanos. Todavia, penso que temos de nos recordar que esta economia de não crescimento irá exigir que façamos crescer agressivamente as nossas competências e atributos, que aumentemos a nossa capacidade de diminuir o desperdício e as emissões de carbono, apostando na cooperação de forma a que as empresas e as indústrias encontrem formas de suportar conjuntamente os custos desta mudança complexa. Por outro lado, para desencadearem novas oportunidades, será necessário aumentar a sua responsabilidade para que os esforços nos negócios sejam ainda mais transparentes e justos e para que a colaboração crescente global possa finalmente alcançar os necessários acordos tais como aqueles evitados pelos governos mundiais em Copenhaga em 2010.
Não é um paradoxo o facto de ser necessário aumentar as eficiências das restrições para ir ao encontro dos limites impostos pela sustentabilidade.
E que tipo de respostas deverão as empresas eleger para ir ao encontro de práticas sustentáveis neste clima de transição?
Na medida em que estamos perante uma mudança estrutural, a nossa resposta empresarial à sustentabilidade terá de ser, em primeiro lugar, sistemática. Ao nível da governance, conselhos de administração e directores terão de encarar os aspectos da performance ambiental e social como factores críticos para as suas operações e sucesso financeiro. A maioria das empresas possui comités de auditoria para avaliar a precisão dos seus relatórios financeiros. Assim, estruturas de diligências similares terão de ser criadas para que os conselhos de administração passem a especificar os objectivos e a avaliar os progressos no que respeita aos parâmetros da sustentabilidade.
A seu ver, como tem evoluído a percepção da sustentabilidade por parte das empresas?
Na maioria das empresas, a sustentabilidade foi evoluindo como uma disciplina particular, mas integrada nos departamentos de marketing ou de comunicação. A mudança, tal como eu a vejo, é fazer da sustentabilidade matéria intrínseca à estratégia e indivisível desta. Esta transformação não poderá ser motivada ou sustentada simplesmente como um exercício de gestão da reputação. Ao invés, terá de ser “embutida” ao nível da cultura, influenciando consequentemente todas as decisões tomadas no interior da organização – tudo, desde o design de produtos, à engenharia e fabrico, ao marketing, vendas, utilização e pós-utilização. Em última análise, a sustentabilidade é tanto uma competência como um compromisso: uma forma de encarar o negócio intimamente relacionado com o seu contexto ambiental e social, e aceitar a responsabilidade do que resulta desta interdependência.
Enquanto especialista em desenvolvimento sustentável, com vários livros publicados, quais são as principais alterações passíveis de serem identificadas no que respeita à ética e à sustentabilidade?
Ao longo dos últimos 20 anos, socorremo-nos sempre do argumento de que a ética nos negócios é um bom negócio. Eu continuo a acreditar nisso e existem centenas de estudos que comprovam a correlação positiva entre uma forte orientação ética e um negócio de sucesso a longo prazo. Os atributos da gestão ética são fundamentalmente os mesmos da boa gestão: fornecer valor honesto; motivar as pessoas com integridade; construir relações de confiança com os fornecedores, reguladores, clientes e demais stakeholders; tratar os empregados com justiça; e viver de acordo com as normas morais vigentes na comunidade alargada.
E o problema não reside na validação destes dados, mas sim na sua muito estreita e limitada aplicação. Apesar de a maioria das organizações ter agora implementado um qualquer tipo de código [de ética], as pesquisas demonstram que a vasta maioria das empresas trata a ética como uma simples questão de conformidade. O que nos leva a três problemas por excelência. Em primeiro lugar, a questão da conformidade aspira a um mínimo. E tal como estamos a assistir nesta era de crise financeira global, a atenção mínima à justiça ou à honestidade não é suficiente para colmatar o fosso de suspeição que se abriu entre o público e as suas instituições. Em segundo, a conformidade envolve a adesão a regras que foram estabelecidas em experiências anteriores, as quais – e mais uma vez devido à nossa experiência actual – estão completamente desadequadas para os desafios sociais e ecológicos da actualidade, sem precedentes, originados por esta crise. Em terceiro e último lugar, a conformidade envolve apenas um – e eu diria que não é o mais importante – aspecto da nossa capacidade ética humana. Todos os sistemas morais incluem uma dinâmica de conformidade (de que são exemplo as injunções “Não faças” do decálogo hebreu ou os Dez Mandamentos)
E que dinâmica de conformidade é possível ambicionar para uma responsabilidade verdadeiramente ética?
O cumprimento da responsabilidade ética envolve, de forma crucial, aspirar a esses ideais que são indispensáveis à dignidade, direitos e capacidades humanos. O capital social, que consiste na confiança construída e partilhada no interior da sociedade, não pode ser gerado simplesmente pela adesão a regras ou leis. A confiança cresce a partir de uma mutualidade muito mais aprofundada, do respeito pelos direitos dos outros que apenas podem ser seguros e protegidos através do abraçar da responsabilidade. As empresas têm sido, no geral, bastante boas em questões de ética quando esta é boa para os seus resultados. O ponto de transição necessário passa pelo exercício de uma ética mais madura que assuma e cumpra a responsabilidade mesmo quando existe um custo para a performance ou para os lucros. Mais uma vez, não estou a sugerir que as empresas se tornem não lucrativas. Ao invés, acredito que os sacrifícios e restrições que estão a ser impostos à sociedade, e aos indivíduos, devem ser partilhados pelas empresas enquanto membros interdependentes da nossa comunidade humana.
Actualmente, quais são então as competências necessárias para se atingir um crescimento sustentável da comunicação responsável?
A mais importante competência no marketing ou na comunicação da responsabilidade social hoje em dia é o diálogo. Os profissionais de marketing e os publicitários tiveram sempre de ser ouvintes eficazes para que conseguissem ser comunicadores igualmente eficazes, mas este “escutar” tem sido sempre “só de um lado”. Normalmente, os focus groups procuravam apreender as atitudes e necessidades dos consumidores, com o objectivo de produzir estratégias de vendas mais eficazes. O que não é um diálogo. Temos de ser honestos e reconhecer que essa aprendizagem tem muitas vezes como premissa o oposto ao diálogo. Os académicos possuem várias definições para diálogo mas, para mim, a sua mais importante qualidade reside no facto do diálogo despoletar uma transformação mútua. No diálogo, ambas as partes, enquanto iguais, partilham ideias e pontos de vista, sem tentar convencer o outro, mas sim desenvolvendo entre si uma nova clareza que teria sido impossível sem essa troca. E, como sempre acontece, quando aprendemos algo, somos mudados por isso.
O que não acontecia com o discurso “unilateral”…
Na verdade, esse conhecimento constituía “uma ética sem identidade”, pois representava um tipo de poder no qual a percepção poderia ser, de forma muito fácil, utilizada contra a pessoa que a forneceu. Os profissionais de marketing falam muitas vezes em tentar converter os não utilizadores mas, no diálogo, a conversão feita a partir da compreensão provem dos dois lados.
Acredito que as pessoas que trabalham na publicidade e no marketing têm já ao seu dispor recursos latentes, mediante inúmeras formas, para levarem a cabo este projecto abrangente de diálogo social. Obviamente que tal não significa que acabemos com o processo de venda, mas sim reconhecer que a venda em si mesma deixou de ser suficiente para construir culturas corporativas com integridade e para erguer relacionamentos de cooperação profunda com os stakeholders.
Identifica três grandes tendências responsáveis pela destruição da confiança nas organizações. Pode especificá-las?
A confiança não é uma dinâmica singular. Os psicólogos que traçaram o desenvolvimento moral dos indivíduos dizem-nos que existem três grandes estágios de crescimento ético, sendo que estes correspondem ao que eu denomino como os “três graus da confiança”.
Na sua forma mais básica, a confiança é prática. Porque confiamos que o autocarro irá chegar de acordo com o seu horário, sabemos que conseguimos chegar a horas ao trabalho ou à escola. A confiança prática é importante enquanto medida de fiabilidade. Os académicos da ética nos negócios sugerem que a maior parte das empresas opera a este nível prático. Estas cumprem os seus compromissos porque existe uma vantagem reputacional para o fazer e evitam a má conduta para não serem punidas por custos criminais ou para não danificarem a sua imagem corporativa.
O segundo grau de confiança tem como base a reciprocidade. À medida que vamos amadurecendo enquanto seres humanos, reconhecemos normalmente que os nossos mais básicos e preciosos direitos humanos dependem de um conjunto de obrigações correspondentes. Na sociedade, somos livres em conjunto, desde que sejamos também conjuntamente responsáveis. Uma pequena minoria de empresas opera de acordo com este compromisso de reciprocidade. E estas são as organizações que encaram a responsabilidade social não como um anexo à sua forma comum de fazer negócios, mas como um atributo definidor das suas operações, planos e estratégias.
O terceiro grau de confiança é baseado no princípio moral. Por vezes, ao longo da vida, ou em momentos específicos da história, a reciprocidade, por si só, não é suficiente para atingir o bem público. Alguns indivíduos ou grupos poderão ter de sacrificar mais do que a sua quota-parte para desfazer injustiças ou enfrentar ameaças à sociedade enquanto um todo. Estes momentos de sacrifício, na perseguição do princípio moral, são geralmente aqueles que definem os nossos termos de integridade e que criam uma “moeda” moral para a comunidade e sociedade.
E as empresas não distinguem ainda estes diferentes graus de confiança?
É muito importante perceber estes graus diferenciados de confiança. A maioria dos executivos e das empresas reconhecem que cometem erros, que prejudicam a reputação da organização e que diminuem a confiança por parte dos clientes e dos demais stakeholders. Todavia, muitas falham em responder com o nível de cuidado adequado porque não compreendem, na totalidade, o seu nível de fracasso.
Por exemplo, eu trabalhei num banco canadiano de grandes dimensões que alterou os seus programas de serviço ao cliente. Depois de colocar as suas operações de call centers em regime de outsourcing, o banco começou a receber numerosas queixas que conduziram à perda de muitos clientes. E, apesar de muitos esforços repetidos para melhorar o serviço ao cliente, o laço não foi restabelecido. Ao longo de um ano, o banco tentou melhorar os aspectos técnicos do serviço que parecia estar a ter um impacto negativo nos clientes. E, na verdade, as pesquisas revelaram que os clientes estavam de facto a operar com um grau muito mais elevado de insatisfação do que aquele reconhecido pelo próprio banco.
A questão não era a inconveniência – apesar de, aparentemente, ser este o problema – mas sim um sentimento de “traição”. Os clientes não se sentiam seguros ou, pior ainda, sentiam-se em risco quando se apercebiam que não podiam falar com alguém que lhes fosse familiar numa situação ou momento de necessidade. A empresa estava a oferecer remédios práticos para uma falha moral e de reciprocidade, e não resolveu o problema, nem começou a reconstruir a sua reputação, até ter reconhecido com uma sensibilidade maior a vulnerabilidade sentida pelos seus clientes.
Afirma que “não temos uma crise de confiança, mas antes uma crise de legitimidade”. O que significa, na prática, esta distinção?
Inquéritos globais comprovam um declínio contínuo na confiança pública no que respeita às empresas e às instituições governamentais ao longo da última década. Este é um fenómeno complexo, mas que não tem apenas aspectos negativos. O facto de sermos muito mais informados, de tecnologias como a da Internet terem possibilitado uma maior transparência e de todos nós termos absorvido tanto marketing e tanta publicidade, significa que estamos certos em sermos um pouco mais desconfiados no que respeita a factos apresentados como verdades. Mas a ausência de confiança transforma-se num verdadeiro problema quando a suspeição é tão forte que esmaga as nossas capacidades para chegar a um consenso. E, nesses casos, como parece estar a acontecer agora, tornamo-nos mais rigidamente agarrados aos nossos pontos de vista, evitamos aprender e tendemos a pintar aqueles que têm visões alternativas à nossa como delinquentes ou vilãos.
Tivemos, ao longo da História, várias crises financeiras e vários escândalos éticos nos negócios. Mas e geralmente, existiam outros recursos no interior da sociedade – como a Igreja, os tribunais, profissionais publicamente empenhados ou académicos especialistas – que poderiam oferecer pontos de referência morais para reconstruir a confiança. Na sociedade actual, muitas dessas instituições “construtoras da moral” sofreram as suas próprias crises e uma perda de credibilidade. Ora, quando a construção pública da confiança já não oferece segurança, então estamos perante uma crise de legitimidade. Quem fala sobre o bem comum? Quem tem autoridade para nos ensinar a colocar as perguntas correctas? Quem tem os valores necessários para nos orientar no caminho para novas soluções?
Mas existem formas para restaurar essa confiança perdida e evitar a crise da legitimidade?
Estamos a começar a aprender como restaurar a legitimidade enquanto fundamento para a restauração da confiança. O que já sabemos é que a autoridade na actualidade precisa de ser muito mais participativa do que exercida “de cima para baixo”. Basta pensar nos media sociais, onde a ordem e a organização ocorrem em comunidade e por emergência, e não por decreto. E não é que toda a gente deseje ser um líder, mas sim o facto de as pessoas desejarem e esperarem ser vistas e ouvidas nos processos utilizados pelos líderes quando formulam soluções para os problemas. O movimento Occupy Wall Street, que é agora global, consiste numa resposta à ilegitimidade de serem os líderes políticos e de negócios, que foram os responsáveis pela crise, a impor as soluções austeras. A legitimidade exige, pelo menos, duas coisas: a responsabilização dos que estão no poder e um respeito prioritário e inclusivo por aqueles que mais vulneráveis ficaram por causa da crise.
E como se recupera então a legitimidade necessária?
Recuperar e recriar a legitimidade nos negócios é simultaneamente assustador e estimulante. Na raiz, precisaremos de reimaginar o papel da empresa na sociedade. E, no centro desse papel, talvez como responsabilidade prioritária, teremos de ser sérios, consistentes e verdadeiros para oferecer uma sustentabilidade autêntica. |