Foi assim que Thilo Sarrazin baptizou o seu novo livro que, uma semana depois de ser lançado, já fez correr muita tinta. Polémico por natureza, o antigo membro do conselho de administração do Bundesbank elegeu como tese subliminar da sua nova obra o argumento de que a Alemanha só se esforça para salvar o euro porque continua a sofrer um enorme complexo de culpa devido ao seu passado nazi. Nacionalista, chauvinista, reaccionário e desprezivelmente calculista são apenas alguns dos epítetos lançados a Sarrazin, mas há quem o admire por ter a coragem de colocar questões difíceis com respostas ainda mais complexas
POR HELENA OLIVEIRA

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Não é fácil adjectivar o ex-membro do Bundesbank e actualmente autor de best-sellers, cada um mais polémico do que o outro. Há quem o denomine de “pregador do ódio”, “Hitler ressuscitado” ou “um independente capaz de quebrar os mais complexos tabus”. Depois de ter causado uma enorme controvérsia com o livro “Deutschland schafft sich ab”, que pode ser traduzido como “A Alemanha que se anula a si mesma” e no qual argumentava que os imigrantes provenientes de África e do Médio Oriente estava a destruir o seu país, em parte devido a “factores hereditários” que tornavam as crianças estúpidas e violentas, Thilo Sarrazin foi convidado a sair do banco central da Alemanha, onde ocupou funções no conselho de administração do mesmo. Todavia, o livro vendeu 1,3 milhões de cópias, o que não deixa de ser um sinal positivo para o especialista em finanças despedido, mas muito preocupante quando se fala num racismo latente na sociedade alemã, apesar de todos os esforços para assim não parecer.

Mas e desta feita, a controvérsia instalada e, para muitos, cuidadosamente arquitectada como um excelente golpe publicitário, é o argumento expresso no livro lançado a 22 de Maio último – na mesma semana em que os ministros das finanças da zona euro se reuniram numa conference call para discutir o plano de contingência de uma possível saída do euro por parte da Grécia – com o título “A Europa não precisa do euro”. E o alvoroço que causou quando defendeu “os imigrantes muçulmanos de estarem a entorpecer a Alemanha”, teve agora a sua sequela, mesmo antes da publicação do livro em causa, depois de Sarrazin ter sugerido, numa palestra, que os esforços da Alemanha para salvar o euro tinham como base a culpa do país relativamente ao seu passado nazi.

Todavia e para os que estavam à espera que o provocador em série, como Sarrazin pode ser considerado, especialmente com as suas ideias de superioridade étnica e educacional, escrevesse pelo menos alguma coisa horrenda e ofensiva sobre os gregos e sua incapacidade para lidar com as contas, ele não o faz. Mas e como seria de esperar, o livro ateou fogo. O VER foi à procura de argumentos prós e contra sobre os argumentos de um alemão que considera que o seu país está a ajudar os demais incumpridores por ter uma dívida de 67 anos com a Europa e que se chama Holocausto.

“A Alemanha não precisa do euro”
Sarrazin argumenta que o euro trouxe à Alemanha demasiados riscos financeiros, sem benefícios suficientes, acrescentando que o comércio com os países fora da zona euro está a crescer mais depressa do que aquele que é feito com os membros da zona em questão. E, apesar de esta visão ser até partilhada por muitos e respeitáveis eurocépticos alemães, a passagem que provocou a mais violenta das críticas, começa por afirmar que os alemães defensores dos eurobonds estão a ser “impulsionados pelo reflexo, muito próprio dos alemães, de que só é possível uma expiação final no que respeita ao Holocausto e à segunda guerra mundial quando colocarmos todos os nossos interesses e dinheiro nas mãos dos europeus”. E, como não poderia deixar de ser, (quase) todos os políticos se insurgiram e condenaram a ligação proposta entre o Holocausto e a crise do euro.

Sarrazin clama também, no seu livro, que o processo de integração da Europa não passa de uma “pura ideologia”, a qual deriva do facto de a Alemanha ter iniciado a segunda Grande Guerra e que deu origem ao facto de a “Alemanha se ter tornado refém de todos aqueles que podem precisar da sua ajuda na zona euro”. Mais ainda, Sarrazin defende também que a decisão de Berlim, em Maio de 2010, de fornecer ajuda financeira à Grécia e que a conduziu ao seu resgate foi uma “justiça transvestida, pois entrou em contradição com os termos segundo os quais o governo persuadiu os eleitores a aceitarem o euro: “lançou o modelo alemão de uma união monetária para o maior caixote do lixo da história”.

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Por outro lado, Sarrazin não deixou passar a oportunidade de citar a (já) famosa frase de Angela Merkel – “se o euro falha, a Europa falha”, afirmando que a chanceler tem sido extremamente bem-sucedida com esta fórmula de discurso e que este livro pode funcionar como uma resposta à senhora Merkel, na medida em que, a seu ver, a Alemanha possui uma economia com base nas exportações e que, por isso mesmo, não precisa do euro.

Para o editor da revista norte-americana The Atlantic e, ao contrário do que a generalidade dos críticos tem vindo a acentuar, as linhas do livro que promovem a posição da Alemanha face ao euro como uma expiação dos pecados cometidos no Holocausto não é de todo, representativa do resto do livro, apesar de afirmar que o excerto se encaixa na sua arquitectura mais alargada. Para o editor, “Europe Doesn’t Need the Euro” é um livro “simultaneamente obcecado com a história e com um estranho e alternativo sentido da vitimização alemã”. E, de uma forma mais ampla, abre caminho para uma abordagem mais problemática. É que, na visão de Sarrazin, o euro é apenas o velho marco alemão a estender-se a muitos países com moedas muito menos robustas. E, como argumenta, “ é exactamente assim que países como a Grécia o têm vindo a tratar”.

“A introdução do euro foi economicamente encarada como nada menos do que o compromisso do marco alemão para com todos os membros da zona euro. Muitas vezes, os estados parceiros pensam, tal como aconteceu com os mercados, que a zona económica do marco alemão foi idealizada com uma promessa de solidariedade para com os demais membros”.

Ou, por outras palavras, que a Alemanha está a ser usada como uma fiadora das dívidas dos outros países. De acordo com esta visão, o euro é o velho marco alemão, rebaptizado e redistribuído como um acto semiconsciente e mal orientado de caridade alemã. Surpreendente é também o facto de, nos anos de 1990, Sarrazin se ter convertido ao valor do euro e agora o encarar como uma espécie de “aposta falhada”, pois a classe política alemã sempre pensou que a união política se seguiria [à união monetária], como se fosse uma lei natural, pois sem ela a moeda comum não seria estável e, daí, a aposta falhada.

O que não é bem assim. Na verdade, muitos comentadores e economistas mantêm a sua posição de que a Alemanha lucrou bastante com a introdução do euro e, na verdade, que também está a beneficiar com a instabilidade actual da zona euro. De acordo com este argumento, as exportações alemãs tornaram-se ultra-competitivas com a introdução da moeda única e a inexistência de barreiras ao comércio permitiram à Alemanha vender quantidades astronómicas de produtos aos seus vizinhos europeus. Agora, e com o euro a afundar, a Alemanha já não consegue vender tanto aos sobreendividados e desempregados gregos, mas e graças a um euro em queda, continua a escoar os seus produtos, agora mais baratos, para o resto do mundo.

Sarrazin cita números que demonstram que o comércio alemão praticado com países não europeus cresceu mais do que com os estados-membros da EU. Mas e como o jornal alemão Der Spiegel também sublinha “não contou [nesses números] com o factor de que o crescimento do comércio fora da zona euro ter sido largamente devido ao crescimento económico explosivo da Europa de leste e da Ásia na última década”. O reconhecido jornal alemão diz ainda que “os números não dão qualquer percepção de como seria o desenvolvimento das transacções comerciais sem a existência de uma moeda única”.

De “nacionalista” a “reaccionário”
Obviamente que as criticas à mais recente incursão literária de Sarrazin não se fizeram esperar. No que respeita à ligação do comportamento alemão face à crise na Europa, o ministro das finanças germânico, Wolfgang Schäuble afirmou ao jornal Bild que “ou ele está a dizer e a escrever este chocante disparate sem qualquer convicção ou está a fazê-lo de uma forma desprezivelmente calculista”.

Por seu turno e num programa televisivo no passado Domingo, o líder da oposição, Peer Steinbrück, entrou num desagradável e ao vivo debate com Sarrazin, apelidando as afirmações sobre o Holocausto de “amnésia histórica” e, quando o assunto resvalou para as objecções de Sarrazin face à união monetária, o antigo ministro das finanças não se coibiu de as apelidar como uma perfeita “bullshit”, acusando-o de estar a esquecer as inúmeras vantagens que o euro trouxe à Alemanha e sublinhando que a moeda única tem sido “um pilar da integração europeia”. Steinbrück considerou ainda o livro de Sarrazin como “uma análise económica banal”.

Carsten Schneider, um colega do SPD, o Partido Social Democrata do qual Sarrazin já foi quase expulso (pelo menos, a direcção do partido assim o quis em 2010), chamou ao criticismo do euro por parte do autor de “nacionalista e reaccionário”.

Já Volker Kauder, líder do grupo parlamentar da CDU de Angela Merkel, afirmou: “Sarrazin está novamente enganado. O euro é uma história de sucesso e assim permanecerá”.

O Partido dos Verdes, com declarações ao Die Welt do seu líder, Jürgen Trittin, afirmou ser “patético [Sarrazin] estar a utilizar o Holocausto para garantir o máximo de atenção possível para as suas teses relativamente aos eurobonds”, acusando-o de “chauvinista do marco alemão”. E até Reinhold Robbe, presidente da associação Alemanha-Israel considerou as teorias de Sarrazin como um “disparate sobre o qual nem merece a pena falar”.

Claro que também existem apoiantes e não foi surpresa para ninguém que a extrema-direita alemã, via NPD (o Partido Democrata Nacional) tenha divulgado uma nota na qual enaltece o trabalho de Sarrazin e critica o “complexo de culpa psicopatológico alemão que estimula a Alemanha a satisfazer a esmagadora maioria dos desejos de todos os países ‘interesseiros’ mesmo 67 anos depois da guerra”. Sarrazin tentou defender-se de uma aproximação à extrema-direita alemã, dedicando algumas linhas do seu livro a distanciar-se de algumas figuras mais nacionalistas que o apoiaram no passado).

Polémicas partidárias à parte, comentadores e economistas conferem um outro sentido ao livro de Sarrazin. A título de exemplo, a Deutschlandfunk radio considera as questões colocadas no livro como evidentes, afirmando que o discurso de Sarrazin não é, de todo, banal. “Enquanto especialista financeiro e antigo membro do banco central, a sua competência económica é inquestionável”. Também o jornal de esquerda Die Tageszeitung escreve que “neste livro, o experiente politico e financeiro traz consigo os conhecimentos de uma vida quando coloca questões que não são de fácil resposta”, apesar de, por outro lado, o jornal afirmar também que os argumentos apresentados resultam de “ressentimentos, preconceitos e quantidades consideráveis de nacionalismo”.

E, quando são os cidadãos alemães a serem questionados sobre os benefícios do euro ou, mais precisamente, sobre o insucesso da integração social de algumas minorias étnicas na Alemanha, as críticas diluem-se consideravelmente.

Para Tilman Mayer, cientista política em Bona e em declarações ao The Wall Street Journal, “a visão de que o euro foi mal construído é partilhada por muitos alemães, mas é difícil imaginar um movimento anti-euro numa altura em que [na Alemanha] a economia está bem e o desemprego está em níveis baixos”.

Assim, e mesmo os alemães que concordam com Sarrazin de que o euro não era necessário para a integração europeia, admitem que tal não significa que a Alemanha deve agora virar as costas à moeda única”.

A verdade é que o livro está a causar uma enorme polémica, instalando dúvidas na cabeça de muitos alemães e fazendo eco das certezas de outros tantos. E, ao que parece, Sarrazin pode estar a preparar-se para mais um sucesso literário.

 

Editora Executiva