POR HELENA OLIVEIRA
Em 2014, o Fórum Económico Mundial que reúne em Davos a elite mais rica do planeta, composta por líderes de diferentes quadrantes, incluía, no seu habitualmente recheado programa, 25 apresentações com enfoque primordial no “bem-estar” físico e psicológico – uma temática que não é nova, mas que registou um interesse crescente desde o início da crise financeira de 2008. É com esta curiosidade que começa o livro do sociólogo e economista político britânico, William Davies, intitulado “The Happiness Industry: How Governments and Big Business Manipulate Your Moods For Profit”.
O aumento das técnicas de “auto-ajuda” durante períodos de recessão não é propriamente um fenómeno novo. Por exemplo, foi exactamente a partir dos anos de 1930 que a indústria dos livros de auto-ajuda iniciou o seu boom. E, em particular nos últimos anos, é também crescente o fervilhar desta “indústria que promete a felicidade”, embrulhada na denominada “psicologia positivista”, com cursos e workshops a ela associados, já para não falar de técnicas que prometem aumentar a “resiliência da mente”, em conjunto com o fértil mercado do coaching e, em grande moda este ano, a denominada” mindfulness”, comummente traduzida em português como “consciência ou atenção plena”, que oferece uma panóplia de e serviços holísticos e integrais que prometem a promoção do equilíbrio físico, emociona e mental.
O interesse de William Davies na psicologia económica teve origem ao longo da recente crise global, quando começou a perceber que a economia comportamental e a neurociência estavam a ser apresentadas como explicações credíveis para o descalabro financeiro. Mas qual o argumento principal do livro de Davies e que motivos levaram este reconhecido professor da University of London a mergulhar nesta apetecível e lucrativa indústria? Na verdade, são vários.
Em primeiro lugar, o facto de Davies ser britânico e de o Reino Unido ter sido um dos primeiros países a apostar na recolha de dados estatísticos sobre os sentimentos dos seus cidadãos em termos de felicidade, satisfação com a vida, ansiedade, depressão, entre outros, com o objectivo de criar um índice da felicidade interna bruta (FIB) em oposição ao PIB. A ideia há muito que é apoiada por economistas de gabarito mundial, entre os quais se destacam pelo menos três laureados com o Nobel das Ciências Económicas, Joseph Stiglitz, Amartya Sen e Daniel Kahneman, em conjunto com entidades internacionais como o Banco Mundial e a ONU, na tentativa de medirem o progresso social sem a velha avaliação do Produto Interno Bruto. Os índices de felicidade por países há muito que abundam e, apesar de conter parâmetros de avaliação variados e relevantes, o recente Índice de Progresso Social, sobre o qual o VER já escreveu e também ele apadrinhado pelos laureados com o Nobel já referidos, está também a ganhar força crescente.
Por outro lado, e porque a produtividade laboral é tema de particular interesse para governos e empresas e- e tendo em conta que vários estudos alertam para a crescente insatisfação no local de trabalho – para o autor, esta nova indústria é, em simultâneo, o resultado e a resposta a uma crise no capitalismo muito mais aprofundada do que a inaptidão financeira, a corrupção ou a globalização. Adicionalmente, os níveis crescentes de absentismo, de “presença laboral não entusiástica”, de apatia e de stress (considerada actualmente como a principal causa para as baixas por doença), ajudam a um enfoque crescente nesta oferta de resiliência mental ou venda de “elixires modernos” para alcançar a felicidade e, consequentemente, contrariar a “tristeza” – ou a falta de produtividade – tão cara aos governos e ao meio empresarial. Para Davies, este mal-estar psicológico afecta tanto as elites executivas como os trabalhadores mais mal pagos, o que também serve para explicar o sucesso da indústria da consultoria em actividades que promovem o bem-estar. De acordo com a Gallup, as estimativas apontam para uma perda de 500 mil milhões de dólares anuais na economia norte-americana, relacionada com os custos associados à “tristeza” dos trabalhadores (absentismo, falta de produtividade, custos com a saúde e menor pagamento de impostos).
William Davies argumenta que, cada vez mais, a felicidade humana se está a transformar numa commodity, mesmo que ilusória, e que a mesma só pode ser devidamente avaliada em estudos comprovadamente científicos, com dados verificáveis, e não por publicitários ou empresas farmacêuticas que” nos observam, incentivam, estimulam e optimizam psicologicamente”.
Colocar preços nas emoções e desejos e vendê-los
Apesar de serem ainda poucas as empresas que optaram por ter um Chief Happiness Office – como é o caso da Google, por exemplo -, são inúmeras as que estão a levar a sério este fenómeno e a transformar o que supostamente devia ser uma questão privada numa verdadeira fixação e obsessão pelos sentimentos “internos” dos cidadãos e trabalhadores. O autor argumenta também que a monitorização dos nossos estados de humor e sentimentos se está a transformar numa função normal do ambiente físico em que vivemos. Recordando o alarido que se fez, em Julho de 2014, quando o Facebook publicou um estudo que continha detalhes do sucesso que tinham tido ao alterar centenas de milhares de “estados de espírito” dos seus utilizadores depois da manipulação dos seus feeds, Davies chama a atenção para a quantidade crescente de tecnologias existentes no mercado que analisam e monitorizam o bem-estar, desde relógios de pulso e telemóveis “inteligentes”, a uma parafernália de novas ferramentas que quantificam os nossos estados de espírito em tempo real e que, em simultâneo, oferecem informação valiosa aos mercados.
Como escreve: “as preocupações relativas à privacidade foram, tradicionalmente, encaradas como algo que teria de ser equilibrado com a questão da segurança. Mas, nos dias que correm, temos de admitir que estamos perante uma quantidade considerável de vigilância, a qual supostamente ocorre para aumentar a nossa saúde, felicidade, satisfação ou prazeres sensoriais e(…). Assim, qualquer crítica sobre a vigilância ubíqua a que estamos sujeitos tem de, forçosamente, incluir uma crítica à maximização do bem-estar”.
Longe vão os tempos, alerta também o autor, em que as tentativas científicas de se manipular ou conhecer os outros eram realizadas no interior de instituições formalmente identificadas, como os laboratórios de psicologia, os hospitais, os locais de trabalho, os focus gropus, entre outros. Com as novas tecnologias, o mercado transformou-se num “dispositivo sensorial” gigantesco que captura milhões de desejos, opiniões e valores, convertendo-os em preços e colocando-os à venda.
De salientar, contudo, que as objecções de Davies face à forma desenfreada mediante a qual os media sociais recolhem dados sobre os seus utilizadores tem menos a ver com a (ausência de) ética inerente à vigilância e muito mais com o pressuposto que reza que os seres humanos são, sempre, juízes inconfiáveis da sua própria felicidade. Se é verdade que a quantificação de quão felizes somos pode ser afectada por questões de índole cultural e outras, se realmente pretendemos chegar a um conhecimento mais rico sobre esta emoção ilusória, “são as nossas palavras que contam e não o número de ‘likes’ ou os ‘estados’ que colocamos no Facebook”, argumenta.
Adicionalmente, a moderna indústria da felicidade, tal como Davis a explica, encoraja-nos a monitorizar os nossos corpos e mentes até à obsessão. Mas ao nos movermos constantemente entre esta avaliação pseudo-científica e pseudo-espiritual, acabamos por nos afastar das dimensões sociais da felicidade. E para o autor, a história entrelaçada do capitalismo e da psicologia acaba por “culpar – e medicar – os indivíduos pela sua própria miséria, ignorando o contexto que contribuiu para tal”.
O mercado capitalista transformou-se numa vasta “auditoria psicológica”
De acordo com Davies, desde os anos de 1960 que as economias ocidentais se afligem com um problema grave: o facto de dependerem, crescentemente, do envolvimento psicológico e emocional dos seus cidadãos – seja no que respeita ao trabalho, às marcas, à saúde ou ao bem-estar. E, para combaterem a dificuldade crescente de lidarem com estas formas de descomprometimento privado, na maioria das vezes manifestado através da depressão ou das chamadas doenças psicossomáticas, as quais começaram a representar um gigantesco custo económico, governos e empresas renderam-se às promessas da felicidade, capitalizando-as.
Na actualidade e em grande escala, sabemos que os media sociais nos oferecem uma plataforma que nos permite reconhecer as nossas alterações de humor, ao mesmo tempo que nos “obrigam” a uma obsessão com o nosso bem-estar e felicidade. Como já referido anteriormente, hoje em dia temos também acesso a inúmeros dispositivos e aplicações que avaliam o nosso sono ou os benefícios das nossas actividades físicas, incontáveis livros de auto-ajuda, workshops ou seminários, tudo em prol de nos fixarmos do grande objectivo da humanidade: sermos felizes, saudáveis, mentalmente resilientes e fisicamente fortes. Mas o que não podemos esquecer é o facto de toda esta tecnologia e conhecimento estarem a ser aproveitados pelas empresas, pelos decisores políticos e pelos governos. Como afirma Davies, “a ciência da felicidade penetrou agora a fortaleza da gestão económica global e (…) o futuro do capitalismo de sucesso dependerá da nossa capacidade para combater o stress, a miséria, a doença e colocar o relaxamento, a felicidade e o bem-estar no local certo”.
Ao longo do livro, Davies narra a história da indústria da felicidade, a qual remonta ao século XVIII e ao filósofo britânico Jeremy Bentham, o grande difusor do utilitarismo e que afirmava que as acções humanas deveriam promover a felicidade para o maior número de pessoas possível, doutrina que o professor de sociologia acredita ser aplicável às teorias modernas da felicidade individual. O trabalho do filósofo alemão Gustav Fechner, precursor da psicofísica, do economista, também britânico, William Stanley Jevons, do filósofo e fisiologista Wilhelm Wundt e ainda do psicólogo norte-americano e pai do behaviourismo John B. Watson, ilustram, na obra de Davies, a forma como todas estas disciplinas se sobrepõem e de como os estudos sobre a felicidade se tornaram entrelaçados “com as especialidades económicas e médicas”.
E são as tentativas governamentais e comerciais para influenciar e propagar a “felicidade nacional”, através de um escrutínio e consequente calibragem da mesma que verdadeiramente incomodam o autor, em conjunto com a ideia de que o contentamento pessoal pode ser comprado, vendido, gerido e manipulado pelo mercado económico global. O esforço de governos e empresas na conversão do conceito de felicidade numa “entidade mensurável e visível” é, para o autor, um verdadeiro despropósito.
Todavia, a maior crítica de William Davies a esta “ciência do bem-estar” diz respeito ao facto de a mesma nos encorajar à autoculpabilização – quando não conseguimos atingir os supostos “objectivos da felicidade” – ao mesmo tempo que ignora os contextos sociais e políticos aos quais obedece, permitindo ainda aos detentores do poder explorar a ciência do “lucro privado” ou do “controlo social”. Como escreve, “a tristeza e a depressão estão concentradas em sociedade profundamente desiguais, e com valores extremamente competitivos e materialistas”, acrescentando ainda que as soluções oferecidas apenas contribuem para isolar, ainda mais, os pobres. Para o autor, apenas através da compreensão das “tensões e sofrimentos que o ambiente laboral, as hierarquias, as pressões financeiras e as desigualdades colocam nos seres humanos” é possível desafiá-las” e, em vez de permitirmos que as nossas emoções sejam compradas ou vendidas, “temos de resistir à obsessão relativa às nossas vidas interiores e começar a olhar para o mundo lá fora”.
Editora Executiva