A inflação é um indicador quase seguro do estado de uma sociedade. Se for baixa, revela uma distribuição de riqueza sem grandes conflitos. A relação não é injectiva e este clima de paz social pode igualmente resultar de um compromisso entre parceiros sociais, conforme sucedeu na Alemanha do pós-guerra e é ainda hoje um caso paradigmático de recuperação de um país. Pode, contudo, resultar de um equilíbrio de poder desfavorável aos empregados num contexto de desemprego elevado, conforme o que vivemos agora. Uma inflação reduzida pode portanto significar pouco crescimento da actividade e emprego pouco abundante
POR PEDRO COTRIM
A mudança no regime regulatório da economia internacional e a adopção do Euro em 2002 fizeram com que a inflação perdesse alguma da atractividade de outrora; a obsessão anti-inflacionária pode parecer ameaçadora, mas a hiperinflação é aterradora. Os cenários de algumas economias menos sólidas, com os países da América Latina a representarem os casos mais dramáticos numa incapacidade de concórdia entre diferentes grupos sociais, fazem-nos ver uma distopia ausente da Europa há muito tempo. O Estado passa a recolher menos impostos e os fundamentos do sistema económico ficam minados. Muitas vezes reduz-se o uso da moeda nacional a favor de outro instrumento mais fiável, como o dólar, e a opção por políticas mais extremistas ou populistas passa a ser atraente como modo de fuga a tudo o que se conhece e que é muito mau.
A inflação tem muitas facetas: desvaloriza as dívidas, favorece os investidores e penaliza os credores. Os compromissos tornam-se aparentemente mais fáceis e surge o que já se designou como «ilusão nominal»: a ideia de se ter mais dinheiro quando na realidade tudo é muito mais caro. Ocorrem aumentos salariais parcialmente desvalorizados pela inflação e os bancos concedem empréstimos a taxas reduzidas porque as somas depositadas são desvalorizadas pelo aumento dos preços. Este sistema parece quase resultar se os agentes económicos não incluírem a inflação nos seus cálculos. Assim que as taxas de juros sobem e os salários são indexados aos preços, as empresas aceleram o ritmo dos aumentos nos preços dos produtos para desvalorizar as dívidas e restaurar as margens numa viagem sem remédio até à hiperinflação.
Alguns anos após o final da Segunda Guerra, em muitos governos dos países europeus desistiu-se do pleno emprego como primeiro objectivo, substituindo-o pela desinflação. Voluntariamente ou não, obedeceu-se a este novo imperativo, ignorando-se um pilar da política económica: a arbitragem entre objectivos quase exclusivos entre si, como o pleno emprego e a estabilidade dos preços. Acreditou-se, ou fingiu-se acreditar, que se se baixasse a inflação, o emprego estaria garantido. Nos Estados Unidos a mania pareceu temporária: Reagan dispôs-se rapidamente a fazer o oposto do que havia proclamado.
De uma forma geral, o Ocidente ignorou os achados de Keynes, com argumentos sobretudo baseados no válido «mudam-se os tempos, mudam-se as vontades»: as prioridades de ontem não são necessariamente as de hoje, mas é preciso que na política económica haja conhecimento das responsabilidades. No entanto, é necessário perceber que há caminhos praticamente irreversíveis: se a credibilidade se tornou na grande meta dos governos e se muitos optaram pela independência em relação ao BCE, não foi por causa de uma paixão assolapada pela teoria das expectativas racionais, uma vez que a liberalização dos movimentos de capitais e o desenvolvimento dos mercados financeiros mudaram profundamente as regras do jogo. A política económica dos anos 70 era um trabalho equilíbrio de forças e a arbitragem era o cálculo do valor ideal ao longo de uma curva que se cria e queria estável. Havia a ter em conta a variável tremenda do tomador de decisão, que enfrenta sempre actores que observam, ponderam e actuam.
Este ambiente transformado não remove as escolhas, mas muda a natureza das restrições, apertando as que afectam os equilíbrios de médio prazo e aumentando o espaço de manobra a curto prazo, desde que os mercados estejam convencidos da sustentabilidade da política a longo prazo. Deixa de ser possível desvalorizar suavemente a dívida pública através da inflação, mas torna-se possível viver mais tempo com um deficit externo superior desde que se assegure o regresso ao equilíbrio a longo prazo. Existe espaço para diferentes estratégias, e, neste contexto, um investimento em credibilidade monetária não é a negação das arbitragens, mas a condição para as poder fazer.
Os mecanismos de compensação podem não passar por uma estabilidade de preços de duração indefinida, mas por estratégias compatíveis com a sua preservação. Pode deixar-se de colocar o crescimento numa situação que se opõe aos orçamentos ad hoc, suscitados por políticas que valorizam benefícios imediatos e custos futuros de forma diferente e que podem ganhar estatura no campo das políticas estruturais, como a tributação, os gastos públicos, a protecção social, que, em princípio, compõem fundamentalmente a questão das opções democráticas.
Os benefícios da inflação foram questionados na década de setenta. O choque petrolífero de 1973 impôs alcavalas sobre a economia que dificultavam a participação dos players nos valores finais. A queda nos lucros foi acompanhada por uma queda no investimento, com desaceleração do crescimento e reduzindo o excedente à sua distribuição, acentuando o processo da economia sem travões. Esta situação de estagnação juntada à inflação, e descrita como estagflação, tornou gradualmente desejável o combate à inflação no início da década de oitenta, tendo resultado na necessidade de restaurar bases sólidas ao crescimento, pondo fim ao aumento descontrolado dos preços e restaurando um sistema de distribuição de valor agregado mais conveniente às empresas.
Outra razão para combater a inflação é a abertura das economias. A nível comercial, a inflação acaba por reduzir a competitividade, e ao nível financeiro leva os credores a exigirem mais compensações, protegendo-se assim contra uma possível depreciação das suas reivindicações, seja por causa do aumento dos preços ou por quedas cambiais que se sucedam ao aumento dos preços. Foi por estas razões que a luta contra a inflação se tornou num dos principais combates das políticas económicas do final do século XX e começo do XXI.
O aumento da inflação pode ser um autor da euforia económica, mas a desinflação pode causar dor tremenda. Implica habitualmente um aumento do desemprego, com o intuito de pôr fim à indexação dos salários aos preços. Como os preços caem mais rapidamente que as taxas de juros nominais, pois os mercados financeiros antecipam rapidamente os aumentos, mas demoram a reagir à queda dos preços, tudo resulta num aumento das taxas de juros reais. A desinflação não pode ser confundida com a inflação baixa, pois neste caso, se os preços permanecerem estáveis, as taxas de juros tenderão a cair gradualmente, como vai sucedendo habitualmente na Europa.
Uma inflação igual a zero representa uma economia com exclusão de risco, ficando a totalidade do seu funcionamento reduzido à sua única dimensão real: um conceito mental aritmético em que apenas temos de fazer as nossas contas. A realidade concreta da economia é nominal, pois tem expressão através dos preços.
É difícil estabelecer o valor «ideal» da inflação, pois a sua medição implica, com base na evolução dos preços da economia como um todo, a distinção do que é apenas movimento de preços devido ao mercado do que é crescimento real. Suscitam-se problemas metodológicos multifactoriais e relacionados particularmente com o produto, com a sua qualidade e com o seu preço. É, portanto, quase impossível estabelecer o valor «verdadeiro».
Há muitos exemplos no passado para tirar ilações, mas o génio humano é demasiado precioso e diversificado para caber em pressupostos. Importa-nos o que está ao dobrar da esquina. Sentimos que estes preços crescentes ameaçam a coesão social, pois a pobreza e a exclusão têm atributos quase gravíticos. O disco de acreção que originou o Sistema Solar produziu um equilíbrio que se manterá até à morte do Sol. O que queremos todos é existir como espécie até lá, mas para isso a(s) sociedade(s) exige(m) equilíbrio. Queremos saber o que se passa e o que se vai passar, pois o nosso maior desejo é que os nossos filhos vivam para sempre.
Bibliografia
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