POR GABRIELA COSTA
Direitos, valores, democracia. Palavras-chave de um projecto europeu há muito em decadência, hoje, e cada vez mais, ameaçado pelas ideologias da nova ordem mundial que promete conspirar também contra a Europa.
Ser cidadão da União Europeia é usufruir de um estatuto complementar à cidadania nacional que confere numerosas liberdades, como a livre circulação, o direito de trabalhar ou de estudar noutro país europeu e a protecção consular, mas também o direito de voto e de candidatura nas eleições locais e para o Parlamento Europeu. São os direitos de cidadania que constituem “o elemento crucial da União Europeia”.
E se, nos dias que correm, “87% dos europeus estão conscientes da sua cidadania da UE”, o que, nas palavras de Věra Jourová, comissária europeia da Justiça, Consumidores e Igualdade de Género, “é um resultado sem precedentes”, esses mesmos cidadãos “nem sempre conhecem os direitos que dela decorrem”.
Direitos que, juntamente com as oportunidades e as garantias da cidadania da UE, foram consolidados pelo Tratado de Lisboa e pela Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. E consagrados, pela primeira vez, no Tratado de Maastricht, há vinte e cinco anos. Desde então, “têm sido realizados progressos significativos para garantir a eficácia, na prática, dos direitos dos cidadãos”, e actualmente “dois terços dos europeus sentem-se cidadãos da UE”, principalmente as gerações mais jovens, como se pode ler no Relatório de 2017 sobre a Cidadania da UE – Reforçar os direitos dos cidadãos numa União da mudança democrática.
[quote_center]87% dos europeus estão conscientes da sua cidadania da UE[/quote_center]
Publicado a 24 de Janeiro, este terceiro relatório da Comissão Europeia (CE) sobre cidadania traça o balanço dos progressos alcançados desde 2014, em conformidade com as prioridades políticas para o emprego, o crescimento, a equidade e a mudança democrática – e considerando que em 2013 a CE apresentou doze acções em seis áreas fundamentais sobre cidadania europeia. O documento apresenta ainda propostas concretas para dar resposta às grandes prioridades no que respeita à promoção, protecção e reforço dos direitos de cidadania da UE.
Para garantir que esses direitos são uma realidade para os cidadãos, a Comissão elabora desde 2010, e de três em três anos, relatórios sobre as principais iniciativas adoptadas para promover esta prática. Os relatórios baseiam-se nos contributos dos cidadãos fornecidos através de inquéritos e de consultas públicas, em petições e em diálogos directos dos Comissários com os europeus.
Em 2015, a Comissão realizou uma consulta pública e dois inquéritos que incidiram na cidadania da UE e nos direitos eleitorais, cujos resultados foram tidos em conta no relatório de 2017 sobre a cidadania da UE. A presente edição centra-se em quatro domínios, considerados estratégicos: promover os direitos conferidos pela cidadania da UE e os valores comuns da UE; melhorar a participação dos cidadãos na vida democrática da UE; simplificar a vida quotidiana dos cidadãos; e reforçar a segurança e promover a igualdade.
De acordo com o documento, os europeus sentem-se cada vez mais cidadãos da União e querem conhecer melhor os seus direitos, prezando especialmente a livre circulação. Como afirma, no prefácio do relatório, o responsável pela Migração, Assuntos Internos e Cidadania da CE, “acima de tudo, os cidadãos europeus querem continuar a viajar, trabalhar, fazer negócios e estudar de forma livre, segura e fácil na União Europeia”.
Contudo, estes mesmos cidadãos da UE não exercem plenamente o seu direito de voto nas eleições europeias e nas locais, e muitos desconhecem o direito à protecção consular proporcionado pelas embaixadas de outros Estados-Membros, conclui a Comissão. Em paralelo, e “atendendo aos crescentes desafios transnacionais dos nossos tempos”, a grande maioria dos europeus “pede acções comuns da UE para resolver as questões que mais os preocupam, como a gestão da migração e as ameaças à segurança, como sublinha também Dimitris Avramopoulos.
[quote_center]Os cidadãos da UE querem continuar a viajar, trabalhar, fazer negócios e estudar de forma livre, segura e fácil[/quote_center]
Tendo em vista reforçar a sensibilização pública para o tema e o exercício da cidadania por todos os nacionais de Estados-Membros da UE, o relatório da CE define um roteiro sobre as formas de reforçar os direitos dos cidadãos nos próximos anos. O objectivo é “construir uma União de mudança democrática e que assegure, na prática, os direitos dos cidadãos”, naquela que é considerada por Věra Jourová, a Comissária responsável pelos direitos de cidadania da UE, “uma responsabilidade de todos” – Comissão, demais instituições da UE, Estados-Membros, autoridades locais e regionais, sociedade civil e os próprios cidadãos.
Cidadãos reforçam apoio às prioridades políticas da UE
Os europeus “apoiam firmemente” as prioridades políticas da Comissão Europeia, mas continuam a manifestar-se preocupados com as questões da imigração e do terrorismo. De acordo com os resultados do Eurobarómetro Standard do outono de 2016, divulgados a 22 de Dezembro e analisados também no relatório sobre a cidadania da UE, estes continuam a ser considerados os dois principais desafios que a UE enfrenta, embora a um nível ligeiramente mais baixo do que no anterior inquérito, realizado na primavera de 2016.
Questionados sobre as suas maiores preocupações, os europeus não hesitam em destacar a imigração como o principal problema com que a UE se depara. Num universo de 32 896 entrevistas individuais realizadas nos Estados-Membros da União e nos países candidatos à adesão, 45 % dos inquiridos (ainda assim, menos 3 pontos percentuais desde a primavera de 2016), elegem esta como a temática que mais deve preocupar a Europa e os seus líderes. Em termos geográficos, a imigração é considerada o primeiro problema da UE em todos os Estados-Membros, com excepção de Espanha e de Portugal.
[quote_center]O direito de voto nas eleições europeias e locais ainda não é plenamente exercido[/quote_center]
Com 32% (menos 7%), o terrorismo continua a ser o segundo problema mais referido, bastante à frente da situação económica (20%, mais 1%), do estado das finanças públicas dos Estados-Membros (17%, mais 1%), e do desemprego (16%, mais 1%). Mas, a nível nacional, a principal preocupação dos cidadãos é mesmo o desemprego (31%, menos 2%), seguido da imigração (26%, menos 2%) e, em terceiro lugar, da situação económica (19%, tal como no inquérito anterior da Comissão Europeia).
Não obstante as preocupações reveladas, os europeus apoiam cada vez mais as políticas e prioridades da União Europeia. Este apoio tem vindo a ser reforçado desde a primavera do ano passado, em várias frentes: no que respeita à questão da migração, 69% dos cidadãos afirmam-se a favor de uma política europeia comum nesta matéria, e 61% têm uma opinião positiva sobre a migração de pessoas provenientes de outros Estados-Membros da UE. Uma esmagadora maioria de 81% é favorável à “livre circulação dos cidadãos da UE, que podem viver, trabalhar, estudar e fazer negócios em qualquer país”, e também a maioria apoia este direito em todos os países da União. Contudo, quando se trata da imigração de pessoas provenientes do exterior da UE, 56% dos inquiridos manifestam uma opinião negativa.
Já no que toca ao euro, o apoio dos cidadãos aumenta ligeiramente (58% no conjunto da UE e 70% na área do euro). Em relação ao investimento na UE, 56% dos europeus concordam que devem ser utilizados dinheiros públicos para estimular o investimento do sector privado na União.
Outra questão avaliada no Eurobarómetro que ausculta as preocupações e atitudes dos cidadãos europeus relativamente à UE, bem como a sua percepção da situação económica, é a da confiança nas instituições europeias. O relatório preparado pela CE com base na auscultação dos cidadãos e nos resultados deste inquérito conclui que a confiança na UE (36%, numa tendência positiva face aos 33% registados no inquérito da primavera de 2016) é mais elevada do que a confiança nos parlamentos e governos nacionais (que ainda assim também cresceu). Numa percentagem que se manteve inalterada desde a primavera de 2015, 38% dos cidadãos europeus têm uma imagem neutra da EU. Com 35%, a imagem positiva da União ganhou algum terreno, ao passo que a imagem negativa diminuiu (25%).
[quote_center]A confiança na UE é mais elevada do que a confiança nos governos nacionais[/quote_center]
Por outro lado, 67% dos europeus sentem-se cidadãos da UE, mas apenas quatro em cada dez consideram que a sua voz conta na UE (questão que atingiu um recorde de 42 %, nas primaveras de 2014 e de 2015). Por último, o Tratado de Roma é considerado por 69% dos europeus como um acontecimento positivo na história da Europa, uma opinião que é partilhada pela maioria dos cidadãos em todos os Estados-Membros.
Os resultados do último inquérito Eurobarómetro Standard foram publicados em conjunto com o Eurobarómetro Especial 451, “Futuro da Europa”, inquérito baseado em 27 768 entrevistas individuais realizadas entre finais de Setembro e início de Outubro, em todos os Estados-Membros da UE.
Segundo este estudo, para dois terços dos europeus (66%) a UE é um lugar de estabilidade, num mundo conturbado. Esta perspectiva é partilhada pela maioria em todos os Estados-Membros. Neste contexto, mais de seis em cada dez cidadãos defendem que deveriam ser tomadas mais decisões a nível europeu em diversos domínios: oito em cada dez afirmam que tal deve acontecer em relação ao “combate ao terrorismo” e à “promoção da democracia e da paz” (ambos com 80%); e mais de sete em cada dez pensam o mesmo relativamente à “protecção do ambiente” (77%), à “promoção da igualdade de tratamento entre homens e mulheres” (73%) e à “resolução dos problemas associados à migração proveniente do exterior da UE” (71%).
Em relação aos ideais que sustentam a construção da União Europeia, uma larga maioria (82%) dos europeus concorda que uma economia de mercado livre deve ser acompanhada de um nível elevado de protecção social, e uns expressivos 60% acreditam que o projecto europeu oferece uma perspectiva de futuro para a juventude.
Falta consciência cívica e participação democrática
Os direitos de cidadania e os valores comuns da UE; a participação dos cidadãos na vida democrática; o quotidiano dos cidadãos, que se quer cada vez mais simples; e o necessário reforço da segurança e da igualdade no espaço da União. Quatro domínios estratégicos em que a Comissão Europeia está já a trabalhar, e no âmbito dos quais estabeleceu um conjunto de acções prioritárias até 2019, como campanhas de informação, debates públicos (desde o início do mandato da Comissão Juncker foram organizados 125 diálogos com os cidadãos), oportunidades de voluntariado (nomeadamente para os jovens, através do Corpo Europeu de Solidariedade, lançado em Dezembro de 2016), e boas práticas para instar à participação democrática nas eleições da UE, em 2019 (ver Caixa).
Até porque a maior prioridade de todas é política: “é necessário envidar esforços contínuos a fim de garantir que todos os cidadãos da UE têm conhecimento dos seus direitos e podem participar plenamente no processo democrático europeu”, diz a Comissão no relatório sobre cidadania da UE, não por acaso intitulado ‘Reforçar os direitos dos cidadãos numa União da mudança democrática’. Ora, este apelo a uma União da mudança democrática lançado por Jean-Claude Juncker exige “um esforço comum, que conta com o trabalho conjunto dos Estados-Membros, parlamentos nacionais e instituições da UE, no sentido de reforçar a confiança dos cidadãos europeus no nosso projecto comum, tendo em vista uma Europa mais forte e melhor”, como recordou em 2016 no seu discurso anual sobre o estado da União.
[quote_center]60% acreditam que o projecto europeu oferece uma perspectiva de futuro para os jovens[/quote_center]
Como se conclui no relatório agora divulgado, “a consciência cívica e a participação democrática dos cidadãos” da UE são “elementos cruciais, especialmente na perspectiva das próximas eleições europeias”. Neste contexto, a CE defende que “devem ser tomadas medidas suplementares para aprofundar a vida democrática da União”.
De uma forma mais lata, o trabalho da Comissão sobre a cidadania da UE continuará a centrar-se nos domínios essenciais que afectam directamente o bem-estar dos cidadãos europeus, como a sua capacitação através da informação, do aconselhamento e da participação democrática; a sua protecção, garantindo a igualdade de tratamento na UE e a prestação de apoio directo; e a simplificação da sua vida quotidiana, fornecendo-lhes acesso fácil a serviços de informação, assistência e resolução de problemas, reduzindo a burocracia, protegendo-os enquanto consumidores, trabalhadores e estudantes, e suprimindo outros obstáculos ao exercício dos seus direitos.
Contudo, e como alerta o relatório de 2017 sobre a cidadania da UE, a definição e execução desta agenda não é exclusivamente da competência da Comissão (por muito empenhada que esteja), mas antes um esforço colectivo da União no seu conjunto. Ou, por outras palavras, é um trabalho em parceria entre as instituições da UE, os Estados-Membros, as autoridades locais e regionais, a sociedade civil e, sobretudo, os próprios cidadãos, para “tornar a cidadania europeia uma realidade no terreno”. E, como sublinha no documento o responsável pela Migração, Assuntos Internos e Cidadania da CE, “conseguir soluções concretas e tangíveis para os cidadãos europeus poderem continuar a beneficiar de um espaço de paz, segurança e prosperidade duradouras, de valores e princípios partilhados e de direitos e liberdades fundamentais”.
Prioridades para 2017-2019
No âmbito do relatório sobre a Cidadania da UE, a Comissão Europeia definiu um conjunto de acções e iniciativas prioritárias, para um horizonte de dois anos, a fim de cumprir os quatro grandes objectivos traçados para esta área:
1) Promover os direitos conferidos pela cidadania da UE e os valores comuns da UE
. Realizar uma campanha de informação e sensibilização à escala da UE sobre os direitos de cidadania da União, incluindo direitos eleitorais, antes das eleições europeias de 2019.
. Reforçar o Serviço Voluntário Europeu e promover a integração do voluntariado no ensino: até 2020, 100 mil jovens europeus serão convidados a ser voluntários no Corpo Europeu de Solidariedade.
. Produzir um relatório sobre os regimes nacionais de concessão da cidadania europeia aos investidores, incluindo legislação, práticas nacionais e orientações aos Estados-Membros.
2) Promover e melhorar a participação dos cidadãos na vida democrática da UE
. Intensificar o diálogo com os cidadãos e incentivar os debates públicos com vista a aumentar o conhecimento geral e o intercâmbio de opiniões sobre o impacto da UE na vida dos cidadãos.
. Elaborar, em 2017, um relatório sobre a aplicação da legislação da UE em matéria de eleições locais, garantindo o exercício efectivo do direito de voto a este nível.
. Promover boas práticas que fomentem candidaturas e afluência às urnas nas eleições europeias de 2019, garantindo uma ampla participação democrática.
3) Simplificar as viagens, vida e trabalho dos cidadãos em toda a UE
. Propor a criação de um “Portal Digital Único”, para facilitar o acesso a serviços de informação e apoio e permitir que os cidadãos efectuem em linha os procedimentos administrativos em situações transnacionais, ligando serviços nacionais e da UE e reduzindo a burocracia no fornecimento de dados.
. Facilitar as viagens multimodais à escala da UE, melhorando a interoperabilidade e a compatibilidade dos sistemas e serviços, a fim de tornar a mobilidade dos cidadãos mais eficiente e amiga do utilizador.
4) Reforçar a segurança e promover a igualdade
. Concluir no primeiro trimestre de 2017 o estudo para melhorar a segurança dos documentos de identidade e de residência dos cidadãos da UE que vivem noutro Estado-Membro; e avaliar as próximas medidas a tomar, tendo em vista uma eventual iniciativa legislativa até ao final do ano.
. Avaliar a modernização das normas relativas aos títulos de viagem provisórios para os cidadãos de países da UE não representados, em 2017, garantindo que os cidadãos possam exercer o direito à protecção consular.
. Realizar também este ano uma campanha sobre a violência contra as mulheres e apoiar activamente a adesão da UE à Convenção de Istambul; e apresentar propostas para fazer face aos desafios da conciliação entre a vida profissional e familiar.
. Desenvolver acções para melhorar a aceitação social das pessoas LGBTI na UE, promovendo a igualdade dessas pessoas; e apoiar activamente a conclusão das negociações sobre a proposta de directiva de luta contra a discriminação.
Jornalista