Quem o afirma é Ramiro Martins, responsável por um estudo elaborado pela AESE Business School que visou aferir o impacto da pandemia na vida pessoal e profissional numa amostra que incluiu mais de 600 gestores. Os resultados deste inquérito serviram de mote para uma conversa sobre o presente e o futuro provável, trabalho e lazer, conciliação e, essencialmente, sobre tudo o que deixámos de dar como adquirido. O que, e nas palavras do professor entrevistado, não é necessariamente mau, mas antes um ponto de partida para um mundo que, sem dúvida diferente, poderá ser melhor
POR HELENA OLIVEIRA
A AESE Business School inquiriu, entre 3 e 7 de Abril, 608 gestores sobre o impacto da pandemia na sua vida pessoal e profissional. Destes, 75% dos respondentes encontram-se em teletrabalho integral ou parcial, com 38% a afirmarem trabalhar mais do que 9 horas diárias. Com uma resistência inicial à difícil tarefa de conciliar teletrabalho com o facto de se ter, em simultâneo, os filhos em casa, a verdade é que a vida organizacional fora das fronteiras da empresa atingiu uma espécie de velocidade de cruzeiro. Depois de anos de dúvidas relacionadas com o trabalho remoto, as empresas poderão ter percebido que os seus colaboradores podem ser igualmente produtivos em casa e que ter um escritório a tempo inteiro, pelo menos em determinados sectores, deixou de fazer sentido. E, ao contrário do que defendem muitos especialistas, o responsável pelo estudo, Ramiro Martins, não considera que a criatividade possa vir a ser afectada se os trabalhadores estiverem fisicamente distantes. Sobre a crise provocada pela pandemia, e porque acredita que as adversidades aguçam o engenho humano, o Professor de Política Comercial e Marketing da AESE comenta, em tom optimista, que se esta não se tornar endémica, a recuperação económica será mais rápida, apesar de, e obviamente, existirem sectores que já estão a ser e serão fortemente abalados, nomeadamente os que mais intrinsecamente relacionados com a mobilidade estão. E o seu optimismo estende-se igualmente ao futuro, num misto de lições aprendidas com esta crise e a valorização de pequenos grandes nadas que passaram a fazer muito mais sentido e que poderão transformar o mundo num local melhor.
Quando comparada a produtividade em teletrabalho versus a mesma em “actividade normal”, 31% respondentes consideram ser menos produtivos em casa, com 5% a sublinharem ser “muito menos produtivos”. Todavia e tendo em conta que o tempo passado em reuniões virtuais é muito significativo – 28% afirmam passar entre 3 a 5 horas em reuniões online e 39% entre 1 a 3 horas – os respondentes consideram-nas, pelo contrário, mais produtivas do que as reuniões presenciais. Na sua opinião, o que explica este facto?
Aquilo que me pareceu mais relevante neste estudo que a AESE fez sobre o impacto da pandemia na vida pessoal e profissional tem a ver com uma dupla visão que se tem do teletrabalho. Se por um lado o teletrabalho é menos produtivo, por outro, quando se chega às reuniões, elas são mais produtivas. No que respeita ao teletrabalho, surgiram algumas perturbações, em particular no que respeita à conciliação, e em especial nesta fase em que as pessoas foram para casa compulsivamente sem existir preparação nenhuma, nem por parte das organizações nem delas próprias. E, portanto, houve a necessidade de existir uma conciliação de diferentes tarefas, profissionais e pessoais, entre as quais eu destacaria a presença das crianças em casa, (muito referida também noutros estudos) – na medida em que, e por exemplo, também competem com os computadores e com a internet para poderem aceder às suas próprias aulas – e que explicam por que motivo o teletrabalho, nestas circunstâncias em particular, possa ter sido menos produtivo para um determinado grupo de pessoas. Já os slots específicos de reuniões em que o tempo é limitado implica que este seja usado com mais objectividade e que as pessoas estejam mais focadas.
Então e num contexto diferente, de “maior normalidade” o teletrabalho pode ser considerado como uma opção positiva….
Eu penso que a sensação que tivemos nesta fase não é algo que se venha a repetir se o teletrabalho passar a ser uma norma e as pessoas tiverem uma vida mais estruturada e organizada. Quando a vida retomar com alguma normalidade, com o facto de as crianças passarem a frequentar as suas escolas, tendo os seus horários e não existindo uma competição em casa pelos meios de comunicação, haverá seguramente um aumento de produtividade que irá alterar esta percepção.
Parece óbvio que o trabalho não vai voltar a ser como era. Que benefícios se podem esperar desta “viragem” – da qual os empregadores desconfiavam em muitos casos – e o que mais se perde se o teletrabalho for adoptado como norma em muitas empresas? Será uma tendência que se transformará numa norma?
Eu não tenho dúvida que as coisas não vão ficar, de forma nenhuma, como antes. Ainda na semana passada, empresas como a Google, o Twitter ou o Facebook anunciaram que iriam propor aos seus trabalhadores que permanecessem em casa e com o Facebook a propor um prémio de mil dólares para quem optar pelo trabalho remoto. Não acredito que os mil dólares sejam uma bonomia empresarial, mas é a constatação de que um escritório é um espaço caro. É caro pelo metro quadrado, pela segurança, pela limpeza, pela energia, é caro de variadas maneiras. Portanto, as empresas que sempre consideraram que, um dia, o teletrabalho iria ser o futuro, mas não se abalançavam a implementá-lo, nestas circunstâncias foram obrigadas a fazê-lo. Todos fomos obrigados a fazê-lo e constatamos que afinal era possível. E num espaço de tempo muito curto – em 24, 48 ou 72 horas – as empresas organizaram-se de tal forma que as pessoas passaram a trabalhar em casa, a interagir entre si e a funcionarem normalmente. Ou seja, tudo se manteve dentro de uma certa normalidade. Assim e perante esta constatação, é evidente que as empresas prevêem já economias muito significativas e, como tal, questionam “porquê voltar outra vez a um processo de presença física sistemática quando podemos ter exactamente o mesmo resultado sem termos estes gastos?”. E, portanto, acredito que vão surgir algumas alterações, como a existência de um escritório virtual – virtual na total acepção da palavra porque estaremos a trabalhar online – e um escritório para nos reunirmos num determinado sítio, como se fosse um happening, onde uma vez por semana ou uma vez por mês – conforme a indústria e os requisitos necessários -, será possível existirem momentos em que as pessoas irão estar presencial e fisicamente umas com as outras, mas não fazendo sentido ter um escritório 100% do tempo. Não vale a pena ter um escritório aberto o mês inteiro, pois as pessoas terão o seu posto de trabalho em casa, mas havendo a falta, em determinados contextos, de reunir os colaboradores pontualmente, o “rent-a-office for a day” será, a meu ver, uma tendência. E, provavelmente, até os próprios locais onde os sistemas estão instalados irão migrar para locais onde as rendas são mais baratas, ou seja, com as capacidades dos sistemas de informação a funcionar na perfeição, não precisamos de ter escritórios no centro de uma cidade, mas sim num sítio mais remoto onde o metro quadrado é muito mais barato. Prevejo, portanto, a existência de algumas migrações geográficas relacionadas com esta realidade.
Mas há também quem defenda que se o teletrabalho se tornar norma, as empresas poderão perder muito em termos de criatividade, por exemplo, e que as pessoas possam sentir-se mais isoladas…
Eu tenho sempre uma visão positiva das alterações. Por exemplo, apesar de aceitar e privilegiar até em algumas empresas os sistemas de inteligência artificial e de machine learning – algo que poderá trazer insights muito significativos para as organizações – não partilho da ideia de que estes sistemas, de per se, vão substituir as pessoas, mas sim completá-las.
E quer as pessoas estejam em ambiente colectivo, ou num ambiente colectivo virtual ou individualmente nas suas casas, acredito que a mente humana é muito rica e que quando existe uma limitação, consegue encontrar um outro caminho que irá obter os mesmos, ou até melhores, propósitos. Acredito que no balanço final as limitações serão ultrapassadas, pois do outro lado das adversidades encontrar-se-ão soluções imaginativas e criativas.
Ou seja, se em teletrabalho as pessoas conseguirem estruturar-se e organizar-se de modo a cumprir os mesmos objectivos num espaço de tempo mais curto, vão ter mais tempo livre, o que lhes vai permitir reflectir mais, observar o mundo, ter mais ideias e, tendo em conta estes insights, poderão pensar em novas iniciativas. Assim, não vejo que o isolamento individual – até porque não é um isolamento de verdade devido aos meios que temos hoje – não sirva para surgirem novas ideias, novas capacidades, as quais muito provavelmente estariam adormecidas no “ram ram” do dia-a-dia se não tivesse acontecido esta pandemia.
Portanto, para os que dizem que estando fisicamente afastados a criatividade será menor, eu digo que talvez seja maior. A necessidade aguça o engenho e é assim que a humanidade tem progredido. Não tenho uma visão nada negativa a este respeito.
Se por um lado 59% dos entrevistados acreditam que as empresas retomarão a sua actividade “normal” num período de três a seis meses, 33% dos mesmos acreditam que só daqui a um ano os consumidores voltarão a ter padrões similares de consumo comparativamente ao período pré-pandemia. Como se explica esta discrepância/desfasamento?
Tendo em conta que a recolha de dados para este estudo foi feita entre 4 e 7 de Abril e a nossa conversa está a decorrer em meados de Maio, entre estes dois momentos já muita informação e compreensão foram geradas, temendo até que os dados possam estar ligeiramente ultrapassados. Mas a forma como a pergunta estava estruturada nessa altura referia-se ao retomar da nossa vida “normal” nas empresas, o voltar aos escritórios, o retomar do volume de negócios, que negócios iam correr melhor ou por, etc.. Relativamente a estes últimos, temos já a noção de que os que estão a correr melhor são aqueles que, por causa da pandemia, ganharam um boost. Um bom exemplo é o da venda de acrílicos, cuja facturação deve estar a explodir. Ou seja, há efeitos positivos. Outros negócios, por seu turno, estarão desesperados. Se eu tenho um restaurante – e até comprei acrílico para separar as mesas, mas a minha lotação era de 80 e agora só posso servir 40 pessoas – e também não posso aumentar os preços porque posso não ter clientes -, o exemplo é o de um negócio que pode correr mal. Mas a ideia de que todos os negócios correrão mal não é verdadeira. Penso que deve existir a noção de que não estamos perante um problema estrutural, mas sim de um problema circunstancial com consequências. A meu ver, se a situação não se tornar endémica, haverá recuperação.
Já a questão de quando é que os consumidores vão retomar o seu poder de compra é diferente. Quanto mais os negócios forem melhorando, mais emprego há, quanto mais emprego há, mais consumo há, quanto mais consumo existir, mais os negócios vão melhorar. Há um ciclo virtuoso que vai decorrendo ligeiramente desfasado e esse delay pode ser visto nestas duas realidades. E, repito, existem negócios que estão a correr muito bem nesta pandemia, com outros que vão ter de se reequacionar completamente. Penso que a muito breve trecho iremos assistir ao colectivo dos gestores nas suas empresas a terem processos de reflexão profunda, a reunirem com os decisores das organizações para repensarem quais são e como gerar novos factores de sucesso. E, deste processo criativo, julgo que vai surgir uma maior competitividade da economia como um todo. O engenho faz, realmente, crescer a actividade económica. Tal como a confiança. Portanto, se esta moeda – a confiança – entrar na mente das pessoas, a crise desaparecerá mais rapidamente também.
São já visíveis os sinais de catástrofe para vários sectores, nomeadamente para os que, directa ou indirectamente, têm a ver com viagens: turismo, aviação, restauração, hotelaria são os mais óbvios. Estas indústrias terão de se reinventar se não quiserem desaparecer de vez. A seu ver, quais os principais impactos, hipóteses de sobrevivência e alterações substanciais a que assistiremos a médio prazo nestes mesmos sectores?
Cada sector tem e sempre teve os seus problemas específicos e cada um terá de encontrar, seguramente, novos caminhos. Claro que o da restauração não é igual ao da aviação, mesmo sabendo nós que estão ligados. Mas deixe-me fazer aqui uma breve reflexão. O que é que é um turista? É uma pessoa que estava num sítio, que ganhou reservas económicas e que com essas reservas económicas foi para outro sítio, no qual as gastou. Portanto o que gastava num local gastou noutro. Se nós pensarmos, em Portugal, qual o saldo entre as pessoas que saíam e os estrangeiros que entravam, o problema torna-se relativo e não absoluto. Se anteriormente eu ia passar férias ao norte de África porque me apetecia e agora [porque não posso viajar de avião] vou antes para o sul de Portugal, onde anteriormente eu deixava dinheiro no norte de África, deixo agora no sul de Portugal.
Ou seja, a sua ideia é que o turismo não vai ser tão afectado na medida em que o podemos “localizar”, é isso?
Sim, e ao que acresce o que eu gastava nas viagens de avião, que passam também a ser reservas que ficam no meu bolso e que provavelmente vou gastar no meu país. O que eu considero que foi verdadeiramente posto em causa pela pandemia foi a mobilidade, que passou a zero. E durante muito tempo a mobilidade não vai retomar os números antigos. E são os negócios que estão intrinsecamente ligados à mobilidade que estão com problemas muito delicados e que irão ter um longo sofrimento, sendo a aviação um deles. Por outro lado, os negócios que beneficiam da mobilidade, mas que não estão intrinsecamente ligados à mesma terão, a meu ver, um tempo de resposta bem mais curto. E, portanto, esse dinheiro vai ficar cá. E provavelmente as soluções que serão encontradas vão ser imaginativas quanto baste.
O lazer e o estar com amigos e familiares deverá, de acordo com os auscultados, privilegiar o “espaço dentro de casa”. O que pensa que vai acontecer a actividades tão outrora normais como ir jantar fora, ao cinema, ao futebol, aos concertos? Considera ser possível repensar estas actividades e voltar a dar a confiança suficiente às pessoas para voltarem ao “exterior”? Ou será que o medo vai ser mais forte do que a vontade de voltarmos a fazer o que fazíamos antes de isto acontecer?
Durante este período houve certos prazeres esquecidos que foram redescobertos. E toda a comunicação, ou seja, a forma como as ofertas outdoor estavam estruturadas, era no sentido de empurrar as pessoas para saírem, para consumirem, para estarem sempre em actividade, para estarem sempre a fazer coisas. Lá fora. É o capitalismo de massas no seu melhor e era assim que as coisas estavam estruturadas. E nós, ao longo do tempo, fomos sentindo que quando não fazíamos nada era como se estivéssemos a perder uma oportunidade de viver. Neste processo em que todos fomos obrigados a ficar parados, e a fazer coisas que já há muito tempo não fazíamos, é provável que alguns prazeres tenham sido redescobertos. E na medida em que será mais difícil ir jantar fora com a família e os amigos, é natural que as pessoas abram as portas de sua casa para os receber, pois esta poderá ser a única forma de se poder socializar e confraternizar nos tempos mais próximos. E os resultados do estudo da AESE demonstram que “eu redescobri o meu espaço em casa” e que para se socializar não é preciso sair lá para fora. Existem outros exemplos, como as relações entre pais e filhos, que foram extremamente melhoradas. Isto é redescobrir e são pequenos prazeres redescobertos que provavelmente vão permanecer. Experimentaram, gostaram, mantêm. E vejo isso como um contraponto. Por outro lado, a vida outdoor vai-se ressentir um bocadinho, mas o estudo também não aponta assim para uma queda brutal, e recordando mais uma vez que o mesmo foi feito entre 4 e 7 de Abril, numa altura em que as pessoas estavam muito assustadas com as notícias. Acredito que se o estudo fosse feito novamente agora, alguns resultados seriam ligeiramente diferentes.
E essa redescoberta dos prazeres de que fala poderá explicar de alguma forma o facto de 44% dos inquiridos afirmarem que estão confiantes que o mundo vai ficar melhor depois desta “prova de fogo”?
Eu acho que sim. As pessoas dizem que vai ficar diferente (75%), apesar de não saberem como, mas o estado de espírito não aponta para que o mundo vá entrar numa catástrofe. A verdade é que esta situação tocou as pessoas de uma forma muito significativa. Num espaço de tempo muito curto, fomos confrontados com emoções muito fortes: a separação de famílias, o isolamento dos mais idosos, as visitas que não se podiam fazer, as coisas que dávamos por adquiridas como dar um abraço a um amigo que deixou de poder ser porque temos de estar a dois metros… Tudo isso recorda-nos a fragilidade do ser humano – o de darmos tudo sempre como adquirido e estarmos sempre a ambicionar ter outras coisas, presumindo que o que temos é adquirido. E não é. E esta fase veio demonstrar que nada é adquirido e que tudo pode desaparecer num riscar de fósforo. Aprendemos também a dar uma nova importância aos serviços de saúde, à bonomia dos profissionais que generosamente tiveram de se separar das suas famílias e viver horas e horas no trabalho, a reflectir e a sentir que há muitas emoções que são mais profundas do que poderíamos pensar. Tudo isto teve um enorme impacto na sociedade e de forma sistemática e simultânea.
Mas não esperava então este resultado optimista?
Digo-lhe com franqueza que não esperava. Eu sabia qual era a minha intenção de resposta, mas não esperava que a mesma tivesse tanto eco como teve, que tantas pessoas acabassem por sentir da mesma maneira o que eu sentia. O facto de as pessoas responderem que será diferente e que embora não saibam como, não terá de ser necessariamente pior, teve uma adesão muito superior à minha expectativa. Sou um optimista por natureza mas, na verdade, este resultado veio-me confortar. E a minha perspectiva está ligada ao facto de muitas pessoas, em simultâneo, se terem confrontado com a fragilidade que todos temos e do enorme valor que têm os pequenos actos, os pequenos gestos, e isso corresponde à perspectiva que o mundo pode vir a ser melhor e não pior.
Está prevista uma outra edição do estudo?
Dado que entrámos agora numa nova fase, com a introdução de novas medidas, penso que antes de final de Junho não valerá a pena. Com as mudanças introduzidas já em curso, com um patamar de alguma estabilidade e numa altura em que existam percepções mais consolidadas da nova realidade, então sim, fará sentido repeti-lo.
Editora Executiva