Como foi que cheguei aqui? É verdade que consegui e que estou mesmo a voar pendurado num parapente?! Onde estaria eu neste momento se ainda fosse o velho técnico de informática? Não, definitivamente não voltaria a um escritório, aos computadores cheios de birras e caprichos, às longas filas nas estradas de Lisboa, às horas perdidas nos engarrafamentos da IC19, da A5, da 2ª Circular… Não! A esta hora, em vez de estar a voar na Fonte da Telha e a ensinar os meus alunos a voar estaria nessa espécie de inferno na Terra
POR SÉRGIO CALDEIRA
Alunos no ar? Ok. Descolagem desimpedida, sem pilotos a voar à frente? Ok. Então vira, dá carga à asa e corre.
Segundos depois estou no ar, a voar na companhia de alunos e amigos, a vastidão do Atlântico na nossa frente, as praias douradas da Costa de Caparica estendidas por quilómetros lá em baixo, a uma centena de metros, e a alegria das gaivotas e das pessoas que se atrevem a voar é uma realidade palpável.
É quase impossível descrever o vôo livre em parapente: é uma sensação de liberdade, de flutuação no ar, de elevação de corpo e alma, impossíveis de expressar por palavras. Sobre a minha cabeça, a uns seis metros, uma bela asa colorida de cores garridas feita de tecido, umas linhas a ligá-la à cadeira onde voo sentado, e uma brisa que se escuta e se sente. Brisa mágica, capaz de levar com ela qualquer preocupação ou vestígio de tristeza.
Como foi que cheguei aqui? É verdade que consegui e que estou mesmo a voar pendurado num parapente?! Onde estaria eu neste momento se ainda fosse o velho técnico de informática?
É necessário recuar meio século para encontrar as raízes que hoje justificam estar a voar, a fazer rigorosamente o que quero e me dá prazer, meio de subsistência garantido numa actividade que sei hoje não trocaria por nenhuma outra. Às vezes penso no que faria se o meu velho emprego de informático por quase três décadas me fosse de novo acenado: e se me pagassem o dobro, ou o triplo, ou..? Não, definitivamente não voltaria a um escritório, aos computadores cheios de birras e caprichos, às longas filas nas estradas de Lisboa, às horas perdidas nos engarrafamentos da IC19, da A5, da 2ª Circular… Não! A esta hora, em vez de estar a voar na fonte da Telha e a ensinar os meus alunos a voar estaria nessa espécie de inferno na Terra.
O sonho comanda a vida, diz o poeta, mas às vezes a vida traça um caminho nada linear para o atingir. Recuando meio século volto ao Casal (No Oeste há casais, não montes), mas por acaso o casal que tem o nome do bisavô e também o meu fica num monte. O vento norte é comum por lá, e eu na minha infância solitária – não havia outros meninos, e crianças só as minhas irmãs – sonhava que voava! Ah, aquelas nuvens parecendo pompons branquinhos, que bom seria ir até eles, voar como as águias de asa redonda que viviam ali a lado no bosque da quinta Moita Longa. Mas nessa altura voar parecia tão remoto quanto as estrelas que via e admirava no céu nocturno, milhares delas a cintilar numa noite que era negra quando não havia lua, porque nesse tempo a única luz nocturna era a do candeeiro a petróleo, ou os milhares de pirilampos que vagueavam nas noites quentes de Verão.
Nessa altura voar significava fazer papagaios de papel, juntando caniços, papel ou plástico, roubar o rolo de linha de lã à mãe, ou o rolo de cordel do pai, e fazer papagaios sempre maiores, que soltava na colina junto à velha casa de adobe.
Teria uns oito anos, e ia à aldeia sentado no lombo da Carriça, a nossa burrita, trocar trigo por farinha para a fornada semanal que a mãe amassava. Pão quente, massudo e pesado, comido assim saído do forno, com um fio de azeite e uma pitada de açúcar, ou recheado de torresmos, ou chouriço, ou duas sardinhas gordas a pingar, cozido às vezes sobre uma folha de couve-galega que lhe dava um sabor especial. Nesse dia estava todo ufano: tinha feito um papagaio gigante com a maior linha que consegui, e quando cheguei ao velho moinho, lá em baixo na aldeia, conseguia ver o meu engenho a bailar no vento norte, aquele mesmo vento que fazia girar o engenho de velas brancas do moinho. Na adolescência o sonho subsistiu, mas a linha da vida teimava em ser feita de curvas e contracurvas, e voar era sonho impossível. “Não penses ser piloto rapaz, isso não é para ti!”
Poucas coisas são mais cruéis e destrutivas do que matar os sonhos de uma criança, e ainda hoje as entranhas se revoltam quando escuto alguém a dizer isto a uma criança! Podiam matar tudo, a vida podia pôr ratoeiras no caminho, a pior de todas a orfandade precoce com a partida da mãe, mas o sonho de voar morreria no dia em que eu morresse.
Com a adolescência veio a mudança para Lisboa. Não tinha, não tenho e duvido que alguma vez venha a ter gosto pelo cultivo da terra ou pela pastorícia que pratiquei em criança. O meu mundo era feito de livros, de sonhos, e de um zénite que a aldeia nunca me permitiria conhecer.
Os anos 80 trouxeram a CEE até ao velho Portugal e com ele veio a possibilidade de aprender informática. O choque foi brutal, nada me tinha preparado para tal, mas o pequeno curso do fundo social europeu deu-me as ferramentas básicas para saber lidar com computadores, e desde então foi essa a minha profissão.
Os 40 anos trouxeram a famosa crise: na melhor das hipóteses teria outros 40 para viver, e olha lá! Pensei quer não iria morrer sem voar – as viagens de avião que fazia não contavam verdadeiramente para isso. Decidi procurar uma escola de parapente, e meses depois lá estava eu pendurado num trapo voador, na companhia de um instrutor! Ali mesmo, na Fonte da Telha, hoje o nosso “escritório” de eleição. “Zé, está feito, isto é mesmo para mim”. Assim o disse ao piloto que me levava a voar. “Ok, então vem fazer o curso”. E fiz: o curso de piloto de parapente, e todos os estágios e averbamentos necessários até atingir o topo.
2007 trouxe a crise global, e com ela perdi o meu emprego de mais de 20 anos naquela empresa! A crise atingiu-me em cheio: Meu Deus, e agora? Quem me iria querer para trabalhar com aquela idade? Como iria sobreviver dali em diante?
A única coisa que me dava alento era a alegria de voar, e de repente lembrei-me que muitas vezes me pediam e eu pousava para ajudar outros instrutores a fazerem os baptismos de voo que poucos anos antes eu mesmo havia feito. E se eu… e se eu fizesse o curso de instrutor e abrisse a minha própria escola de parapente? Medo? Sim, algum; mas maior era o medo de não viver, de me entregar ao desalento.
Fiz o curso de instrutor, criei a UonAir, adquiri equipamentos, criei um website, páginas nas redes sociais, e os alunos foram aparecendo. Devagarinho, a pulso, mas lá fui pondo os meus conhecimentos em prática, transformei o meu hobby na minha profissão, e hoje alio o prazer de voar ao prazer de ensinar outros a voar. Daqui a um mês irei levar os meus alunos à “catedral mundial do parapente”. A vila de Oludeniz, na Turquia. Para quem não conhece, é uma espécie de serra da Arrábida em ponto gigante. Uma montanha com dois quilómetros de altura com uma praia gigante cá em baixo, junto ao tranquilo Mediterrâneo.
50 anos, finalmente feliz a fazer o que gosto e a governar-me com isso. A cereja sobre o bolo? Sempre gostei da forma de trabalhar do meu antigo instrutor. Às vezes dizia-lhe que gostaria de o ter como sócio. “Quem sabe, talvez um dia Sérgio”. E há três anos foi o dia: deixou o seu emprego de instrutor noutra empresa e hoje é o meu sócio. Tocamos juntos a UonAir, formamos uma equipa que gere a escola e outros pilotos, e quando vamos para as praias ensinar os nossos alunos brincamos com o “aborrecimento” de ter que ir trabalhar para o “escritório”. Nós sabemos que temos o melhor “escritório” e a melhor profissão do mundo, e se alguma coisa aprendi no meio século que já levo, é que devemos sempre acreditar e perseguir os nossos sonhos, a despeito daquilo que gente vencida e azeda e nos diga em contrário.
Sérgio Caldeira
Director da UonAir – Escola de Parapente; Licenciatura em Antropologia, seguida de pós-graduação na vertente Natureza, Conservação e Biodiversidade na Faculdade de Ciências Humanas na Universidade Nova de Lisboa; Formação Desportiva em voo livre – modalidade parapente