Uma em cada três pessoas esconde os sentimentos no trabalho. São esses os resultados de um estudo realizado no Reino Unido e os resultados por cá não devem ser muito diferentes. As nossas emoções são o que nos torna humanos. Elas dão-nos a nossa capacidade de colaboração, inovação, criatividade e conexão. As atitudes tradicionais que nos ensinaram a deixar as nossas emoções à porta do local de trabalho já deviam ter desaparecido há muito tempo, mas não desapareceram. A pessoa que somos só pode entrar… em parte
POR HELENA GONÇALVES e ANA ROQUE
“Senti as lágrimas chegarem, mas recusei-me a chorar. Mordi meu lábio e não disse mais nada. Eu era a única corretora da bolsa na empresa, e chorar teria validado os estereótipos sobre as mulheres num campo dominado pelos homens. Quando aceitei o trabalho, sabia que teria que provar o meu valor todos os dias, e isso incluía mostrar que eu poderia aceitar e seguir em frente.”
“Cometi um grande erro quando estava a trabalhar numa empresa multinacional que provocou más notícias na imprensa local e poderia ter chegado à imprensa nacional. Isso poderia ter-se transformado numa história nos media nacionais. Algumas pessoas da empresa foram muito desagradáveis comigo. Chorei a maior parte do dia em que isso aconteceu. Muito de forma privada apenas em frente do meu chefe. De qualquer forma isso criou a perceção de que não me encaixava no molde corporativo. Sou chorona e acabei por perceber que não poderia ser eu mesmo no mundo corporativo.”
Estas são algumas das histórias que encontrámos quando começámos a investigar sobre como se expressam os sentimentos na empresa. Chorar era só um exemplo, mas chorar é humano, o nosso choro é desencadeado por uma série de sentimentos – de empatia, surpresa, raiva e tristeza – as lágrimas são um sinal que os outros podem ver, tornam-nos de alguma forma vulneráveis numa sociedade que ainda condena a vulnerabilidade, que ainda insiste na definição das pessoas como seres racionais. É um paradoxo que fica claro no mundo das empresas: considera-se e espera-se que as pessoas sejam racionais, quando falamos dos “internos” (colaboradores, fornecedores) e que sejam emocionais, quando se trata de clientes ou de consumidores que é preciso conquistar (como demonstram as campanhas publicitárias).
Em muitos dos artigos que lemos refere-se que chorar no trabalho pode ser aceitável quando é por uma questão pessoal, como por exemplo a doença de um familiar ou um divórcio; mas chorar por razões profissionais parece ser inaceitável, coloca-nos na categoria dos fracos. E, no entanto, a maioria das pessoas já sentiu em contexto profissional (de acordo com mesmo estudo britânico) situações emocionalmente muito fortes: surpresa (90%), raiva (85%), tristeza (82%), nojo (71%) e medo (61%). Muitas destas emoções tiveram origem na relação com os colegas, outras nas próprias tarefas que era suposto executar.
As emoções não podem ser diferidas. Elas não morrem, elas transformam-se em doenças psicossomáticas e em mal-estar.
Por tudo isso, pelas consequências em termos de saúde mental que a inibição de sentimentos comprovadamente provoca e por muitas vezes essa inibição estar ligada a estereótipos, a um não respeito pela diversidade, consideramos importante tratar o tema no Fórum de Ética.
Partimos do choro e da expressão de alegria porque, apesar de tudo, a raiva, o desprezo e outros sentimentos negativos são mais aceites em contexto laboral.
O caso que escolhemos para reflexão entre os membros do Fórum foi o seguinte:
A Maria chora de mais.
Comove-se, leva a peito, chora pelo bem e pelo mal.
Abraça, toca as pessoas, diz que o toque é importante.
Ri muito. Uma vez quando se ganhou um projeto importante, levantou-se da cadeira e dançou na sala, uma espécie de dança de vitória, de celebração.
De resto, é profundamente conhecedora da sua área, investiga, procura melhorar, ultrapassa os objetivos, seria uma profissional de mão cheia, seria uma aposta segura como futura líder se não fosse o seu feitio, a falta de profissionalismo da sua forma de estar e de viver as emoções. Foi isso que disse o seu chefe ao seu próprio chefe quando falavam da avaliação no departamento e das pessoas que tinham oportunidade de progredir.
Disse isso e concordaram os dois que ela não teria a melhor avaliação.
Não é que ela não estivesse no topo em termos de proficiência para cada uma das competências, a questão é que tinha uma grande “proficiência” em competências que não eram pedidas. Não percebia o que eram partes de si para trazer para dentro da empresa e quais deviam ser deixadas lá fora.
Não percebia, mas passou a perceber quando recebeu os resultados da avaliação e lhe disseram o porquê e lhe falaram da importância de mudar.
E ela começou a mudar: deixou de dançar de impulso, de rir desalmadamente. Controlou o impulso e ficou só com a vontade de chorar que tenta esconder.
Continuava competente, mas com menos gosto, sente-se reprimida nas 8 horas mais ativas de cada um dos seus dias e quando sai dessas horas e entra na “vida pessoal” estava morta de cansaço.
Maria sente que não há espaço para ela como pessoa na empresa, sente-se deprimida, a sufocar.
Sem saber com quem falar, mas a precisar de falar resolve dirigir-se à pessoa responsável pela ética e conta-lhe o que sente. Diz que não está a fazer uma reclamação relativa ao seu caso pessoal, está-lhe a pedir que intervenha no sentido de promover um maior espaço para a pessoa na empresa. Pede-lhe que promova uma discussão mais alargada sobre o assunto.
Esta situação foi o ponto de partida para a reflexão sobre um conjunto de questões, designadamente sobre se este é realmente um assunto para a pessoa responsável pela ética e qual pode ser o seu papel no acolhimento e resolução do pedido.
Pensamos que é claramente um caso para a pessoa responsável pela ética, apesar de não ser linear e não ser fácil de “vender” internamente.
É um caso que toca algo de muito profundo, toca a cultura da organização, aquilo que é considerado aceitável ou não, algo que é difícil de mudar, algo que pode fazer com que a pessoa que ri ou que chora possa ser vista como um erro de casting da organização, da qual, eventualmente, seria mais cómodo que pessoas que não “encaixem” nos padrões (pré)definidos não fizessem parte. Mas, de facto, é um tema que tem a ver com diversidade, com respeito pela Pessoa, pela Pessoa integral.
Será que esta organização se poderia considerar diversa? Se, na organização onde se passa o caso, fizéssemos a pergunta: quando pensas na forma como avaliamos as nossas pessoas e no que valorizamos ou penalizamos, quais dirias que são os nossos valores?
Será que a resposta incluiria diversidade? E no entanto, há uma grande probabilidade da diversidade fazer parte dos valores defendidos e declarados pela organização, muitas organizações têm diversidade como valor nos seus códigos de ética, aliás diversidade está no top 10 dos valores corporativos, em termos mundiais. Diversidade significa variedade, pluralidade, diferença, e inclui, naturalmente, a sensibilidade e a vulnerabilidade de cada um, aliás, características intrínsecas da Pessoa.
Esse poderia ser um tema para ser debatido por quem tem responsabilidade na área da ética como por quem tem a responsabilidade dos recursos humanos para, em conjunto, perceberem quais as condições de respeito pela Pessoa na empresa e como se poderia lidar com a questão.
Uma das razões pelas quais chorar é, muitas vezes, mal visto, é a dificuldade por parte dos outros em saber como reagir. Poderá ser papel da pessoa responsável pela ética promover o desenvolvimento de competências internas, nomeadamente nas chefias, que permitam trazer para as conversas das equipas o que se sente ou sentiu, que impeçam que os sentimentos se transformem em angústia e medo. Ajudar a criar a segurança psicológica para falar e para aceitar que nem tudo é perfeito.
Por mais que pareça acessório e deslocado do que é a gestão da empresa este é um aspeto fundamental, porque cada vez mais as pessoas sentem a necessidades de serem no trabalho mais do que um recurso humano, mais do que um gestor, uma secretária, um técnico de manutenção, um formador. Precisam desse reconhecimento de ser mais do que um profissional, do reconhecimento de si enquanto pessoa (pai, mãe, desportista, extrovertido, melómano…) para o seu bem-estar e para a sua saúde que, como bem refere a OMS, é o estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não só a ausência de doenças. Trata-se de uma abordagem mais próxima do potencial humano do que do recurso funcional (que mais facilmente seria substituído pela máquina).
A atenção à pessoa enquadra-se no conceito da qualidade de vida no trabalho, que corresponde ao grau de satisfação das necessidades pessoais que o trabalhador consegue ter enquanto exerce sua função e que é um dos indicadores da saúde organizacional. Essa satisfação das necessidades pessoais é também onde repousam entre outros a criatividade, a capacidade de imaginar, criar, inventar, superar-se. Exige ter em atenção as competências, as experiencia, os saberes, mas também as emoções e a própria personalidade de cada pessoa, as suas necessidades e as relações no contexto da empresa.
De acordo com um estudo realizado em França em 2018 (não encontrámos dados de Portugal) sobre os fatores de stress no trabalho, apenas 25% dos trabalhadores pensam que a sua organização desenvolve iniciativas visando a qualidade de vida no trabalho e o acompanhamento da pessoa e 50% considera que o seu empregador não os conhece, o que indicia uma real necessidade de escuta.
Voltamos sempre ao repto lançado às empresas por Kofi Annan, uma vez que o que é pedido não é que as empresas “façam algo de diferente da sua atividade normal, mas sim que façam a sua atividade normal de forma diferente”, seja esse “diferente” a internalização dos custos ambientais dos produtos e serviços, seja a criação de espaço para a Pessoa com as suas características, entre as quais a vulnerabilidade e toda a sua complexidade.
É por isso fundamental assumir que a empresa é também um espaço de relação, de humanização, de cuidado, que permite que nos conheçamos, e por isso respeitemos, cada Pessoa que connosco trabalha.
É um verdadeiro desafio para o qual é preciso encontrar um equilíbrio porque não se trata do geral, cada pessoa é única, é Ela. Como refere Susana Magalhães, especialista em medicina narrativa, “O cuidado é sempre concreto, relacional, responsável e comprometido, pelo que, para cuidarmos bem, temos de resgatar três conceitos que têm sido roubados na sua espessura, tornando-se tão magros que quase não os vemos: Tempo, Palavra e Relação.”
O tempo essa coisa tão difícil das empresas! E, no entanto, é fundamental encontrar tempo (cronológico e de escuta) para que cada um possa exprimir as suas emoções, possa narrar a sua história para desvelar o que é a Pessoa (na empresa) e, consequentemente, para cuidar da cultura ética.
Helena Gonçalves e Ana Roque, coordenadoras do Fórum de Ética da Católica Porto Business School