POR MÁRIA POMBO
A “construção de um mundo no qual todos podemos ser agentes de transformação social positiva” é a grande meta da Ashoka, que procura desconstruir a sociedade hierarquizada e estereotipada na qual ainda vivemos. Esta é uma rede global fundada em 1981 e com presença em Portugal desde 2017 que, entre outras coisas, identifica e apoia empreendedores sociais (denominados de Ashoka Fellows), mobilizando a comunidade global para ajudar as suas causas e promover um mundo mais justo e capaz de dar resposta a problemas complexos de ordem social, ambiental e económica.
Uma grande novidade deste ano é a entrada de três novos portugueses (v.Caixa) para a lista de Fellows (da qual já faziam parte Miguel Neiva – com o projecto Collor ADD).
Através do projecto Girl Move, que identifica e prepara a nova geração de líderes moçambicanas a resolverem os maiores problemas do seu país e a mudarem o papel das mulheres na sociedade, Alexandra Machado tem vindo a “mudar o paradigma da falta de oportunidades para as mulheres em Moçambique através da criação de novos role models por via de um inovador sistema de mentoria”.
Por seu turno, e através do projecto SPEAK, Hugo Menino Aguiar permite que milhares de migrantes de vários países da Europa possam integrar-se mais facilmente nos países que os acolhem “podendo eles próprios tomar iniciativa de promover a troca de conhecimento e cultura em eventos e sessões de aprendizagem de línguas”.
Por fim, através do projecto Just a Change e com recurso à mobilização de voluntários e das redes locais para a reabilitação de casas e prestação de outros apoios sociais, António Bello ajuda aqueles que se vêem em situações de habitação insegura ou degradada a reabilitar as suas vidas, “pondo um travão ao ciclo de pobreza de milhares de pessoas e criando as condições para que estas possam reinventar-se sem que seja preciso recorrer a habitação social”.
Em entrevista ao VER, Teresa Seabra Pereira explica que “a ideia de juntar uma ideia com um enorme potencial disruptivo para o bem de todos, nas mãos de um empreendedor resiliente e visionário, foi a visão que o fundador da Ashoka, Bill Drayton, teve como a poderosa fórmula capaz de transformar o mundo”. A co-directora da Ashoka Portugal na área das parcerias estratégicas considera que “já não faz sentido vivermos numa sociedade de repetição de tarefas, onde a tomada de decisões é centralizada e o papel do cidadão é seguir a liderança hierárquica”, sublinhando que “é preciso que os cidadãos se tornem mais activos, que se criem novos modelos de co-liderança que façam frente aos desafios que encontramos”.
A Ashoka Portugal promove “a construção de um mundo no qual todos podemos ser agentes de transformação social positiva”. O que significa ser agente de transformação? Como é que um cidadão comum se pode transformar num agente de mudança?
Num mundo em que estamos a viver uma mudança constante, acelerada e sem precedentes, a única forma que temos de nos adaptarmos com sucesso para todos, é capacitando as pessoas para serem changemakers ou agentes de transformação – pessoas com capacidade de entender o mundo em mudança, com empatia – e agilmente responder aos desafios propostos, em qualquer sector ou papel que desempenhem.
Já não faz sentido vivermos numa sociedade de repetição de tarefas, onde a tomada de decisões é centralizada e o papel do cidadão é seguir a liderança hierárquica. É preciso que os cidadãos se tornem mais activos, que se criem novos modelos de co-liderança que façam frente aos desafios que encontramos. Se o mundo está em transformação, é preciso acompanhar e activamente co-criar o futuro, não apenas ser levado. Precisamos de um mundo onde os desafios que nos são lançados, cada vez mais complexos, globais e em rápida mudança, sejam enfrentados com habilidades que sirvam para que todos os cidadãos possam sentir-se aptos a tomar iniciativa e a participar activamente na promoção do bem comum, ou seja, onde todos se identifiquem como changemakers.
Este mundo, onde todos são chamados a ser agentes de transformação positiva, é o que a Ashoka chama de mundo EACH (Everyone a Changemaker).
E como se traduz, na prática, esta transformação social positiva?
Qualquer transformação positiva é aquela que promove o bem comum para toda a população, de forma indiscriminada e com capacidade disruptiva para deitar por terra padrões antigos, gastos, que estão na raiz de muitos dos nosso maiores desafios sociais e ambientais: desigualdade, mudanças climáticas, pobreza, entre tantos outros. Ao construir novos padrões, estas transformações deixam um “rasto” novo, que permite à sociedade transitar para novos modelos de pensar e agir que beneficiem todos.
Na sua verdadeira capacidade disruptiva, as transformações positivas – que têm como origem um entendimento profundo de como funciona o sector onde operam – são as que muitos Ashoka Fellows fazem todos os dias. Temos, por exemplo, o Miguel Neiva, Ashoka Fellow português que criou o ColorADD, um código de cores universal que garante que mais de 350 milhões de pessoas que sofrem de daltonismo tnham acesso à codificação visual de cores que muitas vezes interfere no seu quotidiano, incluindo educação, saúde ou acesso a transportes. Temos também o exemplo de Kaylash Satiarthy, prémio Nobel da Paz e Ashoka Fellow indiano, que se dedica ao fim da exploração infantil na indústria, com grande foco na India, sendo o pioneiro do selo anti-exploração infantil “Rugmark”, que depois foi copiado por várias marcas de diversos sectores na promoção de produtos livres de escravatura.
Exemplos como o Miguel e o Kaylash são fascinantes não só pelo que alcançam na solução, mas também pelo esforço que fizeram em chamar a atenção do mundo para problemas que nem todos víamos.
A missão da Ashoka Portugal é contribuir para a co-construção de um novo cenário necessário para viver e trabalhar em conjunto num mundo em constante mudança, identificando quatro elementos principais para que isso seja possível: empatia, trabalho de equipa, liderança colaborativa e realização de mudanças. Qual é o papel de cada um destes elementos? Como é que cada um permite, na prática, concretizar a missão da Ashoka Portugal?
Estes quatro elementos estão na base do que a Ashoka entende ser a linha de acção para a construção do mundo EACH (Everyone a Changemaker), onde todos os desafios, cada vez mais complexos, devem ser enfrentados com os seguintes traços: empatia – a capacidade de ver o outro, colaborar melhor na resolução conjunta dos desafios do mundo; colaboração – trabalhar, mais do que em equipas hierárquicas que promovem antigos sistemas que nos estão a falhar, mas em colaboração fluida que leva a que todos participem e tenham a capacidade de agir para o bem comum; uma nova liderança – que permite que todos possam ser líderes para a criação de mudanças positivas, que todos possam tomar iniciativa, partilhando uma visão comum e a responsabilidade de alcançar resultados; e por fim, changemaking – a capacidade de agir e criar mudança positiva para qualquer pessoa em qualquer situação.
A Ashoka em Portugal pretende fazer com que o nosso país tenha um papel activo neste movimento global, deste novo mundo, levando o que de melhor fazemos aqui para o resto do mundo, tal como trazendo o que de melhor temos na Ashoka global para Portugal.
A organização funciona como uma espécie de rede a nível mundial, tendo presença em mais de 90 países e contando com a intervenção de diversos grupos e pessoas. De que forma é que os Ashoka Fellows, as Escolas Transformadoras e os Global Change Leaders ajudam a concretizar a missão da Ashoka? Qual é o papel de cada um destes “intervenientes”?
Na criação deste mundo EACH (Everyone a Changemaker), a Ashoka actua em três linhas principais.
A primeira é a selecção e apoio dos empreendedores sociais que estão a liderar mudanças sistémicas e disruptivas, fortalecendo a sociedade civil enquanto changemakers, mudando padrões e criando novos paradigmas. O apoio aos chamados Ashoka Fellows, dando acesso a apoio financeiro e a uma rede vitalícia global da qual se tornam parte, sendo este essencial para garantir que desenvolvem o seu trabalho e se dedicam a mudar os problemas que estão a atacar. Ao seleccionar e apoiar estes empreendedores sócias, a Ashoka acede a todos estes novos padrões, modelos e tendências que estão a criar um mundo melhor e daí procura levar este conhecimento à sua rede para efectivar mudanças positivas na co-criação do mundo do futuro.
Para levar este conhecimento que vem do trabalho dos Fellows e da Ashoka, a forma de acelerar o mundo EACH é através de uma rede de organizações que se juntem neste novo paradigma, influenciando como aprendemos, trabalhamos e vivemos em conjunto, sendo esta a segunda linha de acção. Criamos parcerias com escolas, universidades, sector social, corporativo, media, com quem quiser levar connosco a liderança deste novo paradigma.
Por fim, é preciso formar e desenvolver as competências dos jovens e crianças para que possam ser agentes de transformação, não só no futuro longínquo, mas desde já. Nos mais de 30 anos da Ashoka a trabalhar com Fellows, vemos um padrão na adolescência, em que muitos já teriam tido alguma experiência de serem agentes de transformação nas suas comunidades. Essa experiência em idades jovens mudou o percurso destas pessoas e permitiu-lhes desenvolver desde cedo o poder de agência para tomar iniciativa e levar a cabo mudanças positivas. Trabalhamos com as Escolas Transformadoras, que levam a cabo a missão de formar agentes de transformação através dos seus currículos inovadores, como também através de outros programas, como o “Global Change Leaders” que pretende criar ecossistemas de aprendizagem transformadores para a capacitação de jovens e crianças enquanto agentes de transformação positiva.
Falando especificamente dos Ashoka Fellows, o que é que significa ser um?
A rede de Ashoka Fellows é a maior rede global de inovadores sociais líderes que está a levar a cabo mudanças sistémicas através das suas soluções disruptivas. A ideia de juntar uma ideia com um enorme potencial disruptivo para o bem de todos, nas mãos de um empreendedor resiliente e visionário, foi a visão que o fundador da Ashoka, Bill Drayton, teve como a poderosa fórmula capaz de transformar o mundo. O papel do Ashoka Fellow é essencial neste mundo EACH – a sua capacidade de incluir e conferir poder à sociedade civil para a acção, compreendendo muito bem como funcionam os sistemas dos problemas onde actuam, faz dos Fellows um dos principais motores para o novo paradigma que a Ashoka está a construir.
E o que é que é necessário ter ou fazer para pertencer a este grupo?
Para seleccionar um Ashoka Fellow, existem cinco critérios:
- Ideia inovadora: uma nova abordagem para um problema social existente, que tem a capacidade de transformar padrões existentes num determinado sector. Através de uma avaliação extensiva da ideia, a Ashoka valida se os candidatos a Fellows têm de facto uma inovação com capacidade transformadora, não apenas uma ligeira mudança na forma como as coisas estão feitas de momento.
- Criatividade: testamos a capacidade de resolver problemas juntamente com a visão, questionando se são capazes de levar as suas visões a cabo.
- Empreendedorismo: se demonstram as qualidades e características de um empreendedor, não descansando enquanto não virem a sua ideia ganhar vida e transformar o mundo. Procuramos pessoas que, com os meios certos, se dedicariam a 100% às suas ideias transformadoras e em levá-las ao mundo todo.
- Impacto sistémico: procuramos ideias que tenham o potencial para transformar significativamente um sector, com impacto alargado, no mínimo de escala nacional. As ideias deverão ser práticas, inovadoras e úteis para o sector em questão, de forma a poderem transformar-se na nova norma.
- Fibra ética: para transformar o mundo, é preciso mobilizar diferentes grupos de pessoas para uma visão partilhada. Se o Fellow não for uma pessoa que inspire confiança, a probabilidade de ser bem-sucedido neste sentido será reduzida.
A lista de Ashoka Fellows conta agora com três novos elementos portugueses: o António Bello, a Alexandra Machado e o Hugo Aguiar Menino. Qual é o papel de cada um deles na sociedade que os faz ser merecedores desta denominação?
O António Bello está a promover esforços colaborativos ao nível local para permitir que aqueles que se vêem em situações de habitação insegura ou degradada possam reabilitar as suas vidas. Através da mobilização de voluntários e das redes locais para a reabilitação de casas e prestação de outros apoios sociais, a Just a Change pode pôr um travão ao ciclo de pobreza de milhares de pessoas, criando as condições para que estas possam reinventar-se sem que seja preciso recorrer a habitação social. Os programas urbanos e rurais desta associação estão em fase de expansão e replicação, alicerçados em parcerias com os Municípios e várias empresas, criando assim uma nova consciência e solução sistémica para um problema invisível e ignorado até aos dias de hoje.
A Alexandra Machado está a mudar o paradigma da falta de oportunidades para as mulheres em Moçambique através da criação de novos role models por via de um inovador sistema de mentoria. O seu programa na Girl Move identifica e prepara a nova geração de líderes moçambicanas (Girl Movers), passando-lhes as ferramentas, oportunidades e aconselhamento necessários para resolverem os problemas mais prementes do seu país e mudarem fundamentalmente o papel das mulheres na sua sociedade. Ao mesmo tempo, está a criar uma verdadeira “vacina social”, pois promove também a mentoria por parte de Girl Movers e estudantes universitárias a raparigas de 12 anos, de forma a prevenir o casamento forçado e o abandono escolar, que normalmente acontece nesta idade crítica.
O Hugo Menino Aguiar está a possibilitar a criação orgânica de comunidades SPEAK, onde a diversidade é valorizada e as diferentes culturas são partilhadas num ambiente seguro, através de encontros de igual para igual. Graças a uma plataforma online e descentralizada, hoje em dia milhares de migrantes e refugiados em vários países da Europa têm a oportunidade de se encontrar presencialmente e desenvolver relações de proximidade e apoio mútuo entre si e com residentes locais, podendo eles próprios tomar iniciativa de promover a troca de conhecimento e cultura em eventos e sessões de aprendizagem de línguas. Baseadas na empatia, no encontro e na partilha, as comunidades SPEAK são hoje um veículo poderoso de destruição de estigmas e integração de minorias.
Ser Ashoka Fellow é…
Para além de uma das responsáveis da Ashoka Portugal, o VER conversou ainda com os seus três novos Fellows – António Bello, Alexandra Machado e Hugo Menino Aguiar –, que falaram das suas motivações e do modo como esta distinção os pode ajudar a continuar a construir um mundo melhor.
O que significa, para si, ser um Ashoka Fellow?
António Bello (AB) – Para mim, ser Ashoka Fellow significa em primeiro lugar que o Just a Change é um “ashoka fellow”. Significa que há um trabalho de equipa forte e coeso, que nos faz crescer e continuar a atingir metas estabelecidas. Significa também ter o reconhecimento de que o nosso trabalho é importante para outros, que somos valorizados pelo impacto que queremos ter neste mundo.
Alexandra Machado (AM) – A Girl MOVE Academy nasce de um sonho: um mundo onde todas as raparigas e mulheres têm direito à educação e à participação activa na sociedade. Acreditamos que a solução global para o ciclo de pobreza planeada que perpetua a ausência da mulher na escola, nas empresas e nos lugares de decisão passa por investir na mulher enquanto líder disruptiva para transformar o Mundo. A distinção enquanto Ashoka Fellow representa um importante reconhecimento do nosso trabalho e a validação de que somos capazes de concretizar este sonho. Os resultados que alcançámos até agora em Moçambique dão-nos certeza do diferencial da Girl MOVE Academy sustentado num novo modelo de educação que promove a liderança transformadora e cria impacto, desbloqueando talento através de um processo de mentoria em cascata.
Hugo Menino Aguiar (HMA) – O reconhecimento da Ashoka dá credibilidade e visibilidade ao SPEAK, o que pode aumentar o interesse de pessoas ou organizações para levarem o projecto para as suas cidades. Tornámos a tecnologia e metodologia disponível através de um modelo de social franchising, interessa agora dar visibilidade do projecto para que outros o saibam que o podem usar.
De que modo é que este reconhecimento poderá ajudar no desenvolvimento do seu projecto e, em última instância, na construção de um mundo melhor?
AB – Ser Ashoka Fellow vai ajudar em muitas coisas, nomeadamente a abrir novas portas e alargar horizontes, a aprender e ser inspirado por bons exemplos por este mundo fora, e a dar motivação para continuar.
AM – Sabemos que ao fazer parte desta rede internacional de changemakers vamos poder chegar mais longe de forma sustentada e acompanhada. E que, sobretudo, somos uma esperança para todas as mulheres com potencial transformador, que podem e devem ser changemakers! Esperamos que depois deste reconhecimento, mais pessoas, no mundo inteiro conheçam e reconheçam o valor do trabalho da Girl MOVE Academy, envolvendo-se enquanto parceiros e replicando aquilo que seja possível e adequado às suas realidades.
HMA – No limite, este reconhecimento pode aumentar a probabilidade de conseguirmos escalar o projecto e ajudar mais pessoas e é isso que queremos. Além disso, o acesso a uma comunidade global de Fellows e oportunidades para acelerar o nosso impacto é algo que pode ser aproveitado e iremos dar o melhor para estar à altura.
Jornalista