“A pobreza está disseminada pela Europa”, que enfrenta “a pior crise humanitária das últimas seis décadas”. Um relatório da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho que avalia os impactos da crise económica no continente alerta que a austeridade está a atirar os europeus para uma espiral de pobreza e desigualdade, com consequências “ainda escondidas” que serão sentidas “por décadas”
Face à imposição de medidas de austeridade para combater a crise económica nos últimos quatro anos, “milhões estão desempregados e muitos daqueles que ainda têm trabalho enfrentam dificuldades para sustentar a sua família devido aos salários insuficientes e ao aumento desmesurado dos preços”, sublinha a Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, confirmando que “não só há mais pessoas a cair na pobreza, como os pobres estão a ficar mais pobres”. Ao mesmo tempo, a desigualdade entre ricos e pobres “está a crescer”. Apontando que, desde 2009, há um acréscimo que se cifra em milhões, no número de pessoas que têm de enfrentar filas para obter comida, não conseguem comprar medicamentos ou aceder a cuidados médicos, a organização não tem dúvidas: “a Europa enfrenta a sua pior crise humanitária das últimas seis décadas: as vidas das pessoas foram viradas do avesso e a degradação parece estar a aumentar, com milhões a sobreviverem diariamente sem poupanças ou algo que possa amortecer despesas imprevistas”, explicou o secretário-geral da Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho, no âmbito da apresentação do documento, a 10 de Outubro. Bekele Geleta deixou um aviso que serve a vários países: “apesar de compreendermos que os governos precisam de poupar dinheiro, alertamos vivamente contra a aplicação de cortes indiscriminados na saúde pública e na Segurança Social, porque estes podem custar ainda mais a longo prazo”.
Desemprego é uma bomba-relógio Defendendo que a questão do desemprego na Europa é uma “bomba-relógio”, a organização vaticina uma constatação que soa já banal, como soam, infelizmente, as frases batidas sobre o aumento da pobreza: as “consequências a longo prazo” da crise ainda estão por vir. A maior preocupação centra-se no desemprego jovem, cujo nível é classificado como “catastrófico” em cerca de 25% dos 52 países incluídos no estudo, com valores a atingirem entre um terço do total da população e 60% de todos os jovens de um país. No que diz respeito aos mais idosos, a realidade não é muito melhor. Desde 2008 e até 2012, o número de desempregados entre 50 e 64 anos nos 28 países da União Europeia cresceu de 2,8 para 4,6 milhões de pessoas, refere o estudo da Cruz Vermelha e Crescente Vermelho. Por outro lado, dos mais de 26 milhões de desempregados na UE, 11 milhões são desempregados de longa duração, quase o dobro do valor registado há cinco anos atrás. E percebe-se assim porque é que os efeitos da crise serão sentidos “por décadas”, mesmo que a Europa comece a recuperar em termos de crescimento económico. Afinal, “a taxa alcançada pelo desemprego nos últimos dois anos, por si só, é um indicador do aprofundamento da crise”. E essa espiral negativa tem “custos pessoais severos como consequência, e possível instabilidade e extremismo como risco” que, aliados ao aumento do custo de vida, são “uma combinação perigosa”, considera a organização. Por ora, a procura de apoio é crescente. Segundo o estudo da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho existem actualmente mais de 18 milhões de pessoas a receber apoio alimentar financiado pela União Europeia, 43 milhões que não têm o suficiente para comer diariamente e 120 milhões em risco de pobreza, em países acompanhados pelo Eurostat. Esta realidade levou a Cruz Vermelha a mobilizar esforços. Entre 2009 e 2012, aumentou em 75% o número de pessoas que dependem das distribuições de comida que efectua em 22 dos países analisados. Só durante o ano passado, 3,5 milhões de europeus receberam estas doações. No relatório, a Cruz Vermelha sublinha que tem vindo a prestar também “assistência legal, financeira, material ou psicológica” a centenas de milhares de pessoas. Até porque, as medidas de austeridade aplicadas geram efeitos psicológicos, acrescenta o documento: “a crise económica aprofundou-se e hoje milhões de europeus vivem em insegurança, sem certezas sobre o que o futuro lhes reserva. Este é um dos piores estados de espírito para um ser humano. Vemos o desespero silencioso a alastrar entre os europeus, que resulta em depressões, resignação e perda de esperança”.
Milhares dormem a céu aberto Em Portugal, como na França, em Itália ou nos Balcãs, cada vez mais famílias trabalhadoras solicitam apoio, porque “não conseguem cobrir todos os seus custos básicos e no final do mês enfrentam um dilema – comprar comida ou pagar a renda e as contas de electricidade e de água”, relata o documento. Por outro lado, verifica-se uma tendência crescente de migração intra-europeia, principalmente de leste para oeste, de cidadãos que procuram um emprego. A instabilidade económica e social tem atraído imigrantes para países menos afectados ou economias em crescimento, mas segundo a Cruz Vermelha, doze meses depois de ter chegado ao destino metade destes imigrantes continua desempregada. Acresce que a maioria tem sido recebida com “posturas mais duras” pelos governos e sociedades de acolhimento. Considerando que a xenofobia é uma preocupação crescente, a Cruz Vermelha denuncia que existem milhares de pessoas a morar a céu aberto ou em locais improvisados, por exemplo na Europa oriental, onde crescem os “assentamentos temporários”.
Crise alastra-se a menos pobres Na Alemanha, um quarto dos trabalhadores recebe actualmente baixos salários, e quase metade das novas contratações registadas desde 2008 refere-se a trabalhos mal pagos, precários ou sem nenhuma protecção social. Em Agosto de 2012, quase 600 mil trabalhadores alemães “tiveram de pedir benefícios adicionais para pagar as suas contas”, indica o documento. Por seu turno, 350 mil franceses passaram a estar abaixo do limiar da pobreza, entre 2008 e 2011. Sejam cidadãos que lutam diariamente pela sua sobrevivência, no tal desespero silencioso da insegurança, sejam os que são afectados, mas pouco, o relatório “Think differently: humanitarian impacts of the economic crisis in Europe” desafia os europeus a pensarem se conseguiram compreender o que os atingiu e se estão preparados para lidar com as consequências da crise: “perguntamo-nos se nós, enquanto continente, percebemos verdadeiramente o que nos aconteceu”, lê-se no documento. Insistindo que as medidas de austeridade aplicadas na Europa para combater a crise nos últimos quatro anos a lançaram numa “espiral de pobreza”, a Federação Internacional das Sociedades da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho sublinha que “as consequências a longo prazo desta crise estão ainda escondidas” e que “os problemas serão sentidos ao longo de décadas, mesmo que a economia melhore no futuro próximo”. É preciso, pois, “enfrentar a realidade, para que esta crise humanitária não se transforme numa crise social e moral” para o continente, como defende a directora da Federação para a Europa, Anitta Underlin, que deixa um apelo: “não temos todas as respostas, mas encorajamos todas as partes interessadas – incluindo nós mesmos – a pensar em formas novas, diferentes e criativas de lidar com a crise”.
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Jornalista