Para além da destruição do planeta ou da extinção da espécie humana, probabilidades que parecem estar cada vez menos longínquas, os países ricos continuam na sua senda de ambição desmesurada e irresponsável, ao mesmo tempo que nos países pobres, os mais expostos aos eventos climáticos extremos e os que menos contribuem para as emissões assassinas, grassa a fome e a morte. E quem se importa?
POR HELENA OLIVEIRA
Reza a história que, em 1977, o Presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter tenha sido informado sobre a possibilidade de alterações climáticas catastróficas. Nesse mesmo ano, memorandos internos de uma das maiores companhias petrolíferas do mundo deixaram claro que a queima contínua de combustíveis fósseis iria aquecer dramaticamente o planeta. Em simultâneo, os principais cientistas climáticos do mundo alertaram durante décadas para os perigos do aumento constante das emissões de gases com efeito de estufa. E, antes de a ameaça climática se tornar pública, líderes políticos e empresariais sabiam da sua existência há já uma década.
Passados todos estes anos, e antes das conversações de Glasgow do ano passado, os peritos advertiram que a COP26 era a última oportunidade do mundo para limitar o aquecimento global a 1.5℃ neste século. E, no entanto, um relatório da ONU publicado há pouco mais de duas semanas, alertava que mesmo que todas as nações atingissem os seus objectivos climáticos nesta década – algo em que ninguém acredita – o planeta deverá aquecer para um valor catastrófico de 2.5℃.
Ao longo da pandemia global e à medida que os confinamentos reduziam o consumo de energia e alguns políticos progressistas propunham agendas políticas alternativas, existiu uma esperança ténue de que este evento absolutamente imprevisível pudesse ter desviado as economias mundiais da sua dependência dos combustíveis fósseis. Mas foi sol de pouca dura. Logo que as fronteiras reabriram e o mundo começou a voltar ao seu ritmo “normal”, o mesmo aconteceu com a indústria (mais) responsável pelo aumento das emissões que poderão ditar a extinção da humanidade.
Na verdade e de acordo com a Agência Internacional de Energia, as estimativas apontam para que o rendimento líquido dos produtores de petróleo e gás duplique em 2022 para um gigantesco montante de 4 biliões de dólares.
Assim, e em plena COP27, é extremamente difícil manter algum tipo de optimismo de que algo irá mudar e que as habituais conversações entre os decisores mundiais possam vir a criar algum desvio radical no que respeita ao aumento implacável das emissões globais de carbono ao longo dos últimos dois séculos. Em simultâneo, para além da destruição do planeta ou da extinção da espécie humana, probabilidades que parecem estar cada vez menos longínquas, os países ricos continuam na sua senda de ambição desmesurada e irresponsável, ao mesmo tempo que nos países pobres, os mais expostos aos eventos climáticos extremos, grassa a fome e a morte. E quem se importa?
Cerca de 26 milhões de pessoas são anualmente “empurradas” para a pobreza devido a catástrofes naturais
Uma média de 189 milhões de pessoas por ano tem sido afectada por eventos climáticos extremos nos países em desenvolvimento desde 1991 – o ano em que foi proposto pela primeira vez um mecanismo para fazer face aos custos dos impactos climáticos nos países de baixos rendimentos – de acordo com um novo relatório publicado pela organização sem fins lucrativos Loss and Damage Collaboration , um grupo de mais de 100 investigadores de política climática, activistas, advogados e decisores políticos que trabalham em conjunto para assegurar (ou tentar fazê-lo) que os países em desenvolvimento e as suas respectivas comunidades – os mais vulneráveis aos eventos climáticos extremos – tenham o apoio que necessitam para enfrentar as perdas e danos relacionados com as alterações climáticas.
Entre várias conclusões vergonhosas, o relatório, intitulado The Cost of Delay , destaca o facto de como os países ricos têm vindo repetidamente a adiar os seus esforços para fornecer financiamento dedicado aos países em desenvolvimento, suportando os custos de uma crise climática que estes últimos pouco fizeram para causar. A análise efectuada mostra igualmente que só na primeira metade de 2022 seis empresas de combustíveis fósseis, em conjunto, ganharam dinheiro mais do que suficiente para cobrir os custos dos grandes eventos climáticos e meteorológicos extremos que têm afectado estes países e, caso o tivessem feito, ficariam ainda com 70 mil milhões de dólares de lucro remanescente.
O relatório revela que 55 dos países mais vulneráveis ao clima sofreram perdas económicas relacionadas com estes eventos extremos que totalizaram mais de meio bilião de dólares durante as duas primeiras décadas deste século, ao mesmo tempo que os lucros dos combustíveis fósseis disparavam, deixando as pessoas em alguns dos lugares mais pobres do planeta a pagar a conta. E sublinha igualmente que a indústria dos combustíveis fósseis teve, entre 2000 e 2019, sessenta vezes mais de “super-lucros” suficientes para cobrir os custos das perdas económicas induzidas pelo clima nestes mesmos 55 países.
A juntar a estes números, também a Oxfam voltou a repetir, num estudo publicado recentemente, uma verdade que é, há muito, mais do que inconveniente e do conhecimento geral (apesar de não parecer): que embora sejam os mais ricos do mundo que mais contribuem para as alterações climáticas, são os mais pobres e os mais marginalizados que pagam o preço mais elevado dessa mesma factura. De acordo com a mesma organização não-governamental, cerca de 26 milhões de pessoas são anualmente “empurradas” para a pobreza devido a catástrofes naturais, ao que se junta o facto de que a crise humanitária ligada ao clima extremo requerer hoje nove vezes mais de financiamento do que há 20 anos. E a verdade é que os países ricos e as empresas com maiores responsabilidades na crise climática não estão a pagar pelos danos que as alterações climáticas estão a causar em todo o mundo, resistindo, ao invés e ferozmente, para encontrar soluções reais para o problema.
Sem contar com o denominado “Fundo Perdas e Danos”, tema do relatório acima mencionado, em 2009, os países mais ricos e que mais beneficiam do investimento nos combustíveis fósseis (os que mais contribuem para a crescente crise climática), comprometeram-se, em vão, a alocar cerca de 100 mil milhões de dólares para ajudar os países mais vulneráveis a implementar iniciativas de adaptação e mitigação dos riscos das alterações climáticas, bem como investimentos necessários para a crucial transição energética. Todavia, esse valor nunca foi atingido e, como referiu o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, “ainda não chegámos lá” e nem estamos perto, acrescente-se.
Em simultâneo, a Associação ambientalista ZERO que classifica, num comunicado, a COP 27, como “mais uma difícil oportunidade para mobilizar o mundo para a emergência climática”, afirmou igualmente que este valor é “inadequado, injusto e problemático” e que “os países desenvolvidos têm de compensar a falta de entrega dos 100 mil milhões d dólares a tempo”, assegurando um montante global colectivo de, no mínimo, 600 mil milhões de dólares, para o período 2020-2025”. A ZERO chama igualmente a atenção para a prioridade do tema “Perdas e Danos” nesta Cimeira e é ao mesmo que este artigo mais é dedicado, cruzando-o com as inevitáveis consequências em termos de fome e pobreza.
Perdas e Danos ou a factura que os países ricos não querem pagar
Para milhões de pessoas já atingidas por conflitos contínuos, desigualdades crescentes e crises económicas, os repetidos choques climáticos estão a transformar-se em mais um caminho a passos largos para situações de fome severa e, inevitavelmente, para a morte.
Entretanto e à medida que a humanidade enfrenta esta crise existencial, os países mais poluidores do mundo continuam a gozar de uma riqueza extraordinária: a indústria do petróleo e do gás acumulou, por dia e nos últimos 50 anos, cerca de 2,8 mil milhões de dólares em lucros, sendo que para cobrir a totalidade dos 48,82 mil milhões de dólares do apelo humanitário da ONU para 2022, seriam necessários cerca de 18 dias desses mesmos lucros.
As contas foram feitas pela Oxfam, que analisou o agravamento da fome devido a eventos climáticos extremos em 10 dos países que mais atingidos foram pelos mesmos: Afeganistão, Burkina Faso, Jibuti, Guatemala, Haiti, Quénia, Madagáscar, Níger, Somália e Zimbabué. Em oito desses mesmos países, 48 milhões de pessoas sofrem de fome severa (mais 21 milhões comparativamente a 2016) e outros 18 milhões estão à beira da inanição.
E é por tudo isto (e não só), que é mais do que urgente que os países ricos reduzam drasticamente as suas emissões (possibilidade em que ninguém acredita) e que garantam um financiamento adequado (e mais do que em dívida) para ajudar os países pobres na adaptação e transição climáticas, para além da compensação que merecem e que necessitam devido ao terrível embate que estão a sofrer devido a estes acontecimentos climáticos severos.
Como se pode ler no já referido relatório The Cost of Delay, apesar de 31 anos de pressão, 26 COPs e múltiplas reuniões, relatórios e alertas, pouco ou nenhum financiamento dedicado a ajudar as pessoas a lidar com as consequências dos impactos climáticos – conhecido como “Fundo para lidar com Perdas e Danos” – foi concedido ao abrigo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (UNFCCC). Esse financiamento teria feito uma diferença significativa na vida das pessoas que mais sofrem com os eventos climáticos extremos, reduzindo a pobreza induzida pelo clima e libertando os orçamentos nacionais. O relatório em causa mostra assim como os países historicamente responsáveis pela maioria das emissões têm atrasado repetidamente o progresso na obtenção de financiamento de Perdas e Danos, enquanto as emissões e os lucros dos combustíveis fósseis têm aumentado desmesuradamente, e de que forma os custos deste atraso se manifestam nos países em desenvolvimento e nas comunidades que mais suportam o peso da crise climática.
De acordo com os dados recolhidos e analisados pela ONG responsável pelo estudo, estima-se que uma média de 189 milhões de pessoas por ano tenha sido afectada por acontecimentos climáticos extremos nos países em desenvolvimento desde 1991 – o ano em que o Vanuatu propôs pela primeira vez um mecanismo para fazer face a estas “perdas e danos”. Em nome da Aliança do Pequenos Estados Insulares, o Vanuatu propôs, na altura, a criação de uma espécie de seguro para fornecer recursos financeiros aos países mais afectados pela elevação do nível do mar, um modelo em que cada país contribuiria financeiramente de acordo com a sua “factura” relativa no que respeitaria às emissões e à economia global. Rejeitada na altura, a proposta para a compensação financeira destas “perdas e danos” figurou pela primeira vez num acordo resultante das negociações climáticas ONU em 2007, como parte do Plano de Acção de Bali. Embora as nações em desenvolvimento tenham sido bem-sucedidas na luta para incluir no Acordo de Paris a meta para limitar o aquecimento global a 1,5°C, não tiveram o mesmo sucesso em relação às perdas e danos.
A questão foi incluída na versão final do acordo, mas os países desenvolvidos asseguraram que o texto declarasse de forma explícita que perdas e danos “não envolvem nem fornecem uma base para qualquer responsabilização ou compensação”. Uma das razões para a controvérsia que o tema tem vindo a gerar prende-se com a preocupação das nações desenvolvidas de que a compensação por perdas e danos devido a impactos climáticos adversos seja interpretada como uma admissão de responsabilidade legal, desencadeando litígios e pedidos de indemnização em grande escala. E foi por isso que os países desenvolvidos lutaram para que a linguagem utilizada no Acordo de Paris evitasse que fossem legalmente obrigados a esse tipo de compensação, aliás, como quase todos os compromissos que se estabelecem nas cimeiras climáticas. A discussão tem sido recorrente e finalmente a questão das Perdas e Danos parece estar a assumir um lugar de destaque na COP27 a decorrer no Egipto.
Mas e de regresso ao relatório The Costs of Delay, este mostra também de que forma os países desenvolvidos têm utilizado várias tácticas para atrasar qualquer progresso na questão, desde manobras de distracção com soluções que de transformadoras nada têm até ao “redireccionamento” das suas responsabilidades. A não concessão deste financiamento deve-se em última análise a uma falta de vontade política, ilustrada igualmente e como já anteriormente mencionado, pelo facto de a indústria de combustíveis fósseis ter obtido 60 vezes mais de lucros suficientes entre 2000 e 2019 para cobrir os custos das perdas económicas induzidas pelo clima em 55 dos países mais vulneráveis ao clima.
No final da COP26 em Glasgow, em 2021, os países em desenvolvimento ficaram mais uma vez frustrados devido ao facto de a sua proposta para se assegurar um Mecanismo de Financiamento de Perdas e Danos ter sido rejeitada pelos países desenvolvidos. Em vez disso, obtiveram a garantia de “um diálogo” sobre o tema até 2025, ou seja, mais uma táctica dilatória. Desde então, houve mais de 119 eventos climáticos extremos nos países de baixo rendimento, enquanto na primeira metade de 2022 e como acima referido, apenas seis empresas de combustíveis fósseis lucraram mais do que o o suficiente para cobrir o custo de grandes eventos climáticos e meteorológicos extremos nestes mesmos países.
Não só não houve um financiamento para fazer face às perdas e danos, como as emissões continuaram a aumentar e os objectivos de financiamento climático para mitigação e adaptação nos países em desenvolvimento não foram atingidos. Fornecer financiamento para perdas e danos é crítico não só para aqueles que lidam com os impactos climáticos nos países em desenvolvimento, mas também para manter a confiança e credibilidade nas negociações climáticas da ONU.
Não sabemos se será demasiado tarde. Mas é crucial que na COP27 se chegue a um acordo que seja mais do que um mero compromisso para o estabelecimento deste Mecanismo de Financiamento de Perdas e Danos, dedicado aos países em desenvolvimento e às suas respectivas comunidades.
Teme-se contudo que, tal como há décadas, esta cimeira global não passe de mais um conjunto de infindáveis palavras que podiam ser resumidas numa só: hipocrisia. Ou melhor, em três: hipocrisia, ganância e irresponsabilidade.
Editora Executiva