Na pequena cidade irlandesa de Kilkenny, a economia e a comédia sobem ao mesmo palco. Há três anos consecutivos que o festival Kilkenomics junta economistas e comediantes de peso para debater as políticas de austeridade, e não só, neste país intervencionado pela troika. É que a brincar se dizem muitas verdades… A pequena cidade de Kilkenny, fundada em 1207 é, desde 2010, palco de um estranho evento. Numa pouco usual romaria, os pubs e teatros da cidade irlandesa enchem-se de economistas, homens de negócios, analistas financeiros e jornalistas que, em conjunto com comediantes, sobem a vários palcos. O objectivo? Debater, de forma simples e clara, as políticas de austeridade – e não só – que roubaram os sorrisos a todos os povos que se encontram intervencionados pela troika. Fazendo jus ao velho ditado “rir é o melhor remédio”, a ideia surgiu na cabeça de Richard Cook, um empresário e empreendedor de 46 anos que, entre outros feitos, inventou um festival de comédia – o The Cat Laughs – , o qual teve um êxito significativo. “No início de 2009, e à medida que a crise financeira se agravava, questionava-me a mim próprio: por que motivo, sendo eu um tipo esperto, não consigo compreender o que se está a passar?”, recorda, numa entrevista concedida à Knowledge@Wharton. Na mesma altura, David McWilliams, um antigo banqueiro de investimento que se havia tornado uma celebridade nos media, com um programa de televisão e autor de quatro best-sellers sobre a Irlanda contemporânea, fazia um show individual no Abbey Theatre, o teatro nacional da Irlanda, sobre a crise económica. Para Cook, que assistiu à peça do antigo amigo de faculdade, esta era uma boa mistura de “stand-up”, teatro e palestra, o que despertou a sua vontade de juntar, no mesmo palco, economistas e comediantes stand-up. A proposta foi aceite por McWilliams e nasceu o Kilkenomics, o primeiro festival de economia da Europa. Tendo consciência que a economia é central às vidas das pessoas, as quais, crescentemente, se sentem às escuras por não compreenderem as suas flutuações ou desígnios, os dois amigos que, tal como os demais cidadãos, gostariam de identificar o que se estava a passar no seu país – e na Europa – e o porquê de estarem a ser resgatados, quem seriam os responsáveis e que caminho futuro lhes estava reservado, decidiram que o Kilkenomics seria uma forma de traduzir o habitual economiquês, tornando-o claro e acessível ao comum dos mortais. Moderado por alguns dos mais inteligentes e bem-humorados comediantes da Irlanda, o primeiro festival de economia da Europa, oferece aos economistas, analistas financeiros, jornalistas e pensadores de diversas áreas a oportunidade de discutir e explicar assuntos importantes como a bolha imobiliária, as flutuações da moeda, as crises das dívidas soberanas na Europa, os impostos, a importante relação entre recursos naturais, ambiente e economia, entre muitos outros temas que, todos os dias, nos entram pela casa adentro e que nem sempre conseguimos compreender. McWilliams que, ao contrário de Cook, tem formação em economia e consegue perceber, de forma profunda, as implicações de todos estes assuntos na vida real das pessoas, não consegue deixar de ser mordaz relativamente aos seus pares: “A economia é demasiado importante para ser deixada somente nas mãos dos economistas”, diz. “E o principal problema é que foi ‘raptada’ por matemáticos e teóricos que, simplesmente, não são capazes de explicar as suas ideias às pessoas ‘normais’”, acrescenta. Assim, o lema escolhido para o Kilkenomics foi: “aquilo que é importante raramente é complicado e o que é complicado raramente é importante”. Os comediantes têm como missão traduzir esta mensagem através dos papéis que desempenham no show em causa e conferindo ao cidadão comum a permissão de fazer qualquer pergunta aos economistas em cena. Estes, por sua vez, terão de mostrar publicamente um lado seu a que não estão habituados e que se materializa na obrigatoriedade de responderem às questões colocadas numa linguagem que seja facilmente apreendida pelos cidadãos comuns. Como reforça Cook, os comediantes não têm que ser continuamente engraçados. Claro que podem (e devem) contar piadas ao longo dos debates, mas a sua principal função é a de vestirem a pele do cidadão comum e serem responsáveis por inserir algum nível de sanidade na situação de loucura que envolve a Irlanda. Cook relembra que quando explicou a natureza do show que pretendiam fazer, os comediantes se sentiram nervosos por não poderem actuar na sua área de especialidade e que foram expressamente avisados para que “nos casos em que os economistas começassem a utilizar o seu jargão incompreensível, era sua função interrompê-los e a exigir explicações”.
Nervosos e intimidados também se sentiram os economistas e demais oradores convidados, não habituados a dividir o palco com comediantes profissionais. E todos os convidados, sem excepção, apenas aderiram à ideia por a acharem tão, mas tão louca, que talvez pudesse resultar. E assim foi: os bilhetes vendidos para os vários espectáculos têm estado sempre esgotados – o preço ronda os 100 euros – e o festival tem vindo a atrair, ano após ano, irlandeses de todo o lado, de todos os espectros profissionais e de rendimentos variados. Como questiona a Knowledge@Wharton, por que motivo é que estas pessoas vão ao festival, pagam, ouvem, fazem perguntas e aplaudem, voltando no ano seguinte? E, mais estranho ainda, por que razão alguns dos economistas mais famosos do mundo, de que é exemplo Jeffrey Sachs, ou alguns dos gestores de fundos mais atarefados do planeta, como é caso de Peter Fish, ou ainda o mediático jornalista do Financial Times, Allan Beattie, acedem a participar em eventos de pequena escala, numa cidade da qual nunca antes tinham ouvido falar e, caso raríssimo, não cobrando a sua presença? “Comprar bilhete para um show que recorda a miséria em que se vive, parece-me masoquismo” Aparentemente, o sucesso do Kilkenomics deve-se ao simples facto de aos comediantes ser dado o controlo efectivo dos shows e de os transformar em verdadeiros representantes do povo. É que um dos requisitos exigidos para os espectáculos é o de que os comediantes têm de estar vestidos o mais formalmente possível, enquanto os economistas ou os homens de negócios convidados, por mais importantes que sejam na vida real, são obrigados a usar roupa de “todos os dias”. O trabalho de Cook em persuadir um conjunto de comediantes de prestígio a levarem a sério a sua proposta foi mais fácil do que a tarefa paralela de McWilliams, responsável por convidar os proeminentes economistas e analistas financeiros. Apesar dos seus inúmeros contactos em todo o mundo, que incluem académicos e financeiros e com os quais já tinha trabalhado, foi o seu charme e poder de persuasão, em conjunto com uma ajudinha do amigo Bono [da banda U2], o irlandês mais conhecido do planeta, que convenceram os convidados a visitarem a pequena cidade de Kilkeny. Nomes como Paul McCulley, o antigo economista chefe da PIMCO, uma firma de gestão de fundos no valor de 1,6 biliões de dólares, ou Martin Lousteau, antigo ministro da economia na Argentina, ou ainda Bill Black, antigo regulador da banca norte-americana e um dos investigadores do colapso no sector imobiliário, têm constado do cartaz do festival. As temáticas são variadas, mas algumas delas têm-se vindo a repetir ao longo dos três últimos anos. O já citado Black, repetente por duas vezes no festival, tem enchido sessão após sessão. Com uma ascendência parcialmente irlandesa, o actual o professor de Economia na Universidade do Missouri, apesar de muito intrigado com o convite inicial, sempre se declarou disponível para ajudar a Irlanda (um dos requisitos para os convidados é que, apesar de poderem ser oriundos de qualquer parte do mundo, têm de conhecer a realidade económica irlandesa). E a forma que encontrou para ajudar – responsável pela enchente contínua das suas sessões – é, nada mais, nada menos, um conjunto de ataques, bem argumentados, às políticas de austeridade que têm sido seguidas pelos governantes irlandeses (e, como tão bem sabemos, pelos portugueses) e que, a seu ver, têm sido desastrosas para a Irlanda, beneficiando apenas a Alemanha e os apetites da União Europeia.
Fintan O’Toole, um reconhecido colunista do Irish Times, ficou ainda mais conhecido depois de ter cunhado uma frase que lhe valeu um coro de gargalhadas e que é agora utilizada como lema no festival: defendendo que os países intervencionados e/ou com maiores problemas financeiros se deviam unir contra os termos cruéis dos programas de resgate, apelou a uma “solidariedade porcina” entre as nações apelidadas de PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda, Grécia e Espanha). Um forte sentido de humor foi também manifestado por Jeffrey Sachs, duas vezes nomeado como uma das 100 mais influentes do mundo pela revista Time. Questionado sobre o papel do banco de investimento Goldman Sachs nos traumas económicos, a resposta do director do Earth Institute na Universidade de Columbia não se fez esperar: “antes de mais, deixaram cair em desgraça o nome Sachs [não só o nome do banco, como o seu próprio apelido]. As várias sessões que fazem parte do festival obedecem a formatos sempre diferentes. Por exemplo, numa das mais populares, intitulada “jargon-busting”, é apresentado um termo ou conceito económico a duas equipas, cada uma delas composta por um comediante e por um economista. Os economistas explicam o significado do termo aos comediantes e estes têm de partilhar com a audiência a forma como o perceberam. A Karl Spain – um dos comediantes de topo na Irlanda – calhou-lhe a tarefa de explicar o significado das “taxas de juro nominais e reais” [real and nominal interest rates, em inglês]. E Spain não se atrapalhou: “As mulheres estavam de olho em mim no bar antes de eu entrar no show. Mas parece-me justo afirmar que o seu interesse por mim era apenas nominal”. O coro de gargalhadas que gerou parece confirmar que este formato pode funcionar em qualquer local. Apesar dos seus contornos pouco comuns, os criadores do Kilkenmics estão convencidos de que estão a prestar um serviço público. Não ganhando (nem perdendo) dinheiro com os eventos, a ideia está já a atrair potenciais interessados em a tornar global. E com a crise a contagiar outros países, e sem motivos para se sorrir, é certo, parece que pelo menos o “ambiente financeiro” necessário está criado. |
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Editora Executiva