POR GABRIELA COSTA
O Cardeal Patriarca de Lisboa foi o orador convidado pela Associação Cristã de Empresários e Gestores para o almoço-debate que assinalou, a 20 de Outubro, o início das suas actividades em 2017/2018.
Na tradicional abertura do ano de trabalho da ACEGE, D. Manuel Clemente reflectiu, perante uma plateia com cerca de 80 associados reunida nas instalações da Igreja de São Nicolau, em Lisboa, sobre a importância da fé católica na sociedade actual. Sob o mote “A Igreja não evangeliza se não se deixa continuamente evangelizar”, o Bispo de Lisboa discorreu sobre a tradição da acção católica em Portugal, centrando a sua intervenção no imperativo de “Fazer da Palavra de Deus o lugar onde nasce a fé”, tema que a Diocese de Lisboa vai trabalhar durante o ano pastoral 2017/2018, com vista a dinamizar a recepção da Constituição Sinodal de Lisboa, que irá marcar os próximos três anos; e tema a que a própria ACEGE irá também dar destaque nos próximos meses, segundo anunciou na abertura da conferência o seu presidente, João Pedro Tavares.
Como explicou D. Manuel Clemente, a Diocese de Lisboa viveu com verdadeiro entusiasmo o Sínodo Diocesano que se realizou há um ano, com a participação de alguns membros da ACEGE. Desta reflexão de tantos saiu um conjunto de conclusões que D. Manuel subscreveu, e que estão na base da Constituição Sinodal de Lisboa. Agora, vive-se “o período de recepção daquilo que ali se reflectiu sobre o estado da sociedade e da Igreja, concretamente do patriarcado, com insistência na palavra de Deus como lugar onde nasce a fé”, esclarece.
Consubstanciando esta experiência de partilha nas actividades da ACEGE, o Patriarca considerou que os grupos Cristo na Empresa (CnE), que integra enquanto Assistente de um dos grupos, são “uma grande iniciativa”, resultando em “reflexões muito úteis que todos os meses vamos levando por diante”.
[quote_center]Quem conhece o Evangelho tem uma particular responsabilidade[/quote_center]
E, sublinhando a sua presença “não apenas de ofício, mas de compromisso e de convicção” na associação empresarial, defendeu que “enquanto cristãos e protagonistas do Evangelho, hoje estamos na sociedade como Jesus Cristo dizia para estarmos, ou seja, como fermento na massa”. Sobre este texto que “sobreleva cada vez mais na minha parca inteligência das coisas”, D. Manuel Clemente contextualiza: “durante muitos anos dei aulas de História da Igreja e História do Cristianismo. Com os alunos, tal como em seminários, etc., vinha muitas vezes à baila a questão – o que é a Igreja? Como está na sociedade? Agora, que estou à beira dos setenta [anos], cada vez penso mais nesta passagem do Evangelho”.
Para o Cardeal Patriarca, “há o fermento e há a massa”. Mas, no final, “há um único juiz da competência e do respectivo cumprimento por cada um, que é Deus, o único que conhece o coração de todos os homens e mulheres à superfície da Terra, nas gerações sucessivas”, desde os nossos antepassados até “ao futuro não sei em que planeta, de que sol”.
Segundo D. Manuel, “nós que conhecemos Jesus Cristo, como aqueles primeiros que há dois mil anos o conheceram, e que somos, tanto quanto eles foram, seduzidos pela sua maneira de viver nos 30 e poucos anos que conviveu como ser humano, e por aquilo que as comunidades depois guardaram das suas palavras (e que está nos Evangelhos) temos uma particular responsabilidade”. E, se assim é, “vamos ser o fermento da massa do mundo”, já que “como Ele diz noutra passagem, um pouco de fermento leveda toda a massa”. Ou seja, “quem conhece o Evangelho – qual resumo de toda a tradição bíblica – tem por isso uma responsabilidade. Pela sua maneira de pensar, de falar, de proceder – e concretamente no mundo da economia e das empresas, como é o caso desta associação, tem de ser fermento. Um cristão a sério fermenta a massa. E não é preciso fazer da secretária um púlpito”.
Trata-se, acredita o Patriarca de Lisboa, de uma maneira de estar, de conviver e de trabalhar, nas decisões que se tomam, nos critérios que realmente fazem evoluir e crescer. Trata-se, pois, “do verdadeiro sentido que o desenvolvimento tem, e que é mais que crescimento”. Há cerca de cinquenta anos, o Papa Paulo VI publicou uma encíclica decisiva, Populorum Progressio, que está hoje “completamente actual”. Ali se diz “o desenvolvimento não se reduz a um simples crescimento económico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer, promover todos os homens e o homem todo”.
[quote_center]Um cristão a sério é o fermento da massa, concretamente no mundo da economia e das empresas[/quote_center]
Como analisa D. Manuel Clemente, ao contrário daquilo que “cresce ou decresce consoante as circunstâncias”, de forma quantitativa, o desenvolvimento “cresce por dentro”, ou seja as pessoas que se integram no seu processo (qualitativamente) “crescem na totalidade, ficam mais pessoas”. E é isto que deve ser o gestor católico, onde estiver: alguém que tem antes de mais, nas relações com os seus colaboradores, directa ou indirectamente, “uma atitude nova, que faz com que as coisas cresçam, e, sobretudo, que as pessoas cresçam com as coisas” – como o fermento na massa.
O Cardeal Patriarca exemplifica: “não é indiferente tentarmos. Não é indiferente assumirmos este programa, ou escolhermos este objectivo. Conseguimos? Superámos? Não? Temos de ir por outro lado (também se aprende assim). Mas crescemos todos naquilo que fizemos. E, nesse sentido, fermentámos a massa”.
Sublinhando a tónica da responsabilidade da gestão das empresas entre as muitas acepções que cabem ao desenvolvimento humano integral, o orador defende que “no movimento empresarial tem de se notar a diferença. As pessoas têm de crescer globalmente, enquanto seres em realização, que ganham com aquilo que proporcionam aos outros e proporcionam aos outros um ganho maior, em termos humanos”.
As tarefas “são enormes” e “cada um sabe de si”, mas D. Manuel insiste num ponto: “dar a importância devida à palavra de Deus”. E, perante uma plateia de membros da associação cristã, lembra que o nome da ACEGE “tem lá um C de cristão, e não é um adjectivo”. E refere ter gostado muito “quando para os núcleos das empresas se escolheu o nome Cristo na Empresa”, pois “tudo quanto é adjectivo põe-se e tira-se, mas os substantivos são as substâncias das coisas”.
Ora, “aquilo que acontece de há dois mil anos a esta parte é que Cristo acontece”, prossegue. Há uma frase no chamado discurso de despedida do Quarto Evangelho (e voltamos à palavra recolhida pelas primeiras gerações cristãs) que “é muito programática e impulsionadora. Ele diz: ‘vou partir para o Pai (…) mas vocês hão-de fazer estas coisas e outras maiores do que estas’. O sentido disto é que o espírito de Jesus alarga em cada um de nós a obra que Ele começou. Lá está o fermento”.
Esta referência serve para que o Bispo de Lisboa apele aos empresários e gestores presentes para que “tudo na vossa vida pessoal e empresarial, neste ano, seja feito com esta consciência de que cada um de vós, nas empresas onde trabalha, vá acrescentando a obra de Cristo”. Pois, “a vida vivida à maneira de Cristo é mais realizadora em qualquer circunstância – tanto nas de sucesso como nas de fracasso”. Certo, para D. Manuel Clemente, é que “a palavra de Deus é uma palavra garantida. Digo e repito: tem dois mil anos de garantia. É uma palavra dita e feita, provada e comprovada”.
Acção católica: da tradição à actualidade
Os núcleos da ACEGE, herdeira da UCIDT – União Católica dos Industriais e Dirigentes do Trabalho, inserem-se na grande tradição da acção católica, que preencheu o século XX, mas que se inicia ainda no final do século XIX em países como Portugal, que tinham de enfrentar o liberalismo. Como comenta D. Manuel Clemente, esse movimento político gerou, “um cariz anticatólico em muitos lugares”, despoletando “várias organizações mais ou menos secretas que combatiam a presença católica”.
Este contexto levou a que os católicos militantes se reunissem também em várias organizações – a primeira chamava-se Sociedade Católica e nasceu em 1843. A acção católica desenvolve-se assim, já no século passado, em função do objectivo de que “o Evangelho tocasse as várias facetas da realidade moderna que se constituía na Europa”.
[quote_center]Trata-se do verdadeiro sentido que o desenvolvimento tem, e não é preciso fazer da secretária um púlpito[/quote_center]
Na perspectiva vivida por D. Manuel, isto em Portugal “foi flagrante”, pela sua incidência no mundo rural (então chamado agrário), no meio operário e no laboral, nas escolas, nas universidades, e “naquele mundo chamado independente, das meninas que aprendiam a tocar piano e a falar francês”. Criaram-se as Juventudes Católicas do A, E, I, O, U, brinca o Patriarca: a Juventude Católica Agrária, a Juventude Católica Independente, a das Escolas, a Operária, a Universitária… e depois, as respectivas ligas, dos seniores. Nesses anos 30, havia as secções masculinas e as femininas. Tratou-se de uma “organização fantástica” das dioceses portuguesas da acção católica, que em 1960 reunia já cerca de 100 mil associados.
A segmentação desta acção em sectores muito cerrados na sua actuação, nas primeiras décadas do século XX, é ultrapassada, no pós-guerra, por um movimento mais aberto impulsionado pela geração dos sixties (a de D. Manuel Clemente), que “já vive noutro mundo, onde todos estes grupos sociais e culturais estão mais interligados”, graças ao aumento da escolarização, que em Portugal foi dando os seus passos, à deslocação de muitas pessoas do campo para a cidade, ao surgimento da televisão no final da década de 50. “Tudo se alterou muito, até a linguagem que antes estava muito segmentada”, quando apenas “vivíamos o que nos aparecia pelos olhos dentro”. Cresceram então vários movimentos transversais, incluindo no campo da militância católica, e viveu-se uma época “de grandes concentrações, como o Movimento dos Cursilhos de Cristandade”, que nasceu em Espanha e rapidamente se espalhou pelo mundo. Fizeram-se “as primeiras homilias nos cafés” das pequenas terras. Todo este contexto, que D. Manuel experienciou, “mudou muito a sociedade”, em direcção à transversalidade que hoje a caracteriza, conclui.
Resulta que dessa antiga acção católica (nomeadamente no que respeita à ACEGE, descendente de uma união de trabalhadores da indústria) “sobra e deve sobrar algo que é absolutamente evangélico: o decalque do comportamento de Jesus Cristo e do seu grupo, com que esta história começou”. Numa visão sobre a humanidade que se pauta em três princípios essenciais, que a Igreja católica quer preservar nos dias de hoje: ver, julgar e agir.
[quote_center]O gestor católico é alguém que tem, nas relações com os seus colaboradores, uma atitude nova que faz com que as pessoas cresçam[/quote_center]
Como sublinha o Cardeal Patriarca de Lisboa, em primeiro lugar, é preciso ver. “Ver mesmo. Se havia alguém doente, Jesus via. Se havia uma situação incorrecta, Jesus via”. Depois, é necessário fazer um juízo sobre a situação que se observa. O qual, “no caso de Jesus, pela sua ligação ao Pai, só podia ser um juízo religioso”. Portanto, há que ajuizar à luz de Deus, diz D. Manuel. Finalmente, é imperioso agir. “Se vimos a situação e a ajuizámos a partir de Deus, o que vamos fazer? Como vamos proceder?” Este “método”, que a acção católica formalizou em todos os sectores, “mantém-se de uma actualidade absoluta”, frisa.
Prova disso, “é o que fazemos todos os meses nos grupos CnE”, diz. A partir de uma determinada situação, verificada “com o testemunho de quem a vive e partilha”, tenta-se fazer “um juízo evangélico” da mesma; e daí decorrem linhas de acção. “E isto é fermento na massa, tão simples quanto isso”. Neste sentido, o Patriarca de Lisboa apela a que se faça “da palavra o lugar onde nasce a fé e a nossa relação com os outros”, insistindo para que “não falte a nenhuma reunião dos nossos núcleos, da ACEGE, a palavra de Deus, como critério, como lugar para acontecer”.
E fazer este exercício é ter confiança em Deus e viver a partir dessa confiança, acrescenta. São Paulo, na Carta aos Romanos, escreve, num tratado “fundamental” para se entender o que é a fé cristã: “cuidado. É bom cumprir a Lei, dar-lhe pleno cumprimento além da letra, mas quem realmente nos põe como devemos estar e nos aceita como devemos ser é Deus”. Este texto, como outros, “deu panos para mangas”, como se sabe (por exemplo, Lutero “parecia dispensar o cumprimento da Lei e das obras, tanta incidência punha na fé”). Mas o que é certo, afirma, é que esta perspectiva da existência “nos faz viver de outra maneira. Tem consequências. Porque nos faz ir além daquilo que é estritamente devido”. E daqui resulta novo apelo aos gestores presentes na conferência da ACEGE: “não desistam quando não são capazes de cumprir tudo, e sobretudo não se fiquem pelo cumprimento formal da Lei”.
[quote_center]É preciso dar a importância devida à palavra de Deus. Tem dois mil anos de garantia[/quote_center]
É famosa a entrevista de Madre Teresa de Calcutá a um jornalista japonês, que não era crente, e que quis ir ver o que se estava a passar em Calcutá, com os moribundos. Foi nesse momento que a sua missão ficou conhecida, e “daí ao Nobel foi um salto”, recorda D. Manuel. Ao vê-la a tratar de um doente que impressionava pelo seu estado físico de degradação, o jornalista disse: “eu não fazia isto por todo o dinheiro do mundo”. E Madre Teresa, continuando a tratar do doente, respondeu: “eu também não”. Com este exemplo pleno de significado, o orador conclui que “o mundo da graça é este”.
Confiando que “desde que nós acertemos no ponto onde Jesus acerta, as coisas acontecem”, D. Manuel Clemente renova o apelo – porque o mesmo “tem dois mil anos de garantia” – para que a ACEGE continue a sua história “acrescentando sempre” à sua acção ”esta base da palavra de Deus”.
ACEGE reforça propósito de inspirar os líderes
No almoço-debate que assinala o início do novo ano de actividades da direcção nacional da ACEGE, e poucos dias depois da Peregrinação à Terra Santa realizada pela associação cristã no final de Setembro, João Pedro Tavares renova os votos para que “procuremos, em todas as circunstâncias, ser fieis à nossa missão, e estarmos atentos às realidades que nos rodeiam”.
Sublinhando que “temos muitos desafios para atender às realidades do tempo presente”, o presidente da Associação Cristã de Empresários e Gestores recorda, em particular, “aqueles que sofrem pela situação que resulta dos fogos”, um aspecto “que temos de viver de coração, sendo “objectivos, concretos e muito próximos”.
Perseguindo este ideal de proximidade, um dos propósitos da ACEGE para este ano de actividade é continuar a “inspirar os líderes empresariais a viver o amor e a verdade como critérios de decisão e de gestão”, sublinha João Pedro Tavares. Neste âmbito, um dos objectivos é consolidar e desenvolver os grupos Cristo na Empresa (de resto, uma das acções da associação mais valorizadas pelos seus membros, de acordo com um inquérito recente). Os CnE mobilizam já um total de 300 associados, num total de 30 grupos espalhados por todo o País, estando em fase de arranque três novos grupos seniores e dois juniores, adianta.
Um segundo desígnio da associação é desenvolver a sua comunidade e a proximidade com os vários núcleos regionais. A direcção nacional quer acompanhar de perto o trabalho desenvolvido em todo o país, caso do núcleo de Braga, que no dia 13 de Outubro relançou as suas actividades.
Como explica ainda João Pedro Tavares, um terceiro propósito é melhorar a comunicação e, nesse sentido, foi lançada a 20 de Outubro, nas redes sociais, uma comunidade online para a ACEGE Next, dinamizada pelos jovens empresários cristãos.
Jornalista