POR GABRIELA COSTA
“O poder não corrompe as pessoas. As pessoas é que corrompem o poder” – William Gaddis, escritor norte-americano
A corrupção sistémica agrava a desigualdade social, a nível mundial, e a desigualdade social provoca mais corrupção, o que gera um ciclo vicioso que “tem de ser quebrado”. Esta relação directa entre os dois fenómenos está a aumentar a falta de confiança dos cidadãos nas instituições políticas e a produzir “um solo fértil” para o crescimento do populismo. É o que revela o Índice de Percepção da Corrupção 2016 (IPC), anualmente realizado pela Transparency International (TI), com vista a avaliar a dimensão da corrupção no sector público de dezenas de países.
Publicada a 25 de Janeiro, a 22ª edição deste que é o principal indicador global sobre os níveis de corrupção públicos, isto é, políticos e administrativos, reuniu 176 países e territórios (mais oito do que em 2015). Numa escala em que zero significa “altamente corrupto” e 100 significa “muito íntegro”, 69% do total de nações avaliadas alcançaram menos de 50 pontos, com a pontuação média global a fixar-se nos 43 pontos. Estes resultados deixam claro que a corrupção é massiva e está disseminada, à escala global. Acresce que em 2016 houve mais países a descer (isto é, a piorar o seu desempenho) do que a subir no Índice da TI, o que demonstra “a necessidade urgente de acção”, perante uma prática que a organização classifica de “endémica”.
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Combate à corrupção contra-relógio
Com 90 pontos em 100, a Dinamarca e a Nova Zelândia são os primeiros classificados, destacando-se da média da região onde se inserem – respectivamente 66 pontos na Europa Ocidental incluindo os países da União Europeia, e onde a Bulgária regista a pior classificação, 41 pontos; e 44 pontos na Ásia-Pacífico, onde o pior lugar cabe à Coreia do Norte, com 12 pontos.
[quote_center]Perante práticas de corrupção massiva é urgente realizar reformas sistémicas profundas[/quote_center]
Segue-se a Finlândia na terceira posição (89 pontos), a Suécia, com 88 pontos, e em quinto lugar a Suíça, com 86, o que coloca a Europa no topo da integridade, que de resto obtém a melhor classificação a nível regional. O pior classificado é a Somália (10 pontos), antecedida pelo Sudão do Sul (11 pontos), Coreia do Norte (12 pontos), Síria (13 pontos) e Iémen, Sudão e Líbia, todos com 14 pontos.
Ainda a nível regional, as Américas alcançam 44 pontos (sendo o Canadá o país menos corrupto, com 82 pontos, e a Venezuela o mais corrupto, com 17 pontos); o Médio Oriente e o Norte de África registam 38 pontos (com os Emirados Árabes Unidos na melhor posição, com 66 pontos e a Síria na pior, com os referidos 13 pontos); a Europa de Leste e a Ásia Central 34 pontos (57 pontos para a Geórgia, 21 pontos para o Uzbequistão); e, na cauda do ranking, a África Subsariana não ultrapassa uma média de 31 pontos (com o Botswana a alcançar 60 pontos e a Somália a classificar-se como o país com o sector público mais corrupto do mundo, pelo décimo ano consecutivo, com somente 10 pontos, em cem).
Comparativamente a 2015, os países que melhoraram de forma mais expressiva o seu desempenho a este nível são o Suriname, a Bielorrússia, Timor-Leste, Myanmar, Guiana, Geórgia, Laos, Argentina, Coreia do Norte, Burkina Faso, Cabo Verde, Turcomenistão, São Tomé e Príncipe e Afeganistão; enquanto os maiores declínios, este ano, cabem ao Catar, Kuwait, Bahrein, Arábia Saudita, Chipre, Lesoto, Jordânia, Síria, Macedónia, México, Sudão do Sul, Chile, Emirados Árabes Unidos, Mauritânia, República Centro-Africana, Holanda, Moçambique, Trindade e Tobago, Gana, Iémen e Djibuti.
Embora nenhum país seja livre de corrupção, os países no topo do Índice de Percepção da Corrupção 2016 compartilham características de governo aberto, liberdade de imprensa, liberdades civis e sistemas judiciais independentes. Já as nações pior colocadas nesta análise são caracterizadas pela ampla impunidade da corrupção, fraca governança e fragilidade das instituições.
De sublinhar ainda que os países situados em regiões problemáticas, particularmente no Oriente Médio, observaram uma queda mais substancial este ano. Exemplo disso é o Catar, que sofreu o maior declínio comparativamente ao índice de 2015, com uma queda de dez pontos. Como comenta José Ugaz, presidente da Transparência Internacional, “os escândalos da FIFA, as investigações sobre a decisão de sediar o Campeonato do Mundo [de futebol] em 2022 no Catar e os relatórios dos abusos de direitos humanos com trabalhadores imigrantes têm claramente afectado a percepção sobre o país”.
Para Ugaz, perante os resultados globais dos níveis públicos de corrupção, “não nos podemos dar ao luxo de perder tempo. A corrupção tem de ser combatida com urgência para que a vida das pessoas melhore, em todo o mundo”.
Portugal estagnado
Portugal desceu um ponto e um lugar no Índice de Percepção da Corrupção de 2016, realizado pela rede global de ONG anticorrupção, representada a nível nacional pela Associação Cívica Transparência e Integridade (TIAC). Com uma pontuação de 62 pontos (contra os 63 registados em 2015), o nosso País posiciona-se agora na 29ª posição no ranking, caindo do 28º lugar obtido na edição anterior.
[quote_center]Portugal está estagnado no combate à corrupção[/quote_center]
Como sublinha a Direcção da TIAC, “este resultado revela que Portugal está estagnado no combate à corrupção”, embora, e obviamente, uma variação de um ponto em 100 não seja “estatisticamente significativa”. Na realidade, nos últimos cinco anos, o score nacional no IPC não variou dos 62 ou 63 pontos. Significa isto que “cada ano que passa tem sido uma oportunidade perdida para fazer avanços no combate à corrupção e ganhar a confiança de observadores e investidores estrangeiros, tão necessária à nossa recuperação económica e desenvolvimento social”.
Ora, na leitura da TIAC, “sem esse progresso no combate à corrupção, continuaremos condenados à anemia económica e incapazes de atrair verdadeiro investimento estrangeiro, que de facto crie emprego e riqueza e não se limite à especulação ou ao branqueamento facilitados por programas como os vistos Gold, que têm um impacto muito reduzido na criação de emprego, na inovação ou na criação de valor”.
A estagnação no combate à corrupção verificada em Portugal é extensível a toda a Europa. No velho continente não se registaram mudanças drásticas nos níveis de corrupção políticos e administrativos dos países, o que “não indicia que o seu combate tenha melhorado”, mas antes que os escândalos de alto nível associados a abuso de poder, usurpação de fundos públicos ou comportamentos pouco éticos e até imorais por parte de um número crescente de líderes políticos europeus, nos últimos anos, “têm vindo a contribuir para o descontentamento popular e a desconfiança nos sistemas políticos”, denuncia a TI.
Na perspectiva da TIAC, também em Portugal a estagnação nesta matéria “influencia a confiança dos operadores económicos e inibe o investimento”. Numa altura em que foi criada no Parlamento uma Comissão dedicada ao reforço da transparência na vida pública, “precisamos de aproveitar esta oportunidade para não só reforçar a regulação” mas, e sobretudo, “implementar mecanismos eficazes de monitorização e controlo que garantam a defesa intransigente do interesse comum nos negócios públicos”. Pois, “de nada vale alterarmos as regras se depois não investirmos na sua efectiva aplicação”, como avisa a direcção desta associação cívica.
Beneficiar poucos às custas de muitos
A corrupção consiste em actividades ilegais que são deliberadamente escondidas e só vêm à luz através de escândalos, investigações e processos judiciais. Não existe, portanto, “uma forma consistente de avaliar a corrupção em níveis absolutos”, em países ou territórios, com base em “dados empíricos concretos”. Como explica a Transparency International, as tentativas de o fazer, comparando os subornos reportados e o número de processos judiciais instaurados, ou estudando casos em processos legais directamente ligados à corrupção, “não podem ser tomadas como indicadores definitivos” dos níveis de corrupção. Pelo contrário, “mostram a eficácia dos promotores públicos, tribunais ou media” na investigação e exposição da corrupção.
[quote_center]O conluio entre empresas e políticos subtrai muitos milhões das economias nacionais[/quote_center]
Neste contexto, as percepções daqueles que estão em posição de prestar avaliações da corrupção no sector público constitui “o método mais confiável de comparação de níveis relativos de corrupção” em diferentes países. O Índice de Percepção da Corrupção é medido, justamente, a partir das percepções de especialistas externos e de organizações internacionais, cruzando mais de uma dezena de pesquisas e avaliações distintas, fornecidas em 2016 por 12 instituições independentes especializadas em análise de governança e ambiente de negócios. Para que um país ou território seja inserido na classificação deve estar incluído em, pelo menos, três das fontes de dados do IPC. As fontes de informação usadas para o IPC 2016 baseiam-se em dados recolhidos ao longo dos últimos 24 meses.
Em termos globais, a mais recente edição deste índice revela a ligação próxima entre corrupção sistémica e desigualdade social. Escândalos como os ‘Panamá Papers’ tornam evidente que “é ainda demasiado fácil para os ricos e poderosos do mundo explorarem em proveito próprio a opacidade do sistema financeiro global”, enriquecendo às custas do bem público, enquanto as populações mais frágeis “são castigadas pelo agravamento do desemprego, pelo aumento da factura fiscal e pela diminuição dos serviços sociais”.
Consequentemente, em muitos países “as pessoas são privadas das suas necessidades mais básicas e vão dormir com fome todas as noites por causa da corrupção, enquanto os poderosos e corruptos aproveitam estilos de vida luxuosos de forma impune”, como acusa o presidente da TI.
Grandes casos de corrupção, da Petrobras e da Odebrecht no Brasil até ao ex-presidente ucraniano Viktor Yanukovych, mostram bem como o conluio entre empresas e políticos subtrai das economias nacionais muitos milhões de dólares que foram canalizados “para beneficiar poucos às custas de muitos”. Este tipo de corrupção sistémica e em larga escala viola os direitos humanos, impede o desenvolvimento sustentável e alimenta a exclusão social, alerta a rede global anticorrupção.
Na perigosa onda do populismo
A “gritante desigualdade” da distribuição de poder e de riqueza na sociedade tem alimentado políticos populistas um pouco por todo o mundo – políticos que, “prometendo combater a corrupção sistémica, colocam pelo contrário mais riscos ao funcionamento das democracias”. Cansadas de “tantas promessas vazias de combate à corrupção”, as pessoas tendem a recorrer a políticos populistas que prenunciam que irão mudar o sistema e romper o ciclo da corrupção e do privilégio. Uma falácia, já que o mais provável é que esta tendência agrave de forma perigosa os níveis de corrupção em todo o mundo, explica ainda a TI.
[quote_center]Em vez de combaterem o clientelismo, os líderes populistas instalam sistemas ainda mais corruptos[/quote_center]
Prova desta relação perniciosa são a Hungria e a Turquia, países que assistiram à ascensão de líderes autocráticos, e cuja pontuação no Índice de Percepção da Corrupção tem registado uma tendência de queda, nos últimos anos. Em contraste, a Argentina, que recentemente derrubou um governo populista, está a começar a recuperar no seu desempenho a este nível.
Muito crítico, José Ugaz defende que em países com lideranças populistas ou autocráticas se assiste com frequência a “democracias em declínio” e a um “padrão perturbador” de tentativas de repressão da sociedade civil, de limitação da liberdade de imprensa e de debilitação da independência do poder judicial. Em vez de combaterem o capitalismo assente no clientelismo, esses líderes geralmente instalam sistemas corruptos ainda piores, conclui Ugaz, alertando que a sociedade civil e os órgãos de media só conseguem responsabilizar aqueles que estão no poder e combater a corrupção com sucesso “quando há liberdade de expressão, transparência em todos os processos políticos e instituições democráticas sólidas”.
Neste contexto, e como esclarece a organização responsável pela elaboração do indicador de corrupção mais utilizado em todo o mundo, já não é suficiente proceder a ajustes técnicos em leis específicas anticorrupção.
Perante um problema que é estrutural e se agrava a olhos vistos, no conturbado mundo que se desenha sob a ameaça da nova ordem mundial – e no qual as ligações entre populismo, degradação socioeconómica e vulnerabilidade da agenda anticorrupção são cada vez mais evidentes –, é urgente realizar reformas sistémicas profundas, que corrijam o desequilíbrio crescente entre poder e riqueza através do empoderamento social. Essas reformas devem incluir a divulgação, por meio de registos públicos, dos dados “dos verdadeiros donos” das empresas, assim como punições aos profissionais que são cúmplices de práticas corruptas, e que tornam possível a movimentação de dinheiro ilícito, nomeadamente além-fronteiras.
Só assim se poderá “acabar com a impunidade, responsabilizar os poderosos e garantir que as pessoas tenham voz nas decisões que afectam as suas vidas”, apela a Transparency International. E, para que cada cidadão possa dar voz a esta causa, a rede anticorrupção tem em curso uma petição – à hora de fecho desta edição assinada já por mais de 14600 pessoas -, que exige aos governantes que os abusos de corrupção sejam substituídos por práticas de gestão e liderança pautadas por valores de integridade, transparência, responsabilidade e prestação de contas.
Jornalista