São vários e chocantes. Se ler este artigo, ficará a saber que um conjunto de 100 empresas tem no seu currículo, nos últimos 28 anos, 71% do total das emissões globais de gases com efeitos de estufa. Que os países do G20, os mesmos que assinaram o Acordo de Paris, estão a financiar quatro vezes mais projectos de combustíveis fósseis do que iniciativas de energia limpa. E que em 2016, pelo menos 1200 pessoas foram assassinadas, entre activistas, jornalistas e membros de comunidades locais, por estarem a defender o ataque aos recursos naturais perpetrados por indústrias várias e em conivência com vários governos. Não é bonito de se ler, mas é a realidade
POR
HELENA OLIVEIRA

Um icebergue com quase seis mil quilómetros está à deriva. Desde 1988 que mais de metade das emissões industriais globais pode ser atribuída a apenas 25 empresas e entidades estatais. Em 2017, os governos dos países do G20 estão a financiar quatro vezes mais projectos de combustíveis fósseis do que de energias limpas. Em 2016, 1200 pessoas foram assassinadas por defenderem a (sua) terra e os recursos naturais (v. Caixa).

Quatro informações, quatro temáticas aparentemente diferentes e, em comum, a cobiça e a hipocrisia humana.

A primeira, amplamente noticiada pela “beleza” da tragédia, e divulgada em primeira mão pelo Project Midas, sedeado na Universidade de Swansen, no País de Gales, confirma o que os cientistas já esperavam: o desprendimento de um gigantesco bloco de gelo da denominada plataforma Larsen C, na Antárctida Ocidental, com um bilião de toneladas e um dos maiores icebergues de que há registo. De acordo com os cientistas Martin O´Leary e Adrian Luckman, a dita plataforma fica reduzida em 12% e a paisagem da Península Antárctica ficará alterada para sempre. O fenómeno não é, todavia, novo: em 1995 e em 2002, duas massas de gelo semelhantes, se bem que menores, a Larsen A e a Larsen B, também se partiram, juntando-se a uma já longa lista de plataformas que seguiram o mesmo destino. Dado que a Península Antárctica é um dos locais do planeta que mais está a aquecer – de acordo com os dados disponíveis e desde 1950, a temperatura média anual teve um acréscimo, na região, de quase três graus Celsius – e que, naturalmente, a “entrada” destes blocos de gelo gigantescos nos oceanos aumentam o nível do mar, com os efeitos catastróficos que poderão representar, o que seria “normal” é que as tão faladas medidas para travar as alterações climáticas fossem, de uma vez por todas, “obrigatórias” e que os governos em vez de se preocuparem com os seus desmesurados jogos de poder, agissem, realmente, em prol do planeta e das pessoas.


Mas não é o que está a acontecer.

De acordo com o relatório anual da Carbon Majors publicado em parceria com a organização ambiental sem fins lucrativos CDP (anteriormente conhecido como Carbon Disclosure Project e considerada como uma das mais bem conceituadas instituições no que respeita à investigação das alterações climáticas) e com o Cimate Accountability Institute, 100 empresas são responsáveis por mais de 70% das emissões de gases com efeito de estufa, desde 1988, ano em que foi criado o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) e que assinala o início do rastreamento das emissões de carbono, bem como os resultados da “mão humana” no aquecimento global.

O número fica ainda mais expressivo se considerarmos que, nos últimos 28 anos, mais de metade de todas as emissões de carbono foi proveniente das “mãos” de 25 entidades, empresariais e/ou detidas pelo Estado, cuja principal actividade é a exploração de combustíveis fosseis. Gigantes petrolíferos como a ExxonMobil, a Shell, a BP, a Chevron, a BHP Billiton e a Gazprom estão entre as recordistas de emissões e, como alerta o mesmo relatório, se os combustíveis fósseis continuarem a ser extraídos ao mesmo ritmo nos próximos 28 anos, as temperaturas médias globais poderão aumentar em quatro graus Celsius até ao final do século, com consequências inimagináveis, sendo provável a extinção de um número alargado de espécies em conjunto com riscos substanciais de escassez de alimentos em todo o mundo.

[quote_center]Apenas 100 empresas são responsáveis por mais de 70% das emissões globais de gases de estufa[/quote_center]

O rastreio de emissões é feito, por norma, a nível nacional, sendo que o denominado Carbon Majors Report é o primeiro a compilar, a partir de uma base de dados pública e alargada, o contributo dos maiores produtores de combustíveis fósseis (petróleo, gás e carvão) para o estado do planeta. O principal objectivo deste relatório pioneiro é o de alertar para o papel crucial que as empresas têm, em conjunto com os seus investidores, para a abordagem séria das alterações climáticas, sendo que as suas principais conclusões são preocupantes o suficiente para colocar em causa este “nobre” propósito. Vejamos alguns dos resultados mais detalhadamente.

O grupo das 100 empresas que, globalmente e pelo menos desde 1988 – ano em que as alterações climáticas foram reconhecidas como “induzidas pela actividade humana” – é responsável por 71% das emissões de gases com efeito de estufa (GEE), o que corresponde a 635 mil milhões de toneladas de emissões. Sem surpresas, todas elas pertencem à indústria de extracção de combustíveis fósseis.

Os dados demonstram igualmente que 32% de todas estas emissões rastreadas são provenientes de empresas privadas e cotadas, o que sublinha o poder dos investidores na tão ambicionada transição para uma economia sustentável.

Adicionalmente, e “refinando” os dados em análise, o relatório demonstra também que estas emissões à escala global estão concentradas num pequeno grupo de gigantes empresariais: de 1988 a 2015, apenas 25 exploradores de combustíveis fósseis têm no “currículo” 51% das emissões globais industriais de GEE, sendo que as maiores emissoras no período considerado incluem a ExxonMobil, a anglo-holandesa Shell, a BP, a Chevron, a Peabody, a francesa Total e a anglo-australiana BHP Billiton.

Por outro lado, entidades estatais como a Saudi Aramco, a russa Gazprom, a National Iranian Oil, a Coal India, a mexicana Pemex, a China National Petroleum Corporation (semi-estatal) são igualmente players cruciais no mercado em causa.

[quote_center]Nos últimos 28 anos, mais de metade de todas as emissões de carbono veio das mãos de 25 entidades, empresariais e/ou detidas pelo Estado[/quote_center]

Como alerta Pedro Faria, director técnico do CDP, “este relatório pioneiro sublinha o facto de como um pequeno conjunto de apenas 100 produtores de combustíveis fósseis podem ter na sua mão a chave para uma mudança sistémica nas emissões de carbono”.

E acrescenta: “estamos a testemunhar uma mudança crucial em termos de políticas, inovação e capital financeiro que coloca o ‘tipping point’ para a transição de uma economia baixa em carbono ao alcance da humanidade, sendo que estes dados históricos demonstram o quão importante é e será o papel dos ‘carbon majors’ e dos investidores que os detêm”.

Os Senhores do Planeta

© carbonmajors.org

A nova e gigantesca base de dados do CDP faz também projecções até 2100 para ilustrar o papel das empresas na abordagem das alterações climáticas, em linha com um outro seu relatório, no qual se revela que a indústria do petróleo e do gás está a iniciar a sua transição para as energias renováveis. Adicionalmente, é igualmente revelado que os “majors” europeus estão a ultrapassar os seus pares dos Estados Unidos nesta mudança crucial para a governança climática e em termos de estratégia de investimento para as tecnologias de baixo carbono. Um bom exemplo é o da ExxonMobil, cujos accionistas exigiram, em Maio último, que a empresa comece a “agir” em prol da mitigação dos efeitos das alterações climáticas.

Em declarações a propósito das conclusões do relatório e causa, e para o qual contribuiu, Richard Heede, director do The Climat Accountability Institute, acrescentou: “Da captura do carbono para as energias limpa, da mitigação do metano para as eficiências operacionais, os ‘majors’ dos combustíveis fósseis terão de demonstrar a sua liderança ao contribuírem para a transição da economia de baixo carbono, tanto em termos de escala, como de ritmo. As empresas de extracção de combustíveis fósseis precisam de planear o seu futuro de acordo com um contexto de transformação radical do sistema de energia global. Devem-no aos milhões de clientes que servem e que estão já a sentir os efeitos das alterações climáticas, aos consumidores e investidores e aos muitos milhões de pessoas que precisam de energia para o conforto diário das suas vidas, mas que estão à procura de alternativas aos seus produtos”.

Mas e sendo assim, o que estão a fazer os governos para estimular esta necessária transição? Pelos vistos, e mesmo depois do suado Acordo de Paris, pouco.

© DR

A hipocrisia serve-se quente

Não é novidade a presença habitual de activistas e manifestantes em protesto quando se juntam as 20 economias mais industrializadas do mundo. E este ano não houve excepção à regra. Apesar de o terrorismo ter sido o tópico principal na agenda dos líderes reunidos em Hamburgo, e com manifestações violentas antes e ao longo da cimeira que decorreu entre 7 e 8 de Julho, os manifestantes não se centraram, como é hábito, apenas nos já famosos gritos anti-capitalismo mas, e sobretudo, nas disparidades económicas, na crise dos refugiados e sim, em grande escala, nas alterações climáticas.

Com uma promessa já baptizada de G19 – ou seja, o grupo dos mais poderosos exceptuando os Estados Unidos – foi reafirmado o compromisso firmado em Paris face às alterações climáticas, bem como a sua irreversibilidade.

Todavia e aproveitando o clima tenso que se adivinhava para a cimeira, uma “coligação” de múltiplas entidades dedicadas à investigação dos perigos dos combustíveis fósseis lançou, dois dias antes da reunião de líderes ter tido início, um estudo liderado pela Oil Change International – uma organização que investiga, divulga e denuncia os seus verdadeiros custos, tendo também como objectivo servir de facilitadora para a transição de uma nova economia “limpa” – denunciando os esforços mínimos que os países do G20 estão a fazer face às promessas feitas na Cimeira de Paris. O estudo, com um título provocatório q.b. – “A conversa é barata: como os governos do G20 estão a financiar o desastre climático” analisa o financiamento público destes mesmos países, em conjunto com os seus acordos multilaterais com bancos de desenvolvimento e outro tipo de entidades, de projectos que beneficiam a indústria dos combustíveis fósseis versus o dinheiro que é investido em iniciativas de energias limpas. E os resultados são, no mínimo, poluentes.

Recordando que a ciência já demonstrou que para se evitar disrupções severas nos ecossistemas e na própria população humana, o ideal seria manter o aumento médio das temperaturas globais em 1,5o C, os responsáveis pelo estudo afirmam que recentes análises confirmam que se fosse levada a cabo a queima de reservas de petróleo e gás existentes apenas nos campos/plataformas que se encontram operacionais na actualidade – e mesmo que a extracção de carvão já estivesse em fase regressiva – tal acção levaria a temperatura do planeta a subir acima dos 1,5o C.. Adicionalmente, o potencial de emissões de carbono proveniente de todos os combustíveis fósseis que existem actualmente em todo mundo levar-nos-ia bem além dos 2o C. de aumento médio de temperatura global.

Assim, acrescenta a Oil Change International, os governos que assinaram o Acordo de Paris – e que “concordaram” em limitar o aumento da temperatura global até 2o C – “idealmente” até 1,5o C – são os mesmos que “continuam a fornecer contratos ‘bonzinhos’ [sweetheart loans, no original], garantias e outras formas de financiamento preferencial a projectos de combustíveis fósseis em detrimento das iniciativas de energia limpa”.

Por mais chocante que pareça – ou talvez não – o relatório da Oil Change International demonstra que os governos do G20 estão a prover quase quatro vezes mais de dinheiro público para financiar os projectos de combustíveis fósseis comparativamente aos montantes investidos nos projectos de energias limpas.

A organização afirma também que se os Estados Unidos decidiram “furar” o acordo climático global, então terão de ser os demais países a assumir a liderança da transição para a energia limpa, “chegando-se à frente”: “os governos não podem simplesmente ser líderes climáticos enquanto continuarem a financiar projectos de combustíveis fósseis ao ritmo a que o estão a fazer”, pode ler-se no relatório.

[quote_center]Os governos que assinaram o Acordo de Paris são os mesmos que continuam a fornecer contratos, garantias e outras formas de financiamento preferencial a projectos de combustíveis fósseis em detrimento das iniciativas de energia limpa[/quote_center]

Para os responsáveis da Oil Change International, os governos têm de iniciar, e com urgência, uma mudança no valor de triliões de dólares em investimento que passa pelo abandono de infra-estruturas poluentes e pela adopção de actividades resilientes de baixas emissões – a qual é denominada de transição do “castanho para o verde” – para que os limites do aumento das temperaturas não sejam superados. “ E devem começar pelo seu próprio financiamento público”. Mas o problema é que esta análise demonstra que as “mais recentes tendências” vão na direcção oposta.

A verdade é que financiamento público para os combustíveis fósseis suplanta, em muito, o financiamento público para as fontes de energia limpa. E contra factos, fica difícil ter argumentos.

Para aceder aos dados especifico do estudo, clique aqui.


© GlobalWitness.org

Proteger da morte os que tentam proteger a vida do planeta

“Nunca foi tão mortífero tomar uma posição contra as empresas que roubam terras e destroem o ambiente”.

Esta é a frase de “entrada” do website da GlobalWitness.org, uma organização sem fins lucrativos que, em conjunto com vários parceiros em todo o mundo, investiga, expõe abusos e faz campanhas de alerta sobre a violação dos direitos humanos e sobre a exploração brutal dos recursos naturais do planeta. Com vinte anos de experiência no terreno, a equipa desta ONG que junta jornalistas, investigadores, activistas e múltiplas plataformas de luta contra a corrupção nos sistemas políticos e económicos globais, na maioria das vezes sob disfarce e arriscando a própria vida, é reconhecida mundialmente pelas reportagens e documentários que faz, expondo as atrocidades existentes nos sectores do gás, petróleo, exploração madeireira e mineira, vividas em particular por populações que deveriam beneficiar directamente dos recursos naturais oferecidos pelas terras onde vivem.

Publicado anualmente desde 2004, o relatório Defenders of the Earth, com dados de 2016 e divulgado este mês, dá conta de mais de 1200 mortes, entre activistas, jornalistas e membros das comunidades das zonas de onde são extraídos os recursos acima mencionados, alertando que a luta pelo ambiente se está a transformar num sangrento campo de batalha.

O relatório, absolutamente chocante e cuja leitura aconselhamos na íntegra, dá conta de quase quatro assassinatos por semana, ao longo do ano de 2016, de pessoas que tentam proteger as suas terras, florestas e rios do abuso perpetrado por várias indústrias, sobretudo a de extracção mineira, de madeira e do sector agro-alimentar. Pelo menos 200 membros de comunidades foram mortos o ano passado, mais do dobro de jornalistas (79) que também tentaram expor os negócios sangrentos do poder, sendo que a tendência está não só a crescer (face a 185 mortes em 2015) como a disseminar-se, com homicídios reportados em 26 países comparativamente a 16 em 2015. O relatório documenta, e a título de exemplo, o fenómeno “triplicado” na Índia, com ataques polícias brutais e repressões estatais para com os activistas a atingir níveis recordistas.

Todavia, é a América Latina que continua a figurar como a região mais afectada, “anfitriã” de 60% das mortes reportadas. Ainda de acordo com o relatório, o assassínio é “apenas” a medida final de um conjunto de estratégias utilizadas para silenciar todos estes “defensores”, o qual integra ameaças de morte, prisões ilegais, abusos sexuais, raptos e ataques legais agressivos.

De acordo com Ben Leather, um militante da Global Witness, todas as atrocidades relatadas um pouco por todo o mundo contam uma história demasiado negra e que já ultrapassou todos os limites. “A batalha para proteger o planeta está a intensificar-se rapidamente e os custos já podem ser contados através da perda de muitas vidas humanas. É cada vez maior o número de pessoas num número igualmente superior de países que não têm outra opção senão a de lutar contra o roubo das suas terras ou da destruição do ambiente que as rodeia. E são demasiadas as vezes em que são brutalmente silenciadas pelas elites políticas e empresariais, enquanto os investidores que as financiam nada fazem”.

Cerca de 40% dos assassinatos reportados em 2016 correspondem a nativos de comunidades locais, cujas terras que receberam dos seus antepassados são agora roubadas por empresas, grandes proprietários e agentes estatais. Os projectos para as mesmas são pura e simplesmente impostos às comunidades, sem o seu consentimento livre, informado e antecipado, e a força bruta é a arma utilizada para os expulsar. O relatório refere que polícias e militares são suspeitos em pelo menos 43 dos homicídios ocorridos no ano transacto.

Adicionalmente, estas comunidades encontram-se, de forma crescente, na linha de fogo de inúmeras empresas, forças de segurança estatais e num mercado florescente de assassinos contratados, sendo que a inexistência de atenção para com o problema só está a alimentar níveis endémicos de impunidade, com apenas um por cento dos perpetradores a serem efectivamente condenados entre o período de 2002 a 2014.

Comparativamente a 2012, ano em que foi reportada a morte de 711 activistas, jornalistas e membros das comunidades afectadas, os 1200 homicídios que entram para as estatísticas do ano passado são apenas os que estão comprovados, estimando-se que os números reais sejam muito mais elevados, dada a enorme ausência de informação e divulgação por parte do “problema”, onde reina o silêncio e o medo.

Tal como se pode ler na introdução a este relatório macabro, “nunca foi tão importante proteger o ambiente, nem nunca foi tão mortal fazê-lo”.

Se tiver coragem, veja em vídeo uma amostra (ou mais) desta brutal realidade.


Editora Executiva