A abundância das energias renováveis está mesmo diante nós, mas o passo a dar é na realidade um salto: dentro dos próximos trinta anos, será necessário abandonar completamente os combustíveis fósseis e dar uma tremenda volta à vida que conhecemos, adoptando hábitos de maior contenção. Nas últimas décadas, o mundo tem sido assombrado pela perspectiva da escassez de energia. É difícil perceber que vivemos estes primórdios de abundância futura – absolutamente certa – das energias renováveis em geral e da energia solar em particular. Este paradoxo é facilmente explicado: serão necessários mais trinta ou quarenta anos para o conseguir, e o fornecimento actual baseia-se sobretudo nos combustíveis fósseis, cuja produção, transporte e utilização poluem o ar, o solo e a água e desequilibram o clima
POR PEDRO COTRIM
Na última década, a energia fotovoltaica tornou-se na mais barata de todas, embora tivesse sido a mais cara em tempos não muito longínquos. A energia eólica terrestre ou marítima também viu o seu custo descer consideravelmente. O potencial da energia solar é praticamente ilimitado à escala das nossas necessidades; o da energia eólica, particularmente a marítima, muito considerável.
A descida espectacular do custo da energia fotovoltaica está longe de terminar e nunca terá havido uma energia potencialmente barata a uma tal escala. Custa agora menos construir uma quinta solar do que alimentar com carvão uma central termoeléctrica na China ou na Índia, mesmo que o produto que uma e outra forneçam não seja necessariamente o mesmo ou que possa ser recolhido da mesma forma. Nos Estados Unidos, quando se trata de construir uma nova instalação de produção de energia eléctrica para períodos de grande consumo, a opção fotovoltaica acompanhada de baterias (uma combinação cujo custo está a descer rapidamente) mostra-se muito competitiva em relação às alternativas.
O cenário principal da AIE sugere que em 2040, com base nas políticas anunciadas, as energias renováveis fornecerão quase metade da electricidade mundial – incluindo 15% de energia hidroeléctrica, 15% da energia eólica (5% na actualidade) e 15% de energia solar (contra 3% nos dias de hoje), a que se acrescentam 5% de bioelectricidade e energia geotérmica.
No seu World Energy Outlook de 2020, a AIE foi mais além e esboçou uma reflexão sobre os meios para alcançar emissões zero a nível global por volta de 2050, data escolhida pela Europa, Estados Unidos e outros países da OCDE, enquanto a China se comprometeu com 2060. Este cenário assentaria numa aceleração da electrificação do consumo final de energia simultâneo a uma aceleração da descarbonização da electricidade. Embora a electricidade represente apenas 20% do nosso consumo final de energia, em 2019 a sua produção é a fonte de 38% das emissões de CO2 relacionadas com a energia, devido à sua origem fóssil e porque metade da energia assim produzida é perdida sob a forma de calor (registe-se, no entanto, que os equipamentos eléctricos são habitualmente mais eficientes do que os térmicos).
As fontes renováveis, com a eólica e a solar na liderança, não se limitarão a tomar conta da produção de electricidade: dominarão todos os usos combinados, principalmente de forma directa, e não considerando a substituição de combustíveis fósseis por combustíveis sintéticos, excepto em alguns casos extremos.
A electrificação, chave para a descarbonização da economia global, é possibilitada pelo surgimento da energia eólica e da fotovoltaica, elas próprias solução para a descarbonização da electricidade. Tudo isto terá efeitos profundos sobre o próprio conceito de energia. Reduz-se consideravelmente a procura de energia «primária», ou seja, produtos energéticos não transformados (carvão, petróleo e gás natural, sobretudo). Até hoje, os combustíveis fósseis desempenharam um papel fundamental na produção de electricidade. No entanto, a eficiência média das centrais termoeléctricas situa-se aproximadamente nos 40% – o restante perde-se. O uso directo de combustíveis (como gás natural) para aquecimento e calor industrial pode parecer muito eficiente, mas as bombas de calor, que captam a energia do ambiente, são-no muito mais: 1 kWh de electricidade é suficiente para fornecer em média 3 a 4 kWh de calor útil. Os motores de combustão interna também produzem mais calor do que movimento, com muita energia perdida.
No entanto, um vigoroso debate opõe os defensores de um «100% renovável» na electricidade àqueles que pensam que é impossível ou incomportável, devido à variabilidade dos recursos: a energia fotovoltaica não se produz à noite, produz menos no Inverno e o vento pode nem sempre soprar para as eólicas. Na Europa e nos países de clima temperado, a procura de electricidade é superior no Inverno, pelo que a energia eólica terá naturalmente um papel preponderante. Nos países quentes, onde a procura por ar condicionado está a aumentar exponencialmente, não será muito difícil armazenar para a noite o que se produziu durante o dia com electricidade fotovoltaica. O equilíbrio na produção de energia renováveis reduz consideravelmente a necessidade de armazenamento a longo prazo, mesmo que seja à custa de algum limite de produção de electricidade nas horas de maior procura. Teremos de nos habituar à ideia de construir instalações que, em alguns períodos, estarão em subutilização. É verdade, porém, que, a menos que existam muitas centrais hidroeléctricas, será necessário manter capacidades térmicas controláveis para gerir níveis muito diferentes de procura na produção renovável.
Para os cépticos, a hipótese de domínio das energias renováveis eléctricas sobre todos os usos de combustíveis fósseis parece uma loucura. Com excelente distribuição, facilidade de armazenamento, disponibilidade de carvão e de gás (e, sobretudo, petróleo), dominam totalmente os sectores da construção, da indústria e dos transportes, concedendo apenas uma pequena percentagem a outras fontes.
Pode responder-se pelo aumento da electrificação do consumo final de energia para eliminar os combustíveis fósseis e aumentando a quota das renováveis nas redes eléctricas. Estes novos usos de electricidade em edifícios, indústria e transportes poderão não serão imediatamente suficientes para os picos de procura, mas tornam rentável uma maior implantação de parques eólicos e solares. Os veículos eléctricos são sobretudo equipados com baterias; se o recarregamento for feito de forma inteligente, será possível controlar o equilíbrio entre oferta e procura nas redes eléctricas.
A produção de calor doméstico e industrial, questão essencial que representa quase metade da demanda «final» de energia, pode ser totalmente electrificada. Na habitação e no sector terciário, na condição de isolamento térmico reforçado, as bombas de calor são extremamente eficientes. Na indústria, uma série de novas técnicas possibilita que se atinjam os níveis necessários de temperatura, muitas vezes com economia significativa de energia e tempo. Surgem dispositivos compactos que podem absorver electricidade eólica ou solar durante oito horas por dia e fornecer calor até mil graus Celsius de forma contínua.
A produção de hidrogénio «verde», por electrólise da água, irá proporcionar outros consumos de electricidade nos picos de procura ou em quebras de produção das fontes renováveis. Assim, a mobilidade eléctrica, a produção de calor, frio e hidrogénio contribuirão para financiar uma expansão das energias renováveis que ultrapasse a actual produção de electricidade. Facilitarão a integração das energias renováveis, reduzindo o uso dos meios térmicos necessários para atender aos picos de procura. Porque se a produção de fontes renováveis poderá conhecer períodos de redução, mantém-se proporcional à potência instalada, sendo que qualquer aumento reduz ao mesmo tempo o volume de energia a produzir por outros meios. É particularmente o caso da energia eólica offshore, muito mais regular na produção.
O hidrogénio pode completar a electrificação quando necessário. É hoje um gás industrial que nada tem de próprio. É usado principalmente para refinamento e produção de dois produtos químicos essenciais, amónia e metanol. No futuro poderá transportar electricidade a zonas fora do alcance de linhas eléctricas ou das baterias, fornecendo querosene «sintética» a aviões e amónia a barcos. Também permitirá descarbonizar quase completamente a indústria siderúrgica, fonte de emissões anuais de mais de dois mil milhões de toneladas de CO2, ao transformar o minério de ferro em ferro metálico antes de ser fundido e transformado em aço em fornos eléctricos. Finalmente, poderá completar a descarbonização das redes elétricas, abastecendo as restantes centrais térmicas com combustível sem carbono, armazenado a alta pressão em cavidades subterrâneas de sal, ou sob a forma de amoníaco em depósitos de aço.
Por outro lado, o progresso constante das baterias deixará, na melhor das hipóteses, poucas utilizações para o hidrogénio, porque o hidrogénio é penalizado por uma eficiência de transformação da electricidade em força motriz duas a três vezes inferior à da bateria, assim como pelos custos mais elevados. A sua utilização para aquecimento ou calor industrial sofre ainda mais com a comparação com bombas de calor, técnicas electromagnéticas (microondas, arcos eléctricos, indução, etc.) energia variável e armazenamentos térmicos.
Outra dimensão provável do cenário das emissões zero em 2050 é a introdução explícita de «mudanças de comportamento». Não é inteiramente novo para a AIE, na medida em que sempre assumiu uma certa elasticidade do consumo em função dos custos. Porque se as energias renováveis são agora competitivas para produzir electricidade e se os carros eléctricos serão em breve a opção mais económica, ainda não há competitividade para estas utilizações que requerem o fabrico de um combustível ou de um produto químico – neste caso, o rendimento dos combustíveis fósseis é superior.
Trata-se de outra coisa que implica uma certa sobriedade voluntária e cívica, quase militante. Estamos numa corrida para eliminar os combustíveis fósseis, e qualquer uso pouco eficiente de energia, fóssil ou renovável, atrasa a transição e conduz inevitavelmente a mais alterações climáticas. Nesta transição, as energias renováveis permanecem muito raras e os fósseis muito abundantes.
A sobriedade do consumo não significa desaceleração económica. Em unanimidade, opositores e defensores do crescimento estabelecem um elo férreo entre o consumo de energia e a actividade económica. Não seria possível uma ‘dissociação’ entre crescimento económico e danos ao meio ambiente, e em particular às emissões de gases de efeito estufa; seria apenas uma «ilusão técnica». Por exemplo, se o tráfego aéreo duplicasse entre 2018 e 2037, conforme previsto pela Associação Internacional de Transporte Aéreo antes da pandemia, seria extremamente difícil trazer suas emissões para perto de zero ou mesmo «compensá-las», política seguida oficialmente por Organização Internacional de Aviação Civil.
A transição para um mundo de emissões zero ainda suscita muitas questões importantes. Por exemplo, qual pode ser o papel do gás natural? Foi apresentada há pouco tempo como a energia de transição por excelência pelo facto de as emissões de CO2 associadas serem inferiores às do petróleo e sobretudo do carvão. Percebemos agora que o seu declínio deve começar num espaço de poucos anos.
Talvez as questões mais importantes não sejam técnicas, mas políticas. Como realizar uma transição justa – ou seja, como gerir as inevitáveis quebras de actividade e a destruição de bens e postos de trabalho? Poderá um mineiro chileno tornar-se um instalador de módulos fotovoltaicos, e não necessariamente na mesma região ou no mesmo país? Num mundo de veículos pesados eléctricos, de que servirão as capacidades dos mecânicos de hoje? Que impacto terá a depreciação dos activos fósseis em certas categorias de accionistas ou nos cidadãos que dependem de planos de reforma?
O impacto ambiental das energias renováveis não deve ser sobrestimado. Acima de tudo, ainda mais do que a própria produção de renováveis, os seus usos irão tornar-se cruciais na nossa relação com o meio ambiente. Talvez possamos resolver o problema da energia e deixar de poder contribuir para a mudança climática por meio da energia. No entanto, não nos vamos livrar de todos os problemas ambientais, desde a poluição generalizada dos ambientes naturais à terrível extinção da biodiversidade. Nesta altura os hábitos de sobriedade no consumo serão essenciais.
Foto: ©Nuno Marques/Unsplash.com
Referências
– Agência Internacional de Energia (IEA), 2011, «Solar Energy Perspectives», IEA Publishing, Paris.
– Agência Internacional de Energia (IEA), 2019, «Offshore Wind Outlook 2019», IEA Publishing, Paris.
– Agência Internacional de Energia (IEA), 2020, «World Energy Outlook», IEA Publishing, Paris.
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