As técnicas de controlo da produtividade dos trabalhadores são quase tão velhas quanto o próprio trabalho. Mas, à medida que a sofisticação tecnológica permite vigiar e registar, ao segundo, as actividades dos colaboradores, é cada vez mais difícil perceber qual a linha que separa o controlo da mera intrusão ou invasão da privacidade dos visados. Os sistemas de monitorização de performance não doem como um chicote, mas podem provocar feridas
POR HELENA OLIVEIRA

De acordo com o The Independent, a gigantesca rede de supermercados Tesco está a obrigar os seus empregados a utilizarem uma pulseira electrónica que permite aos gestores avaliar o quão arduamente estes estão a trabalhar. Um antigo trabalhador da Tesco acrescentou ainda que estão a ser dadas notas aos empregados com base em quão eficazmente estes trabalham, numa espécie de concurso entre colegas para estimular a produtividade e que estes podem ser chamados ao seu superior hierárquico caso façam pausas não agendadas para irem à casa de banho.

As pulseiras electrónicas estão a ser usadas pelos funcionários dos armazéns e por aqueles que conduzem as empilhadoras, sendo que a empresa já declarou que estas estão a ser utilizadas apenas para aumentar a eficiência dos trabalhadores que, desta forma, não têm de perder tempo com papel e caneta para registar as mercadorias que saem para serem posteriormente distribuídas.

Os responsáveis pela gestão dos armazéns especificaram igualmente um período de tempo “desejável” para a realização de determinadas tarefas, sendo que caso os trabalhadores cumpram o objectivo, é-lhes dado 100 pontos, os quais podem duplicar caso estes consigam realizar o trabalho mais depressa. De acordo com o ex-funcionário ouvido, não só este sistema está a colocar uma enorme pressão em cima dos trabalhadores, como o primeiro país a estrear este novo sistema de controlo foi a Irlanda, onde a grande maioria dos seus trabalhadores é proveniente de países do leste da Europa, com limitações enormes em falar inglês. Todavia, a Tesco já confirmou que os mesmos dispositivos estão a ser utilizados também no Reino Unido.

A notícia acima reproduzida não é, de todo, uma grande surpresa. Cada vez mais, os avanços na tecnologia e a ausência de qualquer tipo de privacidade andam de mãos dadas numa sociedade crescentemente vigilante. E também de forma crescente vamo-nos habituando a ser vigiados (e, em alguns casos a vigiar), como se o Big Brother ficcional de Orwell se tivesse instalado pacatamente no prédio em frente, nos nossos locais de trabalho, nas ruas, nas conversas que temos via telemóvel ou nos pequenos disparates que vamos publicando ingenuamente nas redes sociais.

Mas, no meio desta vigilância ubíqua e, muitas vezes, imperceptível, os locais de trabalho representam terreno fértil para o proliferar de tecnologias que monitorizam todos os movimentos dos trabalhadores e que, cada vez mais, esbatem a já ténue linha que separa segurança ou controlo de invasão da privacidade e, consequentemente, das liberdades civis.

O livro SuperVision: An Introduction to The Surveillance Society, escrito por dois académicos e especialistas nestas questões, John Gilliom e Torin Monahan, traça um retrato aprofundado sobre a forma como as tecnologias da actualidade são utilizadas para vigiar cada um dos nossos passos, quem a utiliza e de que forma afecta o nosso mundo. Apesar de ser uma obra extensa que toca em quase todas as formas de vigilância electrónica, desde os telemóveis, à vida online, sem esquecer os inúmeros cartões digitais que todos utilizamos, às câmaras existentes um pouco por toda a parte, o VER elegeu as tecnologias que vigiam os passos de muitos trabalhadores nos seus locais de trabalho, muitas vezes sem conhecimento por parte dos mesmos, traçando igualmente a sua evolução através da história.

Apesar de no termos habituado a fazer equivaler esta nova sociedade da vigilância à tecnologia avançada da modernidade, a tentativa de controlar, através de inúmeros sistemas de vigilância, os trabalhadores, tem uma longa história, que começa – se nos esquecermos do chicote e de outras “técnicas” ainda mais antigas – sensivelmente nos primeiros anos do século XX. Viajemos um pouco na História.

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De Taylor a Ford ou a ciência de trabalhar mais depressa
Seja em lojas, escritórios, fábricas ou até no campo, as técnicas de monitorização e controlo há muito que se entrelaçam com os processos laborais. Todavia, a monitorização no local de trabalho sofreu uma verdadeira mudança no início do século XX, quando uma nova ideia desabrochou: a utilização de técnicas “científicas” para gerir os trabalhadores nas fábricas para se atingir uma eficiência óptima. Frederick Winslow Taylor, um dos engenheiros no centro desta nova aventura, começou por utilizar um cronómetro para cronometrar os trabalhadores e analisar os seus movimentos com o objectivo de descobrir as formas mais rápidas e eficientes para se realizar tarefas repetitivas. Na altura, a técnica em causa era apelidada de gestão científica, sendo hoje comummente referida como taylorismo. Taylor não esperava apenas aumentar a produtividade ou castigar os empregados mais lentos, mas sim defender uma nova classe de gestão que, a seu ver, traria prosperidade económica e social ao aplicar princípios científicos ao local de trabalho. A gestão científica acabou por ser considerada como “desumanizada”, na medida em que tratava os trabalhadores como partes de uma máquina que poderia ser manipulada ou descartada à vontade dos patrões. Todavia, este tipo de ideias continuou a moldar muitas práticas de gestão ao longo do tempo e num conjunto numeroso e variado de organizações.

E Taylor não foi o único a querer retirar o máximo possível dos trabalhadores. Inspirando-se na indústria de embalamento de carne de Chicago, Henry Ford instituiu igualmente uma nova versão da gestão científica nas suas linhas de montagem de automóveis. Não é à toa que as linhas de montagem de Ford ficaram na história como um ícone da excelência industrial, na medida em permitiram alterações importantes na responsabilização dos trabalhadores, através da especialização de tarefas e sob orientações específicas e restritas no que respeitava à velocidade e qualidade. Mas a vigilância de Ford ultrapassou as paredes das fábricas e chegou às casas dos próprios trabalhadores. Em 1913, Ford criou um denominado Departamento de Sociologia (mais tarde renomeado Departamento Educacional) com o intuito de desenvolver uma missão moral monitorizando os trabalhadores fora dos locais de trabalho para assegurar que estes eram indivíduos sérios e de boa índole moral. Os investigadores do Departamento de Sociologia “visitavam” os trabalhadores em suas casas, recolhendo informação e dando conselhos sobre detalhes privados das suas vidas, como o orçamento familiar, a alimentação, a forma como viviam, se divertiam e se comportavam. Estes, por sua vez, eram colocados em “suspensão” ou mesmo despedidos caso “se recusassem a estudar inglês, rejeitassem os conselhos dados pelo investigador, jogassem a dinheiro ou se bebessem álcool em excesso”.

E o que parece inadmissível depois de anos de luta pelos liberdades civis e pelos direitos dos trabalhadores, acaba por continuar a acontecer, mediante novas roupagens, nos locais de trabalho da actualidade.

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A conversão do trabalho em dados, para mais tarde analisar
Como afirmam os autores do livro citado, o taylorismo continua vivo, de boa saúde e recomenda-se. Os sistemas que utilizamos na trabalho e que “logam” automaticamente quase tudo o que fazemos, acabam por traduzir as nossas mais “geríveis” actividades através de análises e comparações. Ou, por outras palavras, as tecnologias utilizadas no local de trabalho permitem-nos, em simultâneo, desempenhar as nossas tarefas e criar dados para que outros possam avaliar a nossa performance. Como explica o académico Mark Andrejevic, especialista em tecnologias de informação: “os programas de monitorização que registam as batidas do teclado, por exemplo, impedem os trabalhadores de utilizar os computadores para actividades não relacionadas com o trabalho, ao mesmo tempo que oferecem um registo detalhado da produtividade dos mesmos. Os scanners de códigos de barras utilizados nos supermercados servem não só para gravar os preços e para aumentar a rapidez dos trabalhadores das caixas, mas também para enviar dados sobre a performance dos próprios caixas, como aliás acontece com os dispositivos portáteis, ligados em rede e equipados com GPS que monitorizam os trabalhadores das entregas e os motoristas dos camiões.

Actualmente, e segundo dados publicados no livro em causa, cerca de 75% dos trabalhadores americanos são sujeitos a vigilância regular no seu local de trabalho, enquanto aqueles que utilizam a Internet no trabalho têm 33% de possibilidades de estarem a ser expostos a vigilância contínua. E até aqueles que realizam trabalho manual e mal recompensado, como por exemplo os serviços de limpeza nos hotéis ou em grandes empresas, estão sujeitos ao escrutínio electrónico e à monitorização de performance.

Todavia, e de todos os trabalhos no sector de serviços, são os call-centers que levam ao extremo a vigilância no local de trabalho. Começando pela profusão de cubículos onde uma quantidade enorme de pessoas é obrigada a trabalhar sem qualquer tipo de privacidade, a produtividade é medida minuto a minuto. Na maioria dos call-centers, existem “tempos específicos” para a realização de tarefas, medidos ao segundo: 2 minutos e 30 segundos para a duração média de cada chamada, 16 segundos – o máximo de tempo que um cliente pode ser deixado em “hold”, oito segundos, tempo máximo permitido para preencher algum papel entre uma chamada e outra. O telefone tem de estar activo na quase totalidade do tempo, com um espaço que varia entre os cinco e os 20 segundos entre chamadas. Nos call-centers especializados em serviços de telemarketing, sistemas automatizados denominados “discagem preditiva” aumentam ainda mais a pressão, fazendo de imediato uma ligação automática no segundo exacto em que o operador desliga uma chamada, pressionando os trabalhadores a alcançarem recordes de telefonemas que, na maioria das vezes, ascendem aos 54 minutos por hora. Por outro lado, os gestores ouvem as conversas em tempo real para avaliar o tom de voz e a competência técnica dos funcionários, mas a avaliação da performance é igualmente retrospectiva, pois todas as chamadas telefónicas são gravadas e arquivadas e todos os emails e batidas de teclas guardados. Basicamente, tudo o que o trabalhador faz é, de forma instantânea, convertido em dados.

Tudo isto é feito em nome da eficiência e da eficácia, tal como Taylor propôs, no início do século passado, sendo a experiência completamente exaustiva para os trabalhadores. Não admira que existam muitos call-centers cuja taxa de rotatividade anual ronde os 100%.

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Monitorizar a performance é uma expressão de poder
A monitorização de performance pode ser encontrada em virtualmente qualquer local na actualidade, mas o que significa na verdade para as pessoas envolvidas? Da perspectiva da gestão, é apenas um mecanismo para alcançar a eficiência, a responsabilização e a qualidade, ao mesmo tempo que implica a capacidade para tomar decisões, especialmente disciplinares, com base nos resultados recolhidos. Vejamos a definição dada pelo Institute for Management Excellence: “É um facto da vida que a monitorização da performance, da disciplina e o lidar com outras questões relacionadas com os trabalhadores faz parte das funções de um gestor. Ou, adicionalmente, define aquilo que um gestor é: alguém que tem a autorização para contratar, disciplinar e despedir”.

A perspectiva dos não gestores é, obviamente, distinta desta: a monitorização da performance significa que os trabalhadores estão sujeito a vários níveis de vigilância e têm de lutar para provar o seu valor. É uma forma imaginativa de dizer aos trabalhadores que têm de trabalhar arduamente e competir por recursos escassos para terem uma possibilidade de terem segurança no trabalho, aumentos ou promoções. Implica, por outro lado, uma enorme insegurança para quem trabalha e uma ausência de confiança da parte dos gestores. No seu pior, este tipo de monitorização pode criar um ambiente de hostilidade, no seu melhor, pode contribuir para um feedback estruturado e para um aumento da produtividade. Mas, seja de que forma for, e como qualquer outra forma de vigilância, é sempre uma expressão de poder.

Os sistemas de avaliação de performance moldam o comportamento e a acção humanos. Como afirmam os autores, e com uma “lente” crítica, é possível “ler” as tecnologias para aferir os valores que elas possuem e que tipos de relacionamentos produzem: competição ou cooperação? Suspeição ou confiança? Hierarquia ou igualdade? No seu nível mais básico, os regimes de monitorização de performance são anti-éticos no que respeita ao valor da autonomia humana – ou seja, a premissa subjacente a este tipo de vigilância é a de que os humanos não são capazes de se auto-regularem e de trabalharem de forma produtiva sem uma supervisão rígida e burocrática. Desta forma, a monitorização de performance normaliza as reacções hierárquicas entre gestores e trabalhadores. Ou seja, torna normal pensarmos que a gestão deve monitorizar e avaliar constantemente os seus empregados ou que os gestores devem ter o poder sobre os demais no local de trabalho.

Por outro lado, a monitorização da performance alimenta também a ilusão de que os critérios utilizados para avaliar os trabalhadores são objectivos e imparciais, mesmo que existam outras normas para se avaliar o trabalho, como a quantidade, a qualidade, a criatividade, a eficácia, a satisfação do cliente, o trabalho em equipa, a segurança ou a felicidade dos colaboradores. Um dos efeitos perniciosos da massificação da monitorização de performance é aquele que permite que critérios de competição, velocidade e eficiência tenham um peso superior relativamente a outros, tão bons ou até melhores, como a cooperação, a confiança, a participação com sentido ou a simples atenção ou preocupação para com os outros. Esta subordinação de critérios alternativos acaba por trazer mais pontos negativos do que positivos para a maioria das funções, na medida em que diminui significativamente a satisfação e o investimento dos próprios trabalhadores. Especialmente em profissões que, por natureza, implicam ajudar os outros, como a de professor ou a de enfermeiro [sujeitas a níveis significativos de monitorização da performance, pele menos nos Estados Unidos], este e outros tipos de vigilância tayloristica podem ter efeitos verdadeiramente preocupantes.

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Os detectives da Net
Actualmente, as possibilidades de um potencial empregador fazer uma pesquisa sobre o passado dos candidatos a um emprego são significativamente elevadas. Podem ligar a pedir referências, requerer relatórios de crédito ou até pedirem a verificação de registos criminais [nos Estados Unidos]. Irão provavelmente ao google para os pesquisar. De acordo com o livro em causa, 75% das empresas norte-americanas conduzem, actualmente, pesquisas formais sobre a actividade online dos candidatos, sendo que 70% destas admitem rejeitá-los com base na informação descoberta.

Adicionalmente, muitas empresas já descobriram o filão da oferta de serviços de pesquisa para empregadores. A Social Intelligence é uma das mais bem posicionadas no mercado e afirma levar a cabo pesquisas na web “aprofundadas” sobre indivíduos, mergulhando e escavando nas redes sociais, em blogs, no Tumblr,na Craiglist, em grupos do Yahoo! e por toda a Internet fora. Nos Estados Unidos, têm até a bênção da Federal Trade Comission para arquivar todos os posts durante sete anos. Ou seja, se um candidato pretender limpar a sua página no Facebook, por exemplo, alguns meses antes de ser candidato a um emprego, não vale absolutamente de nada.

Algumas das informações mais procuradas incluem fotos ou vídeos sexualmente explícitos, declarações racistas ou evidências de actividades ilegais. Até aqui, tudo normal. Todavia, existe igualmente uma área cinzenta de indicadores subjectivos que pode ser determinante para afastar os candidatos: sejam comentários inapropriados, a expressão de visões políticas marginais ou ter-se um estilo de vida que não se coadune com os denominados padrões normais. O CEO da Social Intelligence dá exemplos, no livro, de alguns destes casos, como por exemplo o facto de um candidato ter-se deixado fotografar ao lado de plantas de marijuana numa estufa. Apesar de a foto não comprovar qualquer tipo de actividade ilícita, pode ser suficiente para afastar um candidato. Ou o caso de uma pessoa que pertencia a um grupo no Facebook que defendia o uso exclusivo da língua inglesa nos Estados Unidos. Apesar de podermos não concordar com a ideia, também não é evidente que essa mesma pessoa trataria de forma diferente as pessoas que não cumprissem com o requisito em causa. Na verdade, pertencer a um “grupo” não constitui prova de que uma pessoa subscreve as posições do mesmo. A discriminação contra potenciais candidatos pode tomar várias formas e algumas delas são completamente legais. Nos Estados Unidos, os empregadores não devem fazer perguntas (ou pesquisar) relativamente à raça, idade, religião, estado civil ou deficiências, apesar de a lei federal de emprego não proibir a pergunta sobre a orientação sexual dos candidatos.

Finalmente, e como alerta o livro, os candidatos não deverão supor que os seus empregadores deixem de ter atenção à sua actividade online, mesmo depois da contratação. A Social Intelligence oferece, por exemplo, a monitorização contínua de todos os posts dos empregados, fotos, vídeos e grupos e “oferece” ao empregador “notificações e alertas em tempo quase real”. Ou seja, se alguém for fotografado num fim-de-semana numa situação menos própria e se a foto for publicada por um amigo, o empregado em causa pode ser despedido na segunda-feira seguinte.

Em suma, o local de trabalho típico é definido pela luta de se gerir números consideráveis de pessoas. Em cada ambiente, um grupo tenta exercer poder relativamente a outros. E, em cada um destes ambientes, o novo arsenal que a sociedade da vigilância tem ao dispor está a redefinir o quotidiano das pessoas, sendo que Frederick Winlow Taylor deveria ter o maior gosto em viver no século XXI.

Mas, a verdade é que muitas destas políticas de vigilância são desnecessárias e absolutamente intrusivas. O que confere com o objectivo geral do livro em causa: a vigilância nem sempre faz sentido do ponto de vista técnico, racional ou da perspectiva de poder solucionar problemas. Por vezes, parece estar apenas ligada a questões de poder ou ser inspirada por outros motivos que, caso fossem escrutinados, não mereceriam sequer a sua discussão pública.

Editora Executiva