Parece constituir ponto de concordância entre diversas instituições, economistas e outros observadores: no actual contexto de crise, a extensão das moratórias de crédito pouco ou nada mais poderia fazer do que protelar milhares de dívidas que, naturalmente, se iriam avultar. Todavia, o período “pós-moratórias” afigura-se para muitos como um mergulho no escuro. Além de serem insatisfatórias, as medidas anunciadas pelo Estado deixam também muitas empresas e famílias dependentes da sua (má) sorte. Porque nem sempre temos a noção do que é estar na pele de quem continua a viver uma situação financeira espantosamente frágil, o VER pediu a um trabalhador independente e a uma micro empresária que partilhassem a sua curta história em tempo de “ajuda estatal” e o que antevêem para um futuro incerto, sem quaisquer garantias ou apoios
POR HELENA OLIVEIRA

O termo das moratórias a 30 de Setembro último, em simultâneo com o fim de outras medidas extraordinárias, poderá vir a mostrar riscos elevados. Apesar de terem temporariamente cumprido a função, e de, em muitos casos, terem aliviado os efeitos mais dramáticos da crise provocada pela pandemia – insolvência das empresas e desemprego –, surgem várias opiniões. São muitos os alertas sobre a possibilidade de, após o balão de oxigénio que manteve empresas e famílias a respirar, aparecer uma bomba-relógio que poderá não demorar muito a rebentar, dada a fragilidade económica e os volumes elevados de endividamento.

Assim, e mesmo com uma retoma parcial da economia, empresas e famílias continuarão a acumular dívidas, o que poderá comprometer seriamente a sua já debilitada saúde financeira. De acordo com dados divulgados pelo Banco de Portugal em finais de Agosto, foram cerca de 24 mil empresas que recorreram a este remédio com data de validade anunciado, com o valor das moratórias a rondarem os 22 mil milhões de euros, em conjunto com cerca de 228 mil contratos de crédito à habitação igualmente abrangidos, num total de 13 mil milhões de euros.

Para as empresas dos sectores tidos como mais vulneráveis, como a restauração, a hotelaria e o comércio, e sobre os quais o impacto da pandemia foi mais penoso do que em relação a outros segmentos da economia, o Governo  lançou uma linha de 1.000 milhões de euros para a emissão de garantias públicas para os créditos em moratória que forem reestruturados, medida que tem vindo a levantar sérias dúvidas tanto para a banca como para as próprias empresas, que a consideram “insuficiente” por deixar de fora muitas entidades e por assentar num modelo que, muito previsivelmente, irá prejudicar clientes e as próprias instituições financeiras num futuro próximo.

Em relação às famílias, o Executivo reforçou o quadro legal de prevenção do incumprimento, pedindo aos bancos para identificarem os clientes particulares com maiores dificuldades e a proposta atempada de soluções. No decreto-lei do Governo, publicado em Agosto, sustenta-se que os bancos devem ser diligentes na sinalização de clientes em dificuldades e que apresentem melhorias das condições contratuais nos créditos que beneficiaram das moratórias públicas, facilitando o seu pagamento. Contudo, é imperativo recordar que não estão obrigados a fazê-lo.

A lei citada assegura ainda que, em caso de dificuldades financeiras, “as famílias com crédito à habitação ficam protegidas por um período mínimo de 90 dias, não podendo os bancos avançar com acções em tribunal, resolver esses contratos ou vender esses créditos a empresas terceiras”. Assim, e como refere o Observatório sobre Crises e Alternativas, pretende-se evitar o incumprimento dos empréstimos à habitação referentes à residência permanente do agregado familiar, privilegiando-se, também neste caso, a renegociação da dívida, mas sendo certo que o adiamento do pagamento da dívida não é mais do que um paliativo para um problema estruturalmente mais profundo.

A falta de medidas concretas e mais abrangentes de apoio às famílias tem vindo a ser alvo de muitas críticas, em particular porque podem estar longe de ser suficientes para as que maiores dificuldades financeiras estão a sofrer, nomeadamente para as que se encontram em situação de desemprego de um ou mais elementos ou com quebra de rendimentos. Tudo isto sucede num cenário de imprevisibilidade económica, apesar do optimismo manifestado na passada quarta-feira na Eslovénia pelo primeiro-ministro face à boa situação económica do país. Deveremos igualmente recordar o alerta da OCDE para o facto de Portugal vir a ser, muito provavelmente, um dos países que mais tempo levará a recuperar da crise pandémica.

Tendo em conta a asfixia sentida por muitos particulares e empresas, o relativo alívio que sentiram ao longo do período abrangido pelas moratórias, o seu termo e as aparentemente escassas medidas anunciadas pelo Executivo de António Costa para evitar um “tsunami” económico e social, o VER pediu a C.T., trabalhador independente de 50 anos, e a B.R., micro empresária de 40 anos, que partilhassem os seus principais desassossegos face a um futuro que se apresenta extraordinariamente incerto. É que, se há um sol pós-pandémico a nascer, não brilhará para todos do mesmo modo.

C.T.

“A suspensão temporária de uma prestação que me vincula há mais de vinte anos manteve-me a possibilidade de gestão de um orçamento doméstico que inclui as despesas devidas a uma criança em guarda partilhada. As contas não desaparecem, ao contrário dos meus ganhos de trabalhador independente e única fonte de rendimento do meu agregado familiar. O meu ramo de actividade foi afectado pela pandemia e os colegas foram obrigados a aceitar trabalhos mais mal pagos num círculo de oferta e procura que se tornou ainda mais predatório. Saliento que as críticas a quem aceita trabalhar mais por menos me parecem inadmissíveis: ninguém sabe o que se passa na casa de outrem; aliás, um cidadão nada tem a ver com o que outro cidadão faz para viver dentro da legalidade e dos princípios morais e a pandemia pôs efectivamente muita gente numa dura realidade financeira.

2021 foi nefando para as minhas contas. Os meus principais fornecedores entraram em marasmo produtivo e as únicas férias possíveis foram passadas em casa de familiares. Os cupões de desconto passaram a fazer volume na carteira e qualquer extra passou a ser realmente um EXTRA. Valeu-me uma poupança nascida há uns anos com a venda de uma casa dos meus pais, pois doutro modo não sei como teria ultrapassado estes meses.

As moratórias sobre os créditos à habitação foram tão cruciais como os ventiladores celebrizados em 2020, mas terminaram, e como sabemos, a 30 de Setembro. Desdobrei-me em contactos com a minha agência bancária. O gerente, solícito, procurou saber se os meus ganhos em 2021 haviam sido efectivamente as poucas centenas de euros constantes da minha página das finanças. Confessei-lhe que aceitei ainda três trabalhos de revisão não declarados, mas de pouca monta. Tive direito a prestações da Segurança Social durante quatro meses que não totalizaram dois mil euros. O gerente expôs a situação superiormente e sei que foi insistente nos pedidos em relação ao meu caso, tendo inclusivamente enviado emails com cópia para mim aos órgãos de gestão da instituição. Debalde.

Leio que a situação para os particulares não vai admitir excepções. Garantem-me que não haverá penhoras à maluca, pois não interessa aos bancos ficar com um património imobiliário envelhecido e estagnado. Haverá negociações e cálculos sobre valores em dívida. Sei que os próximos capítulos da minha vida vão ser difíceis. Em último caso, terei de voltar a viver com os meus pais aos cinquenta anos após ser independente há quase trinta. O bom filho a casa torna é um dito comum, não devendo ser entendido de modo literal. Uma casa de habitação é um lar; é isto que tem de ser entendido de modo literal”.

B.R.

“A Encosta nasceu do sonho comum entre duas amigas, com o caminho cruzado e tornado inseparável há mais de 10 anos. Formadas em Nutrição e Cozinha, mas com experiência profissional em diferentes áreas, desde o trabalho administrativo à televisão e publicidade, ambas percebemos, desde que nos conhecemos, que queríamos criar algo em conjunto. Algo que nos permitisse, ao mesmo tempo, desenvolver as nossas competências e termos “tempo para ser mães”.

Começámos por criar alguns negócios na área da alimentação para bebés e elaborámos alguns caterings para eventos, mas quando encontrámos a janela da nossa Encosta, ficámos apaixonadas e lançámos mãos à obra (literalmente). Demorámos quase dois anos a construir de raiz a nossa primeira cafetaria. Durante os primeiros meses, muitos foram os que nos questionaram acerca do nosso conceito. Mas continuámos sem desistir.

Com um menu criativo e fora do comum, o que realmente desejámos foi que todos se sentissem em casa, inclusivamente a nossa família e todas as outras que têm vindo a ser acolhidas por nós. Pensámos por isso num espaço dedicado a todos: um canto dedicado aos mais novos junto à janela, onde podem brincar, desenhar ou ler o “livro da semana”; um fraldário para os bebés; uma mesa familiar; uma esplanada ampla; um canto para os amigos de 4 patas; boa música e wi-fi gratuito.

Depois veio a pandemia, que, pela primeira vez, nos obrigou a questionar a nossa persistência. Mas, e mais um vez, desistir não podia ser a solução.

Durante a fase crítica da crise pandémica, a moratória funcionou como um fôlego perante toda a conjuntura financeira da empresa. Entre pagamentos a fornecedores e salários, muitas foram as novas despesas durante este período. Os restaurantes foram obrigados a fechar portas, mas com a falta de apoios do Estado (ou a dificuldade de aceder a muitos deles devido a doses bizarras de burocracia), em muitos dos casos, e nos quais nos incluímos, tivemos de continuar a trabalhar sob a forma de takeaway ou delivery. As despesas mantiveram-se, mas foram raras as vezes em que as receitas as conseguiram acompanhar. As moratórias foram, contudo, e para quem pôde usufruir delas, uma forma de garantir uma pausa numa parte das despesas fixas.

Assim, e de acordo com a nossa perspectiva, o fim das moratórias foi precoce. Estamos numa fase de recuperação e fazemos contas aos prejuízos. Não sabemos como será o futuro próximo.

O Governo avança com formas de negociar a prestação com as entidades bancárias, mas o acesso a estas medidas afigura-se extremamente pesado e crescentemente burocrático, e, muitas vezes, com “ratoeiras” que nos encaminham para prejuízos maiores daqui a um ano.

Sentimos que se avizinham dias incertos, com muito pouca ajuda (à excepção de linhas de crédito) por parte do Estado.

Editora Executiva