A forma como a Covid-19 alterou radicalmente a nossa existência obrigou-nos a reavaliar o que realmente importa. Este repensar de prioridades está a ter influência no valor que conferimos ao trabalho que fazemos, com cada vez mais pessoas a desejarem que o mesmo se assuma como uma fonte significativa de propósito nas suas vidas. Por seu turno, as empresas, e enredadas que estão numa teia complexa de novos desafios, têm mais em que pensar e podem estar a passar ao lado desta procura de sentido por parte dos seus trabalhadores. Ou seja, a noção do propósito individual sofreu alterações e isso poderá ter implicações no propósito organizacional, tema a que os líderes devem estar atentos sob pena de verem os seus talentos optar por organizações que lhes ofereçam aquilo que realmente precisam e desejam nestes tempos tão atípicos
POR HELENA OLIVEIRA
Se existem duas palavras que podem caracterizar a forma como muitas empresas têm lidado com a crise pandémica ao longo do último ano elas são, sem dúvida, sobrevivência e reinvenção. E nestes tempos perturbadores e surreais é mais do que compreensível – e acertado – que os líderes se concentrem nas prioridades empresariais mais urgentes em detrimento de considerações mais pessoais ou intangíveis que dizem respeito aos seus trabalhadores.
Todavia e por outro lado, os longos dias de isolamento a que todos temos estado sujeitos, vividos no meio da incerteza, do medo, do excesso de trabalho, do esbatimento de fronteiras entre o domínio pessoal e profissional e de uma forçosa adaptação a uma nova e estranha forma de vida acabaram também por ter um efeito transversal a muitos de nós: a forma como a Covid-19 alterou radicalmente a nossa existência obrigou-nos a repensar o que é realmente importante e essencial e o que não é. Ou seja, a noção do nosso propósito individual sofreu alterações e isso poderá ter implicações no propósito organizacional, tema a que os líderes devem estar atentos.
Mas uma outra questão impõe-se: quão importante é, para as empresas, “perderem tempo” com o que pensam os seus colaboradores relativamente ao seu “propósito na vida” numa altura em que estas estão preocupadas com o seu bem-estar, já para não falar na própria sobrevivência do negócio?
Na verdade, é mais importante do que se possa pensar. Em tempos de crise, o propósito individual pode traduzir-se numa bússola orientadora que ajuda as pessoas a enfrentar as incertezas e a mitigar os efeitos prejudiciais do stress a longo prazo. E é ponto assente que as pessoas que têm um forte sentido de propósito tendem a ser mais resistentes e mais propensas a uma melhor recuperação de eventos negativos.
Numa investigação realizada pela McKinsey em Junho de 2020, e ao comparar pessoas que dizem estar “a viver o seu propósito” no trabalho com aquelas que dizem não estar, concluiu-se que as primeiras relatam níveis de bem-estar que são cinco vezes superiores aos expressos pelas segundas. E, além disso, os respondentes do primeiro grupo demonstraram ter quatro vezes mais de probabilidades de relatar níveis de envolvimento mais elevados com a organização.
Como também já é sabido, o propósito individual também beneficia as organizações, assumindo-se como um contributo importante para a experiência dos trabalhadores, o qual, por sua vez, está ligado a níveis mais elevados de envolvimento, a um compromisso organizacional mais forte e a uma maior sensação de bem-estar. As pessoas que consideram o seu propósito individual alinhado com o trabalho que executam tendem a obter mais significado das suas funções, tornando-se mais produtivas e com maior probabilidade de superarem os seus pares.
Mas e de regresso aos tempos pandémicos, se é verdade que muitas empresas demonstraram ter uma maior consciência das prioridades das “suas” pessoas, tais como o seu bem-estar à luz da Covid-19, o imperativo de “dar” aos seus colaboradores o que estes realmente querem tornou-se mais urgente. A conclusão resulta de um estudo recente realizado pela McKinsey, exactamente sobre a importância do propósito individual, o qual concluiu que quase dois terços de mais de mil trabalhadores inquiridos [nos EUA] afirmaram que a COVID-19 os levou a reflectir sobre o seu propósito na vida e com cerca de metade a declarar que estão a reconsiderar o tipo de trabalho que fazem devido à pandemia. Por seu turno, os millennials – e comparativamente às demais gerações – foram três vezes mais “assertivos” no que respeita a esta necessidade de reavaliar o seu trabalho em tempo de pandemia.
Escusado será dizer que estes resultados, e mesmo que geograficamente “limitados”, têm implicações para a estratégia de gestão de talento da empresa e para os seus resultados. Como já anteriormente referido, as pessoas que vivem o seu propósito no trabalho são mais produtivas do que as pessoas que não o fazem. São também mais saudáveis, mais resilientes e com maior probabilidade de permanecerem na empresa. Além disso, quando os empregados sentem que o seu propósito está alinhado com o propósito da organização, os benefícios expandem-se para incluir um maior envolvimento, maior lealdade, e uma maior vontade de recomendar a organização a outros.
No entanto, e como alerta a McKinsey, a maioria dos executivos seniores não está a dar a atenção devida ao propósito dos seus colaboradores neste momento particularmente crítico e confuso e na medida em que o tema é intensamente pessoal, potencialmente inacessível aos empregadores e, aparentemente, tão desconfortável de discutir quanto é de encorajar activamente.
Apesar de todos estes desafios, a pesquisa da McKinsey apurou que 70% dos trabalhadores inquiridos afirmaram que o seu sentido de propósito é definido pelo trabalho que fazem. Portanto, quer se queira quer não, os líderes empresariais desempenham um papel crucial em ajudar as suas pessoas a encontrar o seu propósito e a vivê-lo em consonância com o trabalho que fazem e do qual procuram retirar o maior significado possível. Mas qual é a melhor forma de o fazer?
É necessário preencher a lacuna na hierarquia do propósito
Para melhor compreender os desafios associados ao propósito individual e aos “resultados” da vida e do trabalho a ele associados, a McKinsey entrevistou mais de mil funcionários dos EUA, enquanto parte de um esforço contínuo que a consultora tem vindo a fazer para explorar esta temática, cada vez mais no centro da denominada “gestão humanizada”. Mas e antes de se ir mais além, é conveniente considerar o contexto mediante o qual o propósito individual funciona no trabalho, bem como os desafios únicos que representa para os empregadores. O propósito individual pode ser definido como um sentimento duradouro e abrangente do que realmente importa na vida de uma pessoa, sendo que é experimentado e vivido quando existe um esforço deliberado para alcançar algo a que conferimos um significado maior ou que valorizamos particularmente.
Mas embora seja verdade que as empresas e os seus líderes possam ter uma grande influência sobre o propósito individual dos seus empregados, o controlo directo que têm sobre o mesmo é limitado. Desta forma, há que existir um ponto de intersecção entre líderes e trabalhadores para que seja possível optimizar o seu sentido de realização através do trabalho. E a primeira tarefa de um líder terá de ser a de aprender o que confere este mesmo propósito aos que dele dependem e, de seguida, perceber se o mesmo está a ser eficazmente obtido/preenchido.
Por outro lado, e em particular devido aos efeitos variados da crise pandémica, as pessoas procuram, cada vez mais, uma espécie de “realização psicológica” no trabalho. E, com tantas alterações e readaptações necessárias, é natural que aumentem os atritos e as dissonâncias relativamente às questões que circundam o seu propósito individual. Não esquecer igualmente a importância do propósito para o próprio líder. Quanto mais orientado, aberto e empático este for, mais provável é que consiga incutir a confiança necessária para encorajar as pessoas a explorar de que forma o seu propósito pode ser melhor alcançado no trabalho.
A investigação académica diz-nos que o sentido do propósito de um indivíduo não é fixo ou estático – ou seja, pode ser clarificado, reforçado e, para alguns, pode servir como uma aspiração para toda a vida, como se de uma Estrela do Norte se tratasse. E, embora aquilo que as pessoas considerem como significativo tenda a evoluir ao longo de longos períodos de tempo, pode mudar relativamente depressa, particularmente em resposta aos tipos de eventos disruptivos que muitas pessoas estão agora a viver como resultado da pandemia. Por outro lado, e como também sabemos, o significado que as pessoas procuram retirar do trabalho que fazem e aquilo que move as suas vidas pessoais pode constituir uma questão complexa. E, ainda mais importante para o caso, é o alinhamento – ou não – do propósito individual com o propósito organizacional.
Particularmente na altura concreta em que vivemos, parte do trabalho do líder enquanto “arquitecto organizacional” é o de assegurar que estas duas formas diferentes de propósito – organizacional e individual – estejam interligadas e se reforcem mutuamente.
Adicionalmente, a pandemia tem funcionado também como um alerta cruel de como é importante nunca se tomar como dado adquirido a saúde ou a motivação dos trabalhadores. E uma vez que o propósito individual afecta directamente tanto a saúde como a motivação, as empresas “viradas para o futuro” deverão concentrar-se neste elemento crucial como parte de um esforço mais amplo para assegurar que seja dada ao talento a primazia que ele merece.
Mas regressando aos resultados do inquérito feito pela McKinsey, estes demonstram que os trabalhadores na actualidade desejam uma dose mais elevada de propósito do que aquela que estão a receber. Na medida em que todos os inquiridos, independentemente do nível da organização a que pertencem, admitem precisar de um propósito nas suas vidas, 70% dos inquiridos afirmaram que esta procura de significado é, em grande parte, definida pelo trabalho.
No entanto, quando questionados se estão a viver este propósito no actual contexto laboral, o fosso entre os executivos de topo e os demais níveis da organização aumenta. Enquanto 85% dos executivos e gestores de topo afirmaram sentir o seu propósito no trabalho que executam, apenas 15% dos demais gestores e funcionários da linha da frente declararam sentir o mesmo.
Esta “lacuna na hierarquia do propósito” estende-se ao sentimento de realização no trabalho. Os executivos demonstraram oito vezes mais probabilidades do que os demais trabalhadores para afirmar que o seu propósito é preenchido pelo trabalho. Da mesma forma, os executivos têm quase três vezes mais probabilidades de declarar que confiam no trabalho para obter significado nas suas vidas.
Por último, a consultora procurou quantificar a dimensão deste desafio para as empresas, comparando as respostas dos inquiridos, independentemente das funções ou cargos ocupados, com perguntas sobre os seus estados desejados e reais. Os resultados revelaram que apenas 18% dos inquiridos acreditavam que obtinham tanto propósito do trabalho quanto desejavam e 62% afirmaram que embora obtenham algum propósito do trabalho, querem obter ainda mais.
Como alerta a McKinsey, se é possível considerar que “obter algum propósito, mesmo querendo ter mais” é um bom resultado, na verdade não é. Os inquiridos que demonstraram menores níveis de satisfação com o propósito que atingem com o trabalho são os mesmos que reportaram menor contentamento com a sua vida no geral e menor envolvimento com o trabalho no particular face aos seus pares e, como já anteriormente explicitado, os resultados negativos no trabalho e na vida dos empregados traduzem-se inevitavelmente em resultados negativos para a empresa.
Assim, como podem os líderes contrariar estes sentimentos, cada vez mais comuns em tempo de pandemia?
Como não descurar a importância do propósito em tempo de pandemia
Na medida em que não existem quaisquer certezas face ao futuro próximo, os líderes empresariais não se podem dar ao luxo de deixar para amanhã a realização de acções concretas para renovar o propósito que os seus trabalhadores desejam sentir no trabalho que desempenham. Mesmo que seja natural a existência de estados de maior tristeza ou depressão entre os colaboradores devido a todas as vicissitudes impostas pela pandemia, o tema merece uma atenção especial e o mais rapidamente possível. Seguem-se algumas sugestões para não deixar esmorecer, ainda mais, o sentimento de propósito individual, tão importante para o propósito organizacional e para os resultados de toda a empresa.
- Tomar medidas, com ponderação
Pode parecer um contra-senso olhar-se primeiro para o propósito da organização na esperança de se poder apoiar o propósito de vida dos seus empregados. Mas e como já anteriormente referido, esta é a única parte que é passível de ser controlada. Assim, e enquanto líder, deverá questionar, em primeiro lugar, se a sua empresa considera de forma significativa o seu papel na sociedade e se os executivos de topo utilizam o propósito da empresa como uma bússola orientadora para tomar decisões difíceis e fazer cedências quando necessário. Lembre-se também que se o propósito da sua empresa é apenas um “cartaz na parede”, está a desperdiçar o tempo de todos. Se falar de propósito mas não agir em consonância com o mesmo, os resultados podem ser devastadoramente maus.
Algo que poderá a fazer o mais rapidamente possível é reunir a sua equipa e reflectirem em conjunto sobre o impacto que a empresa tem na comunidade que a circunda. Mas a conversa tem de ser “sentida”: meras mensagens de correio electrónico enviadas para a equipa sobre supostos esforços de responsabilidade social empresarial que parecem desligados da experiência quotidiana da empresa apenas inspirarão cinismo e desconfiança. E é preciso não esquecer que falar sobre o propósito organizacional requer um diálogo e não um monólogo. O inquérito da McKinsey demonstrou igualmente que os trabalhadores têm cinco vezes mais probabilidade de se sentirem entusiasmados por trabalhar numa empresa que passa tempo a reflectir sobre o impacto que esta causa em seu redor.
- Fazer da reflexão sobre o propósito um hábito empresarial
Quando os empregados têm a oportunidade de reflectir sobre o seu próprio sentido de propósito, e como este se liga ao propósito da empresa, coisas boas acontecem. Os inquiridos que têm tais oportunidades demonstram ter três vezes mais probabilidades do que os demais de sentir que o seu propósito é cumprido no trabalho. Assim, a sugestão é que transforme esta reflexão numa rotina inserida na própria estratégia empresarial.
Por outro lado, os gestores devem estar preparados para partilhar o seu próprio propósito com os outros, mesmo que sejam obrigados a demonstrar alguma vulnerabilidade de uma forma a que provavelmente não estão habituados, servindo de “modelo” e transmitindo as suas próprias dúvidas e pontos fracos aos demais. No inquérito em causa, os trabalhadores cujos gestores não lhes deram oportunidades de reflectir sobre o seu propósito demonstrarem ter apenas 7% de hipóteses de cumprir o seu propósito no trabalho.
Assim, pergunte igualmente a si próprio: a minha equipa sente-se à vontade para partilhar comigo coisas pessoais? Poucas coisas são mais pessoais do que o propósito da vida, e se a segurança psicológica for reduzida na sua empresa, nunca conseguirá que isso aconteça. No inquérito da McKinsey, os trabalhadores que afirmaram sentir pouca ou nenhuma segurança psicológica na empresa, apenas manifestaram 0,5% de hipóteses de declarar que o seu propósito estava a ser cumprido no trabalho.
- Ajudar as pessoas a viver o seu propósito no trabalho
Recordar que 63% dos trabalhadores inquiridos afirmaram desejar que o seu empregador proporcione mais oportunidades para explorar o propósito no seu trabalho quotidiano é motivo mais do que suficiente para as empresas terem de encontrar formas para que este seja satisfeito.
E o ponto de partida deve assentar em oportunidades que ajudem os empregados a encontrar um significado mais pessoal no seu trabalho quotidiano. Estar atento a indícios de desmotivação, a quebras na produtividade, à inexistência de participação activa nas reuniões de equipa ou a estados de aparente instabilidade psicológica é crucial no momento atípico em que vivemos, para que seja possível ajudá-los a enfrentarem o stress, a ansiedade e até um possível burnout.
Em tempos de crise, os líderes eficazes assumem-se como fontes importantes de confiança, estabilidade, significado e resiliência. Desempenham também um papel vital de “produção de sentido” para aqueles que os rodeiam.Falar, de uma forma simples, sobre as pressões sentidas pelos trabalhadores pode ajudar a elevar o seu sentido de propósito e a encorajar um afastamento do imediatismo da crise para que todos se concentrem no quadro geral e no que é realmente importante.
E quando o propósito de cada um estiver alinhado com o propósito alargado da empresa, esse sentido de realização acabará por beneficiar ambas as partes.
Editora Executiva
Aqui é o Felipe Almeida, gostei muito do seu artigo tem
muito conteúdo de valor parabéns nota 10 gostei muito.
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