A ameaça de que alguns membros da grande família europeia possam vir a ser abandonados e até deserdados, deixou de ser um fantasma para se transformar numa possibilidade declarada na Cimeira de Cannes, no início do mês. Com a crise da zona euro descontrolada, multiplicam-se as reuniões, opiniões e declarações. Quanto aos cidadãos, continuam a ocupar a cadeira reservada aos meros espectadores
POR HELENA OLIVEIRA

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Na passada terça-feira, o presidente do Conselho europeu, Herman Van Rompuy, apelou aos esforços dos estados-membros para responder à crise na denominada “hora da verdade” para a Europa. No mesmo dia, o presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, declarou que iria apresentar, brevemente, propostas para uma “união económica mais profunda”. Um dia antes, a senhora Merkel fazia igualmente saber que “estava na hora de formar uma união política na Europa”.

A questão do tempo ou da falta dele parece, mais do que nunca, estar a pressionar a Velha Europa, como se os últimos grãos de areia da ampulheta estivessem prestes a marcar o fim da sua existência tal como a conhecemos.

Há pouco mais de uma década, esta antiga “senhora” encontrava-se cheia de si própria, com uma confiança plena de que o século XXI tornaria real o sonho europeu. O argumento de uma Europa próspera, que não iria exigir sacrifícios, era extremamente sedutor não só para os seus líderes, mas também para os cidadãos esperançados que, de uma forma ou de outra, ficariam sempre “melhor”. E também fazia recordar os objectivos do arquitecto do projecto europeu, Jean Monnet, quando afirmava, em meados do século passado, que “os países da Europa são demasiado pequenos para assegurar aos seus povos a prosperidade e os avanços sociais indispensáveis”.

Na actualidade, parecem ser os mercados os europeus mais activos e a ideia de que a Europa funciona como um balancete faz esquecer que esta foi construída com base na sua experiência histórica, por razões políticas e como resultado de uma vontade igualmente política. E se a sua integração económica constituiu a principal forma de atingir fins específicos – a paz, a estabilidade e a prosperidade – o método do seu pioneiro, Jean Monnet, tinha como base construir uma Europa do topo para a base, através da construção de instituições coesas, da criação de ligações económicas mais estreitas e a partir de passos incrementais. Hoje, e como escreve Andre Wilkens, alemão e membro fundador do ECFR (European Council on Foreign Relations), essa visão ficou totalmente virada de “pernas para o ar”: “a Europa é determinada através de meios e não objectivos, os mercados ditam o que fazer aos políticos e estes vão ficando para trás”. Tal como a própria Europa e os seus cidadãos.

A centralidade da dívida
O que era impensável há pouco mais de dois anos para economistas e políticos, é agora abertamente discutido: a possibilidade de um colapso na zona euro e a desarticulação da própria União Europeia. Apesar de serem muitas as vozes que se levantam contra tal ignomínia, a verdade é que e a título de exemplo, os deputados do partido de Angela Merkel, que fizeram saber que aprovam a moção que rejeita uma Europa a duas velocidades – sugerida por Sarkozy – também aprovaram, ao mesmo tempo, a medida que permite um país a abandonar a zona euro, sem que, com isso seja excluído da União Europeia.

Adicionalmente e como escrevia o The Economist na passada semana, dois tabus foram quebrados na cimeira que teve lugar em Cannes, no inicio do mês de Novembro.  Pela primeira vez, os líderes da zona euro aceitaram a ideia de que um membro poderia entrar em incumprimento e deixar o euro. E, se na altura quem estava na mesa da tortura era a Grécia, também é sabido que existem outros países na fila dos malcomportados. E, também pela primeira vez, a intrusão deliberada de líderes nas políticas internas de outros países foi “declarada” nesta reunião.

Mas e como alerta a revista inglesa, existe algo que os líderes europeus parecem estar a esquecer. “Os europeus vêem-se como parte de uma família: têm querelas, mas ninguém questiona o direito de um membro fazer parte do clã. Mas, em Cannes, os líderes da zona euro deixaram bem claro que os membros da família podem vir a ser abandonados e, até, deserdados”.

Para muitos analistas e falando de questões de velocidade, a Europa transformou-se num pesado e lento comboio. Nos últimos dez anos, o ritmo de vida acelerou consideravelmente, como resultado da globalização, das novas tecnologias de informação e de uma indústria financeira demasiado criativa. E todas estas transformações tiveram lugar num contexto de alterações e de diminuição de recursos que obrigou a Europa (e o resto do mundo) a uma adaptação, flexibilidade e rapidez no que respeita à tomada de decisões políticas e económicas. Ora, para uma Europa cujos processos de tomada de decisão foram concebidos para serem lentos e ajustados a tempos previsíveis, o seu modelo tem, obrigatoriamente, que ser retocado. A Europa precisa de ser mais rápida e tal só pode ser conseguido através de uma soberania partilhada e não impingida por um duo Merkel-Sarkozy.

Se os líderes ainda não perceberam, a verdade é que os cidadãos começam a questionar-se – apesar de ninguém lhes perguntar nada – sobre o que significa ser europeu e sobre o tão falado, e já estafado, projecto europeu. Apesar das diferenças óbvias entre os diversos países, o trabalho precário e a erosão da protecção social em várias áreas, como a saúde e a educação, começa a ser uma realidade generalizada. E, pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, existe uma geração que poderá vir a enfrentar piores condições de vida comparativamente às dos seus pais. E este é um sinal que não pode, de todo, ser ignorado.

Remendar o velho projecto europeu ou demoli-lo por completo?

Se o problema real com a crise das dívidas soberanas não pára de aumentar, a verdade é que a crise financeira e o espectro da dívida parecem estar igualmente a ser politicamente instrumentalizados e utilizados para legitimar a destruição de direitos sociais e democráticos. E, para muitos, a crise está a ser encarada como uma oportunidade para quebrar resistências colectivas. O que tem vindo a acontecer na Grécia – e em outros países – pode vir a ser o rastilho ideal para os que se insurgem com as desigualdades crescentes que grassam na Europa.

Se a prosperidade se foi e se com a sua fuga chegaram os sacrifícios, também estes estão a ser redistribuídos de forma desigual. Esta distribuição desigual, como refere o cientista social George Friedman num artigo recente, é determinada não só pela necessidade mas também por aqueles que detêm o poder e o controlo sobre as instituições europeias.

E todos os europeus sabem que quem detém o poder é a Alemanha e a França, com uma Inglaterra feliz por estar fora do combate principal. Assim, os fracos são o “resto” da Europa, aqueles que são obrigados a render-se à soberania esmagadora de alemães e franceses e que agora enfrentam os fardos de gerir sacrifícios. E prova disso é também o facto de, para além da crise da dívida soberana não dar sinais de abrandamento, estar, de forma crescente, a extravasar as fronteiras “convencionais”: o grupo dos PIIGS (o acrónimo infeliz que também legitima as diferenças dentro da União Europeia e que integra Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha) tem companhia: depois dos resgates à Grécia, Portugal e Irlanda e do mais recente temor de que a Itália e a Espanha sigam o mesmo tortuoso caminho, o efeito de contágio também voltou, ontem, a perturbar a própria França, a par da Bélgica, da Áustria e da Holanda.

Não existem dúvidas que a Europa precisa de encontrar um novo equilíbrio. Mas o enjoo com as metáforas da “Europa a duas velocidades”, dos “pecadores do sul e dos virtuosos do norte” ou dos comboios e aviões perdidos começam a ser percebidos, pelos cidadãos, como discursos vazios e, em muitos casos, como verdadeiras ofensas. Os países do sul da Europa e, ao que parece, outros estados-membros outrora inatingíveis, têm que resolver as suas crises mas não podem perder a sua “privacidade” económica ou a sua alma política e não podem ser os “grandes” a interferir em assuntos internos dos “pequenos”.

Sim, salvar o euro é uma prioridade e exigirá mais sacrifícios por parte de uns, mas também mais generosidade por parte de outros. E alterar a forma como a Europa tem vindo a funcionar, a estrutura de muitas das suas instituições e a definição do que quer ser no futuro serão, mais cedo ou mais tarde, decisões de fundo que terá de tomar. Só que, desta vez, são os cidadãos que têm de ser ouvidos. Sem o seu apoio, nenhuma reforma será duradoura.

Historicamente, a força da Europa sempre residiu na sua diversidade e não num pacote de nacionalismos. E sempre que um poder centralizador negou esta realidade, impondo a sua própria noção de “união”, o resultado foi catastrófico. Desta vez e até agora, a catástrofe é económica. Assim, “está na hora”, como tão bem afirmou a senhora Merkel, de “formar uma união política na Europa”. Desde que as regras não sejam ditadas por Berlim.

 

Editora Executiva