POR HELENA OLIVEIRA“A mente é uma espécie de último refúgio de liberdade pessoal e de autodeterminação. E enquanto o corpo pode facilmente ser sujeito ao controlo ou domínio por parte de outrem, a nossa mente, em conjunto com os nossos pensamentos, está bem além desse constrangimento. Todavia, e com os avanços na engenharia neural, da imagiologia cerebral e da neurotecnologia, a mente poderá deixar de ser, mais brevemente do que julgamos, essa fortaleza inacessível”.
Este excerto é retirado de um paper recente, perturbador e, à partida, alucinante, na medida em que não nos é possível ainda imaginar que, a médio prazo, as nossas memórias e pensamentos mais profundos possam sair do único domínio que ainda mantemos como privado: o nosso cérebro. Escrito por Marcello Ienca, especialista em neuro-ética e Roberto Andorno, advogado dos direitos humanos, estes dois investigadores suíços, das Universidades da Basileia e de Zurique, respectivamente, estão a propor quatro novos potenciais direitos humanos relacionados com a neurociência – ou mais precisamente com a neurotecnologia –, os quais servirão para proteger a liberdade cognitiva, a privacidade e a integridade mental, em conjunto com a denominada continuidade psicológica.
Intitulado “Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology” e divulgado em Abril último na revista Life Sciences, Society and Policy, a sua publicação coincidiu também com o anúncio, feito há poucas semanas, por Elon Musk, o multimilionário e CEO da Tesla Motors e da SpaceX, do lançamento da novíssima Neuralink, a sua nova aventura que pretende, através da construção de interfaces “implantáveis” ligar os computadores aos cérebros humanos, fazer da telepatia uma realidade, entre outras “incursões cerebrais” que já deram bons argumentos cinéfilos.
[quote_center]Com os avanços na engenharia neural, da imagiologia cerebral e da neurotecnologia, a mente poderá deixar de ser, mais brevemente do que julgamos, uma fortaleza inacessível[/quote_center]
Mas a aposta no desenvolvimento “eficaz e real” da neurotecnologia não reside apenas na aparentemente louca massa cinzenta do homem que pretende colonizar Marte, estando também nos planos de curto prazo do Facebook: na sua estranha e futurista startup Building 8, a empresa de Mark Zuckerberg está a apostar forte também num interface cérebro-máquina, apesar de não invasivo que, garante, permitirá que as pessoas “teclem” o que pensam, simplesmente… pensando. O que, convenhamos e em muitos casos, não parece nada pacífico, antes pelo contrário.
Mas e supostas ficções científicas à parte, que “conteúdo” poderá existir nestes anúncios e até que ponto fará sentido alertar para a criação, antes que seja tarde de mais, de novos direitos humanos que protejam a nossa mente e os nossos pensamentos? Façamos primeiro uma breve incursão na complexa simbiose cérebro-máquina.
Preservar o cérebro enquanto último reduto da privacidade humana
Apesar de o tema parecer mera ficção científica, a verdade é que as tecnologias relacionadas com o cérebro e os interfaces cérebro-computador estão em pleno desenvolvimento. E só não estão mais – principalmente as que implicam implantes, ou seja, invasivas – porque, ao serem tão complexas, a maioria continua “fechada” entre as paredes dos laboratórios de investigação académicos. Mas não por muito tempo.
Em primeiro lugar, há que sublinhar que uma extensa quota da tecnologia relacionada com o cérebro deve o seu desenvolvimento à pesquisa médica e a necessidades físicas e psicológicas: algumas ferramentas de diagnóstico, bem como alguns tratamentos, precisam de “ler” a actividade cerebral e isso já é possível há alguns anos. As próteses de membros ou as cadeiras de rodas que podem ser controladas pelos pensamentos dos pacientes são também uma realidade e, para o mal, já existe também a possibilidade de se controlar, com a mente, vários tipos de armamento – em alguns casos, com as mesmas neurotecnologias que estão a ser utilizadas na pesquisa de doenças como o Alzheimer, por exemplo – ou como forma de tortura, através de frequências electromagnéticas que controlam a mente.
Em segundo lugar, as ondas cerebrais, e se bem que há muito que existem os electroencefalogramas (EEG), estão a ser cada vez melhor rastreadas, o que está a ajudar a mapear quais as partes do cérebro que estão envolvidas em determinados processos, diagnosticar traumatismos, “adivinhar” em que número uma pessoa está a pensar, ajudar as vítimas de ataques cardíacos a recuperarem as suas capacidades motoras, permitir que pessoas “fechadas” no interior do seu cérebro possam comunicar com o mundo exterior, entre um sem número de outras possibilidades. Por outro lado, a denominada estimulação magnética transcraniana (TMS, na sigla em inglês) permite, por exemplo, que se coloque uma espécie de “bobina” magnética na parte de trás do crânio, estimulando directamente o cérebro para intensificar ou melhorar a memória e a capacidade de aprendizagem, enviar mensagens, tratar enxaquecas e até fazer jogos.
[quote_center]Proteger a liberdade cognitiva, a privacidade e a integridade mentais, em conjunto com a denominada continuidade psicológica, torna-se crucial[/quote_center]
Em particular, esta área de investigação e desenvolvimento tem tido excelentes resultados nos denominados “intensificadores de performance”, o mesmo acontecendo com os interfaces de jogos e com os interfaces cérebro-máquina que, através das ondas cerebrais, já conseguem controlar aquilo que se lhes pede (pode ver aqui um exemplo). Já foi criado um robot que através de uma tecnologia de controlo cerebral permite a pessoas com deficiências motoras controlarem o mesmo através somente da sua concentração. Um grupo de cientistas já conseguiu, com sucesso, “ligar” os cérebros de três macacos, sincronizando-os e conseguindo que, em espaços separados, estes realizassem as mesmas tarefas, resultando numa espécie de “cérebro colectivo”, ou seja, uma estrutura que resulta na combinação desses três mesmos cérebros. Estes mesmos engenheiros criaram também a sincronização de cérebros em ratos e ligaram dois humanos com “capacetes” cerebrais, permitindo, pelo menos, que estes comunicassem através de respostas de sim e não. E esta mesma “prática” já foi usada com sucesso em pessoas que sofrem da síndroma de encarceramento – aqueles cujos movimentos do corpo inteiro são paralisados com excepção dos olhos, mas cujas faculdades mentais se mantêm perfeitas – conseguindo que estas comunicassem.
Em princípio e porque o segredo continua a ser a alma do negócio, estima-se que este tipo de neurotecnologia que aposta nos interfaces computador-cerebro (BCI, na sigla em inglês, para Brain Computer Interface) seja aquela que está por detrás não só da Building 8, do Facebook, para permitir que as pessoas “pensem entre si” sem teclarem ou falarem e também da própria Neuralink de Musk, com objectivos mais ambiciosos ainda, ou seja, a “construção” de uma “terceira camada na mente humana” que proporcione uma fusão entre a inteligência humana e a inteligência artificial.
[quote_center]Elon Musk anunciou o lançamento da Neuralink e garante que a telepatia será uma realidade[/quote_center]
Apesar de serem muitos os críticos e analistas que concordam que, pelo menos em termos de prazos – o Facebook afirma que bastarão dois anos para que o seu “capacete cerebral” esteja a funcionar e Elon Musk atreve-se a afirmar que a “telepatia” será possível num período entre oito a 10 anos – tal não será possível, apesar de não negarem veementemente esta possibilidade, a proposta dos dois investigadores suíços para a criação de direitos de defesa da nossa mente e dos nossos pensamentos não é assim tão disparatada.
E, se por um lado todos estes progressos neurocientíficos e neurotecnológicos poderão mesmo ter efeitos extraordinários no bem-estar físico e psicológico dos humanos, na medida em que estão a ser explorados na biomedicina – e aplicados para o bem numa outra série de domínios – também não é difícil imaginar o que significa a possibilidade dos segredos do nosso cérebro poderem ser “desvendados” e os nossos mais profundos pensamentos poderem ser pirateados, lidos ou partilhados sem o nosso consentimento.
Atentemos, então, a cada um dos novos direitos propostos em particular.
Antes que se torne impossível pensar com os nossos botões
“Os rápidos avanços nas neurociências humanas e na neurotecnologia têm vindo a abrir possibilidades sem precedentes para se aceder, recolher, partilhar e manipular informação existente no cérebro humano. E estas aplicações levantam desafios importantes aos princípios dos direitos humanos que precisam de ser abordados para evitar consequências indesejadas”.
[quote_center]O Facebook está a apostar forte num interface cérebro-máquina que permitirá que as pessoas “teclem” o que pensam, simplesmente… pensando[/quote_center]
Assim começa o paper de Ienca e Andorno num prelúdio da questão de que, e independentemente das restrições que possam ser colocadas à nossa liberdade de expressão ou de acção, ou do tipo de coerção que possa ser exercida para que nos forcem a comportar de determinada maneira, os nossos pensamentos, crenças e emoções são livres e intocáveis. O problema é, exactamente, até quando.
- O direito à liberdade cognitiva
O primeiro novo direito proposto é o da “liberdade cognitiva”, ou o “guarda-chuva” que acolhe a liberdade de escolha, de expressão, de religião, entre outras liberdades que fomos adquirindo com o suposto progresso civilizacional. Na medida em que é na mente individual que “residem” todas as decisões pessoais sobre o que acreditamos, dizemos e fazemos, os investigadores consideram que esta liberdade deve, e sempre, ser preservada. Todavia, este mesmo direito pressupõe, por um lado, que uma pessoa possa ter o direito de aceder à neurotecnologia emergente para modificar a sua actividade menta – caso ta lhe confira benefícios – mas também o direito de a recusar em situações que podem ser muito distintas.
Por exemplo, enquanto trabalhador, qualquer pessoa deverá ter a liberdade de recusar quaisquer dispositivos propostos pelo seu empregador que tenham como objectivo aumentar a performance, algo que já não é tão incomum como poderíamos imaginar. Um artigo publicado pelo The Guardian a propósito das propostas dos dois investigadores suíços recorda que, em Novembro do ano passado, cientistas militares dos Estado Unidos reportaram a utilização da já acima mencionada estimulação magnética transcraniana directa para estimular as competências mentais do seu pessoal, acrescentando ainda que estes dispositivos estão já disponíveis no mercado, apesar de existirem inúmeras preocupações em torno da sua segurança. Assim, os autores do paper sublinham que as organizações e os governos não deverão ter a capacidade para “manipular à força os estados mentais e, implicitamente, os estados dos cérebros dos cidadãos individuais”, ao mesmo tempo que as pessoas devem ter o direito de recusar as utilizações coercivas da neurotecnologia.
- O direito à privacidade mental
O segundo direito na lista tem como principal objectivo garantir a protecção relativa à recolha de dados por parte de entidades terceiras sobre a actividade mental dos indivíduos a partir de dispositivos neurotecnológicos e sem o seu consentimento. E a necessidades desta defesa é mais do que óbvia, e tão-somente porque já está a acontecer.
Se os gigantes da tecnologia já coleccionam quantidades astronómicas dos nossos dados comportamentais para “tentarem adivinhar” os nossos mais ínfimos desejos com vista a nos “oferecerem” bens e serviços, é fácil de imaginar o quão fantástico seria deixarem de pressupor e, a partir de informação fresquinha proveniente do nosso cérebro, saberem exactamente o que queremos, desenhando experiências online customizadas para nos satisfazer.
[quote_center]As organizações e os governos não poderão manipular à força os estados mentais dos cidadãos[/quote_center]
Claro que todos nós sabemos que, e graças à Internet, a nossa informação pessoal nunca foi tão pública, mas o que acontecerá quando as empresas e os governos forem capazes de “gravar” directamente o que nos vai no pensamento? Para além de não termos controlo contínuo sobre a nossa mente e sobre o que pensamos e, tal como os investigadores sublinham, mesmo nas alturas em que dermos consentimento para nos fazerem um electroencefalograma mais “avançado”, o dispositivo poderá recolher muito mais informação do que aquela que queremos partilhar.
A ideia da dupla de investigadores no que a esta matéria diz respeito poderá ser satisfeita ao se assegurar que estes dispositivos possam ler apenas as ondas cerebrais explicitamente “acordadas” com o paciente, sendo que a informação recolhida deverá ser protegida de qualquer tipo de fuga para a Internet. O que é particularmente importante não só porque os nossos pensamentos constituem a informação mais pessoal de todas, mas também porque estão indissociavelmente ligados à nossa identidade, o que poderá tornar impossível que esses dados se mantenham completamente anónimos.
Todavia e mesmo assim, os autores não estão certos de que este direito deva ser absoluto ou relativo. Em certas situações, permitir o acesso aos pensamentos de criminosos e terroristas poderá ter efeitos obviamente benéficos para a sociedade. O que dará azo, sem dúvida, a um complexo debate.
- O direito à integridade mental
A possibilidade de os nossos computadores serem pirateados sem darmos por isso e os nossos dados serem roubados ou utilizados para fins obscuros é bem real na era em que vivemos. Mas imaginemos que o “computador” é o nosso cérebro…Quão corrompidos nos sentiríamos se nos roubassem os pensamentos? Se só imaginar essa possibilidade é um pesadelo, a verdade é que, e como já anteriormente mencionado, os interfaces computador-cérebro estão já a ser utilizados em próteses que podem ser controladas pelo pensamento, o que, escrevem os autores, significa que os pacientes passem a”pensar neles mesmos como os seus próprios membros”. Para além do mais, acrescentam, estes mesmos dispositivos podem ser controlados remotamente, o que pode ser, no mínimo, perturbador, se de repente, uma pessoa desconhecida conseguir aceder ao controlo da nossa mão ou da nossa perna. E é para evitar estas possíveis histórias de terror, possíveis “escorregadelas” no sentido de “lavagens cerebrais”, “influências” na mente ou o apagar de memórias que os investigadores propõem a integridade mental como o terceiro direito.
- O direito à continuidade psicológica
Apesar de lidar com uma noção vaga de tentativas de alteração da personalidade ou da identidade dos indivíduos, seja através de abordagens similares a hackers que entram no nosso cérebro ou outras mais subtis como o neuromarketing, o qual pode conferir às empresas conhecimentos “privilegiados” passíveis de alterar comportamentos e atitudes inconscientes dos consumidores, algo de que o Facebook, por exemplo, já é acusado, este último direito faz, sem dúvida, todo o sentido. Desde logo porque a nossa identidade vai sendo construída por memórias e pensamentos e a neurociência está já a conseguir descortinar formas de alterar activamente as “nossas cabeças”. Por exemplo, a eliminação de memórias, que tem surtido alguns efeitos benéficos nas vítimas de stress pós-traumático, em conjunto com a possibilidade de outras que poderão ser implantadas na nossa mente, resulta num enorme potencial para alterações comportamentais, seja deliberado ou por negligência, o que poderá abalar a “noção de nós mesmos”. E é para preservar a nossa “continuidade” psicológica que os autores sugerem também este último direito.
[quote_center]A nossa informação pessoal nunca foi tão pública, mas o que acontecerá quando as empresas e os governos forem capazes de “gravar” directamente o que nos vai no pensamento?[/quote_center]
Como refere um excelente artigo sobre o tema na newatlas.com, apesar de estes cenários parecerem irrelevantes por agora – apesar de alguns serem já possíveis – quanto mais cedo se pensar nos mesmos em termos de saúde, ética e direito, melhor. Ninguém consegue prever, de forma alguma, o quão perto está o futuro. E antes que entre o ladrão, o melhor mesmo é colocar trancas à porta.
Editora Executiva