José, Maria, Amina, Andrei, Aapti, Jacira, Ochuwa, Rangsan. Os nomes sucedem-se em fichas numeradas, um pouco por todo o mundo, com informação sobre vítimas de tráfico. Têm nove ou 27, 35 ou catorze anos. Vêm da Europa, de África, da Ásia, das Américas. Procuram uma vida melhor em Portugal ou nos EUA. Pouco parecem ter em comum, mas na verdade têm muito. Todos perseguem uma vida com esperança e sonhos realizados, que alguém lhes serve numa bandeja
Como em todos os assuntos, as generalizações são perigosas. Há perfis das vítimas traçados, países de origem identificados, modus operandi mais utilizados pelos traficantes. Os países são classificados conforme o risco que os seus cidadãos correm e há inúmeras instituições nacionais, regionais e transnacionais que lidam com a problemática. Os jovens são alertados pelos pais a desconfiar de desconhecidos que os queiram conhecer numa qualquer rede social. Os professores alertam para a marcação de encontros em sítios privados para mostrar a última versão do vídeo X ou Y. Os polícias alertam para os anúncios de emprego com ofertas boas demais para serem recusadas. Mas onde estão os alertas sobre os amigos de infância, os tios, namorados ou maridos? Depois de três anos de investigação do projecto do IEEI “Migrações, Combate ao Tráfico de Seres Humanos – Valorização e Inclusão Social das Vítimas”, com mais de cem casos analisados ao pormenor, a triste constatação é que 60% das vítimas conhecia o seu traficante. Conheciam-no muitas vezes não durante meses, mas durante anos. Muitos anos. Alguns eram amigos há mais de trinta. Há tios, namorados e maridos. Amigos de família com que sempre cresceram. Vizinhos que viam todos os dias. Pessoas de confiança. Quando esses tios, amigos ou maridos lhes prometem uma vida melhor noutro país, com bons empregos, e com um elevado nível salarial, as vítimas não hesitam. Alguns assinam contratos, outros embarcam no primeiro avião, facilitado pela “generosa” oferta dos bilhetes e documentação, outros ainda partem com um visto de trabalho. Muitos entram legalmente nos países. Há pessoas sem qualquer nível de escolaridade, mas também há estudantes do secundário e licenciados. Um terço das vítimas era ainda menor quando foi traficada. Com idades de dezasseis, dezassete anos, mas também de catorze ou até doze. Para estes os períodos de exploração são mais longos. A resistência do seu jovem corpo assim o permite.
Agências de emprego recrutam homens e mulheres de países asiáticos para países europeus, com a promessa de um salário mensal que muitos não ganhavam num ano. Agências legalmente criadas, que assinam contratos em duas e três vias, que encobrem esquemas de tráfico e engano e que, ao primeiro sinal de denúncia, desaparecem tão depressa quanto foram criadas. Por detrás de tudo há esta aparência de legalidade, ou pelo menos de legitimidade. Laços de confiança forjados ao longo de muito tempo, exemplos de sucesso impossíveis de contrariar, até histórias personalizadas na pessoa do traficante. Homens, mulheres e crianças; todos caem nas suas redes. Os portugueses não são excepção. Portugueses e portuguesas forçadas a prostituir-se em casas de alterne e bordeis. Portugueses e portuguesas forçadas a trabalhar dezasseis horas por dia em terrenos agrícolas em Espanha. Mas também portugueses e portuguesas traficantes que forçam as nigerianas de catorze anos a prostituírem-se ou os búlgaros de trinta a trabalhar, por quase nada, nas quintas do Alentejo. Muitos vendidos por familiares ou amigos, em quem confiavam. As histórias das vítimas são difíceis de ouvir, complexas e tão repletas de violência que por vezes parecem irreais. A sociedade faz ouvidos moucos às histórias dramáticas que lhes passa ao lado, uma indiferença que só enfatiza o drama das vítimas. Muitas nunca vêem o seu estatuto de vítimas ser reconhecido e, com ele, o almejado apoio que as poderia voltar a colocar no caminho da reintegração. Muitas outras são banidas da sociedade onde nasceram e vivem para sempre com o estigma da profissão que as obrigaram a fazer. Dizem que as vítimas de tráfico quase nunca recuperam. Nunca voltam a ser as pessoas que eram antes. Anos depois das mazelas do corpo terem desaparecido, as da mente retorcem-se diariamente à procura duma explicação. Têm dificuldade em voltar a confiar. Que o diga Lesliana, forçada a prostituir-se durante doze longos anos pelo namorado, com quem fora feliz, um dia. |
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Valores, Ética e Responsabilidade