A situação vivida em toda a Península Ibérica, com situações claras de seca meteorológica extrema em grande parte dos territórios continentais portugueses e espanhóis têm levado, nos últimos dias, a manifestações de intenções e de pressão associativa, setorial e política no lado de nuestros hermanos, mais concretamente do setor agrícola espanhol. Mas vejamos: o que será que aconteceu para que, e de um momento para o outro, tenhamos esta questão novamente em cima da mesa?
POR PAULO CHAVEIRO

Queixa-se o mesmo setor agrícola, nomeadamente o de Zamora e Salamanca, que a água que tanto necessitam para produzir riqueza e obviamente alimentos se escoa todos os anos para Portugal, por via do acordo celebrado através da Convenção de Albufeira assinado pelos dois governos ibéricos em 1998, e que segundo os agricultores se escoa para o mar ou somente serve para produzir riqueza do nosso lado da fronteira na produção de energia elétrica, em contraponto com a geração de riqueza em Espanha com a atividade agrícola.

Mas vejamos: o que será que aconteceu para que, e de um momento para o outro, tenhamos esta questão novamente em cima da mesa? Sim, talvez não sabeis mas a questão dos volumes aduzidos de Espanha para Portugal há muito que é debatida nos corredores ministeriais dos vários governos espanhóis desde o início deste milénio. Penso que todos percebemos qual a resposta: a falta de precipitação. De facto tivemos um terrível ano hidrológico – relembrar que um ano hidrológico vai de outubro a setembro do ano seguinte – com uma precipitação média anual bem abaixo do que consideraríamos normal. 

Vejamos apenas alguns dados exemplificativos do que se passou durante o presente ano hidrológico: até agosto de 2022 registou-se uma precipitação média anual de 422mm, ou seja, metade do que se consideraria como normal para o território (840mm) e que, obviamente, se reflete nas reservas de água armazenadas nas nossas bacias hidrográficas. Assim e também até agosto de 2022 verificámos que as bacias hidrográficas do Douro, Tejo, Guadiana e Mira apresentaram um volume de armazenamento de 51%, 48%, 62% e 36% respetivamente numa média nacional na ordem dos 54% de volume armazenado. 

E Espanha? Pois, Espanha em igual período só já apresenta uma reserva de 34% da sua capacidade total. Estes dados são tão desesperantes que cidades como Cáceres têm a sua capacidade de fornecimento de água em risco e toda a atividade agrícola de zonas como Zamora, Salamanca, Badajoz e Sevilha, só para indicar algumas, tiveram a sua capacidade produtiva totalmente comprometida este ano por falta de água para regar. 

Mas poderão estas questões levar a que um dos lados simplesmente feche as comportas das suas barragens não permitindo que outros utilizadores, neste caso Portugal, tenham direito à água de rios internacionais que naturalmente passariam por esses mesmos territórios? E os territórios a jusante como ficam? Morrem de sede? A Convenção de Albufeira veio regular situações como esta não permitindo que um Estado se sobreponha a outro num bem tão essencial, quanto escasso, como é a Água. Contudo, em anos de seca esses valores poderão não ser totalmente cumpridos. 

E a Convenção de Albufeira? Deve ou não ser revista? Como sabemos e apesar de estarem estabelecidos que volumes anuais devem afluir de Espanha para Portugal, o mesmo não estabelece caudais ecológicos ou caudais diários. Dos caudais anuais apenas uma parte deles estão distribuídos por intervalos de tempo inferiores ao ano, levantando-se não poucas vezes os problemas de irregularidade na disponibilização de caudais e a imagens como a de há dois anos com o Rio Tejo e troços finais do Zêzere completamente transformados em pequenas ribeiras. 

Qual dos dois cenários o menos mau? E poderão os agricultores reclamar somente com esta parte do acordo ibérico, ou não se deverão também opor ao nível e volumes dos transvases em território espanhol, nomeadamente no Douro e Tejo do outro lado da fronteira? Os volumes que todos os anos são desviados para a Andaluzia, por via dos transvases, para que a atividade agrícola seja incrementada a nível quase estratosférico (convido todos a verem imagens de satélite da zona de Almería) deverá também servir de reflexão em Espanha e nomeadamente a estes agricultores. Mas Portugal também questiona a Convenção não só pela falta de delimitação de caudais diários ou mensais mas também pela incúria com que são, por exemplo, rejeitados os esgotos da comunidade de Madrid que aflui depois diretamente para o Tejo chegando a Cedillo, fronteira com Portugal, uma água que mais parece um esgoto que rio. Será também aceitável esta questão? 

A gestão dos recursos hídricos é bastante complexa, ainda mais agora que sentimos diretamente os impactos das alterações climáticas nos nossos territórios. As alterações climáticas infelizmente para nós, mas essencialmente para as próximas gerações, estão já aí e nem os negacionistas têm mais como “negar”tais evidências e as perspetivas futuras terão sempre de ter em conta a evolução climática em Portugal que, tendencialmente, apresentará uma maior prevalência de anos secos em relação aos húmidos, assim como a crescente necessidade de mais água para vários fins. 

Por todos estes motivos e para além deles devemos ter a capacidade de autoavaliação e colocarmo-nos perante outro tipo de questões internamente. Por exemplo: será aceitável que da água total que aflui até à foz do Tejo e Douro, contando com a água rececionada de Espanha mais os contributos das precipitações nas bacias hidrográficas dentro do nosso território, somente tenhamos atualmente a capacidade de armazenar 30% a 40% desaproveitando o restante para o mar (no Guadiana armazenamos 70% do volume anual)? Não deveríamos conseguir aumentar esses níveis de armazenamento para 50% – 60%? Fará sentido ter a gestão das principais barragens totalmente dependentes de produtores de energia, dificultando a decisão de paragem de funcionamento das turbinas de acordo com as necessidades das bacias e das suas múltiplas utilizações? Por último, temos de nos perguntar se não seria o momento de finalmente se apostar também na reutilização da água residual tratada na agricultura.

Ainda que por vezes me sinta como Santo António a pregar aos peixes, vejo com satisfação que o Conselho Nacional da Água reflete também essa preocupação e vejamos se a mesma não é pertinente. Portugal produz 600.000.000m3 (milhões de metros cúbicos) de águas residuais urbanas, que os utilizadores urbanos já pagaram a cerca de 0,70€/m3, ou seja 400 milhões de euros por ano. Esta água, com necessidade de transporte e de tratamento complementar para utilização, filtragem e desinfeção entre os 0,10€/m3 a 0,30€/m3 já sob pressão, daria para regar cerca de 150.000 ha, área mais ou menos correspondente ao Alqueva. só que neste caso com disponibilidade garantida em cada dia do ano, todos os anos, mesmo durante secas prolongadas e no contexto de alterações climáticas (Portugal reutiliza 3% e Espanha 30%). 

Estão certamente a perceber onde quero chegar. À questão da dessalinização que penso estar, atualmente, a ser colocada onde é suposto, ou seja, com a instalação de dessalinizadores no Algarve para fazer face às necessidades extremas que o território produz.  Acima de tudo considero que de uma vez por todas temos de pensar na Água e na sua gestão como um todo, ou seja, não existem vários tipos de água, como por exemplo a água superficial, a água subterrânea, a água cinzenta, a água reutilizada. Existe, sim, a ÁGUA e os seus usos diretos e indiretos. Saibamos todos geri-la na nossa atividade diária, mas acima de tudo a nível nacional, pois dificuldades se advinham e somente com bom senso, respeito e noção da sua escassez poderemos responder aos desafios que se apresentam já aí. Por tudo o que aqui expressei parece-me que estamos perante o ditado português que utilizei como título deste artigo, com pequenas alterações …, a razão não estará nem lá nem tão pouco nas opiniões absolutas no lado de cá. A gestão partilhada deve manter-se, afinar-se o que se tiver para afinar, mas com um pensamento integrado e se não for pedir demasiado, com planeamento.

PAULO CHAVEIRO

Engenheiro de Recursos Hídricos, com mestrado em Ciclo Urbano da Água. Presidente da Comissão Especializada de Serviços de Água da Associação Portuguesa de Recursos Hídricos (APRH). Chefe de Gabinete da Presidência da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz e conselheiro da Região Hidrográfica do Alentejo