Se bem que nem todas as empresas tenham cumprido e/ou concordado com as sanções económicas impostas à Rússia depois da invasão da Ucrânia há um mês, centenas delas cessaram as suas operações no território e deslocaram os seus investimentos para auxiliar, mediante formas variadas, o povo ucraniano. Directa ou indirectamente, o universo empresarial está a lutar com as armas que tem para minorar o sofrimento na Ucrânia e nas regiões vizinhas, o que tem contribuído também para melhorar a sua imagem junto de consumidores e accionistas
POR HELENA OLIVEIRA

Por muito, e por vezes em demasia, que os ecrãs que acompanham o nosso dia-a-dia nos mostrem os horrores dos milhões de pessoas que estão a sofrer na Ucrânia, e também fora dela, por causa da guerra iniciada por Vladimir Putin a 24 de Fevereiro último, é impossível imaginar o quão duro e cruel será abandonar, de uma hora para a outra, e para os que o conseguiram fazer e manter-se a salvo, tudo o que se foi construindo ao longo de uma vida.

Com um número de mortes ainda indefinido, as Nações Unidas estimam porém que desde o primeiro dia da invasão mais de 10 milhões de pessoas tenham sido forçadas a abandonar as suas casas em busca de segurança e protecção, o que representa quase um quarto da população da Ucrânia. Destes e de acordo com a agência de migrações de ONU (OIM, na sigla em inglês), cerca de 6,5 milhões de homens, mulheres e crianças estão deslocados internamente, aos que se juntam, de acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) cerca de 3,9 milhões de pessoas que conseguiram atravessar as fronteiras ucranianas, sendo recebidas essencialmente pelos países vizinhos como a Polónia (mais de 2 milhões de pessoas), a Roménia, a Moldávia, a Hungria, e Eslováquia, entre outros mais longínquos.

Por outro lado, e pouco depois de Putin ter ordenado a invasão da Ucrânia, e em muitos casos sob forte pressão por parte de consumidores e investidores, centenas de empresas multinacionais ocidentais foram forçadas a reexaminar, e em muito casos, a cortar, os laços estreitos que mantinham com a Rússia, suspendendo investimentos, fechando lojas (só a Zara encerrou as portas de quase 300 dos seus espaços comerciais, a Adidas 500, a H&M 130 e a lista poderia continuar) e colocando em modo “pausa” as suas vendas. Os números também não estão ainda devidamente contabilizados, mas estima-se que pelo menos 400 grandes empresas, dos mais diversos sectores, se tenham “retirado” do território russo, apesar de muitas delas terem contado com resistências por parte dos seus conselhos de administração, o que daria tema para outro artigo.

Dos bens de consumo (Unilever, IKEA), à energia (BP, Shell, Exxon-Mobil), passando pela área financeira (Deutsche Bank , Goldman Sachs ou o JPMorgan Chase – o primeiro a sair), a American Express, a Mastercard ou a Visa, pela consultoria (McKinsey, Bain ou BCG), pelo sector alimentar e das bebidas (McDonalds, Starbuck, Heineken ou Carlsberg) e pelos media (Netflix, Walt Disney Company, Warner Bros ou a Sony), são inúmeros os gigantes empresariais que quase imediatamente (uns demoraram mis do que outros, é certo) aderiram às sanções económicas impostas pelos Estados-membros da NATO e da União Europeia, bem como por outros países como o Japão, a Austrália ou a Nova Zelândia, com o objectivo de exercer a maior pressão possível sobre as sua finanças, energia, transportes e comércio. Também as Big Four – Deloitte, EY, KPMG e PWC – não hesitaram em cortar as suas relações com a Rússia.

Adicionalmente e a 2 de Março, o Conselho Europeu anunciou a decisão de proibir todas as actividades do canal Russian Today (RT) e da agência noticiosa Sputnik News, sob acusação de que estes de meios de comunicação estatais russos estariam a espalhar a desinformação e a manipulação de informações contra a UE e os seus Estados-membros.

No seguimento desta decisão, foram várias as plataformas de Big Tech que tomaram as suas próprias medidas: a Netflix confirmou que se recusaria a transmitir propaganda estatal russa, com o YouTube e o Facebook a limitarem a capacidade dos meios de comunicação estatais russos de obterem receitas nas suas plataformas, enquanto a Google deu o extraordinário passo para impedir a disseminação da desinformação, retirando a RT da sua ferramenta de pesquisa de notícias e bloqueando certas características dos seus serviços de geolocalização na Ucrânia para proteger os cidadãos locais. Já o Twitter suspendeu toda a publicidade na Rússia, ao mesmo tempo que rotulou e limitou o alcance de tweets ligados a fontes de notícias estatais russas, como as já mencionadas RT e a Sputnik.

Mas a resposta empresarial à guerra iniciada por Vladimir Putin não se ficou por este adeus organizacional (provisório?), na medida em que muitos destes negócios que operavam em território russo decidiram também ajudar, mediante diversas formas, a Ucrânia e os ucranianos. Vejamos alguns exemplos.

Lutar com as armas que se tem

Um mês passado sobre o início da guerra, um número crescente de empresas continua a utilizar o seu poder e alcance global para mobilizar apoio e ajudar os ucranianos. As iniciativas são muitas, diversificadas e até inesperadas.

Uma das mais rapidamente agilizadas e na sequência de um apelo pessoal do vice-primeiro-ministro ucraniano, Mykhailo Fedorov no Twitter, o fundador da SpaceX, Elon Musk, tornou o seu serviço Starlink activo na Ucrânia num prazo de 10 horas, tendo enviado igualmente terminais Starlink para o país, permitindo assim à nação em confito o acesso à Internet por satélite.

Já a Airbnb, e através dos seus co-fundadores e do responsável da organização sem fins lucrativos Arbnb.org, enviou cartas aos líderes europeus, começando pela Polónia, Alemanha, Hungria e Roménia, oferecendo apoio no acolhimento de refugiados dentro das suas fronteiras, comprometendo-se a facilitar o alojamento de curto prazo de até 100 mil refugiados provenientes da Ucrânia. Em simultâneo, está a trabalhar em estreita colaboração com os governos para melhor apoiar as necessidades específicas de cada país, nomeadamente através da oferta de estadias com um prazo mais alargado. E como se pode ler no website da organização, desde a activação da Airbnb.org para apoiar os refugiados em fuga da Ucrânia, mais de mil pessoas estão a inscrever-se todos os dias para partilhar/disponibilizar as suas casas. Dados de 14 de Março apontam para a inscrição de cerca de 37 mil anfitriões através da Airbnb.org que se predispõem a oferecer os seus lares a refugiados em todo o mundo. Adicionalmente, e nas duas últimas semanas, a Airbnb.org encetou, na Europa, novas colaborações e parcerias com a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e em particular com o governo alemão para “ligar” as pessoas que fogem da Ucrânia à habitação gratuita e de curto prazo, continuando igualmente a trabalhar para estabelecer parcerias adicionais assentes em discussões activas com dezenas de ONG internacionais e regionais que estão activas no terreno. Os portugueses poderão inscrever-se numa nova página criada para o efeito.

Por seu turno, a aplicação Ride-hailing Uber, presente em nove cidades da Ucrânia, ofereceu aos empregados baseados em Kiev e às suas famílias a recolocação temporária e voluntária não só em outros locais do território invadido, como também em outros países.

As empresas de consultoria também não quiseram ficar de fora desta onda de solidariedade: a EY, a KPMG e a PwC divulgaram de imediato declarações que denunciavam a guerra na Ucrânia, confirmando o cumprimento das sanções introduzidas por vários governos na Rússia. Por seu turno, a KPMG, nos Estados Unidos, anunciou um donativo inicial de 250 mil dólares à GlobalGiving para o Fundo de Ajuda à Crise da Ucrânia, ao mesmo tempo que a PwC Ucrânia ofereceu uma quantia similar para o fundo Help Ukraine.

Através do seu Fundo L’Oreal para Mulheres, a multinacional francesa de cosméticos anunciou um donativo no valor de 110 milhões de dólares, em conjunto com mais de 300 mil produtos para apoiar as necessidades do número crescente de refugiados.

Uma forma simples de outras empresas se envolverem – e que está a generalizar-se – é através de doações por parte dos seus empregados, da oferta de lucros a uma determinada causa ou fazendo uma contribuição caritativa directamente enquanto empresa. A título de exemplo, e ao longo de dois dias, a, empresa de sementes Baker Creek sedeada em Mansfield, no estado do Missouri, doou 100% das suas vendas à World Help, que está a trabalhar com organizações ucranianas para fornecer alimentos e água aos refugiados, tendo angariado um milhão e seiscentos mil dólares. Como escreve a fundadora e proprietária da empresa Jere Gettle no website de Baker Creek, este gesto tem, para si, uma dupla importância, na medida em que os seus bisavôs, imigrantes alemães em Odessa, fugiram da Ucrânia por causa da agressão soviética no início do século XX.

Outros exemplos de auxílio incluem empresas que têm trabalhadores sedeados no país invadido. Por exemplo, a JustAsk, com sede em S. Francisco, mas com cerca de 25% da sua força laboral presente em território ucraniano, criou um fundo de crise dedicado às forças armadas e refugiados, com doações facilitadas pela instituição de caridade ucraniana Lviv ІТ Cluster.

Num iniciativa completamente distinta, a plataforma online de criação e edição de sites Wix, com sede em Telavive, mas com cerca de 950 empregados sedeados na Ucrânia, levou o seu CEO, Nir Zohar, a tomar medidas imediatas face aos mesmos. Uma equipa interna de cerca de 20 funcionários da Wix trabalhou em conjunto para reservar viagens e alojamento para ajudar cerca de 500 dos seus funcionários e respectivas famílias a fugir do país no meio do conflito, permanecendo em estreito contacto com os trabalhadores que ainda permanecem na Ucrânia. A Wix manteve-se atenta ao desenvolvimento do conflito semanas antes de a Rússia invadir o país e começou a ajudar os trabalhadores a evacuar para a Polónia na segunda semana de Fevereiro. Uma vez que a Ucrânia restringiu a saída do país a homens entre os 18 e os 60 anos, a plataforma online não consegue evacuar todos os seus restantes trabalhadores, mas continua a ajudar activamente as famílias a fugir, pagando antecipadamente aos trabalhadores os seus salários e fornecendo aos refugiados alimentos, dinheiro, fraldas e outros bens essenciais.

Estes são apenas alguns exemplos do que inúmeras empresas, de várias dimensões e um pouco por todo o mundo, estão a fazer para ajudar a atenuar os trágicos momentos vividos pelos ucranianos. Há muitos mais e ainda bem, e é bom acreditar que nem todas as empresas o estão a fazer apenas por pressão dos seus respectivos investidores e consumidores. Na verdade, a solidariedade genuína por um povo atacado de forma tão vil parece existir mesmo e mediante as mais variadas formas. E, como seria de esperar, o mesmo acontece dentro das próprias fronteiras do território invadido.

O poder das forças de resistência

Para além dos exemplos de auxílio já enumerados, são também muitos cidadãos e empresas com operações na Ucrânia que, no seu interior, estão a ajudar o país a enfrentar a guerra.

É o caso de Dmytro Symovonyk director-geral de Citadel Capital na maior cidade da Ucrânia ocidental, Lviv, um dos principais destinos dos civis forçados a fugir das zonas de batalha e atingida há poucos dias por mísseis russos que, ao lado da sua mulher e filhos, é um dos milhões de corajosos ucranianos que enfrentam a invasão com um espírito de resistência que surpreendeu significativamente o exército russo, ao mesmo tempo que gerado admiração em todo o mundo.

Como conta à InvestmentMonitor, “passei o meu domingo a preparar misturas para cocktails Molotov nas instalações da Trotolla, um fabricante de roupa [que fornece marcas como a Zara] e um amigo meu, que trabalha para uma empresa estrangeira que vende peças para automóveis, está a oferecer as baterias dos seus veículos às forças militares e voluntárias”, afirma, acrescentando ainda que são muitas as histórias “como estas” que se vão ouvindo um pouco por toda a cidade.

Ou, como também refere Olesya Olenytska, director de relações públicas da Metro Ucrânia, parte da Metro AG, um dos maiores grupos retalhistas e grossistas da Alemanha, “conseguimos gerar uma unidade sem precedentes de cidadãos, negócios e exército e é por isso que venceremos esta guerra face ao genocídio da identidade nacional ucraniana”.

A Metro Ucrânia constitui uma parte fundamental de um conjunto de empresas estrangeiras na Ucrânia que se adaptaram rápida e espectacularmente à guerra. “Nós, como Metro, e em conjunto com outras cadeias alimentares, estamos a trabalhar para apoiar as lojas uns dos outros a fim de alimentar os civis e fornecer refeições quentes ao nosso exército”, diz Olenytska. Como afirma também, e sendo o abastecimento alimentar muito precário, se as pessoas não tiverem o que comer, deixarão as cidades e, consequentemente, deixarão de contribuir para os esforços de contenção da guerra. Mesmo assim, acrescenta ainda, há longas filas fora dos supermercados “porque enfrentamos muitas dificuldades na cadeia de abastecimento, tais como bloqueios de fronteiras e estradas danificadas, o que constitui um enorme pesadelo logístico”.

Olenytska diz ainda que a Metro está a concentrar os seus esforços de doações em Kiev, uma vez que a capital ucraniana é o principal alvo da Rússia. A empresa já utilizou grande parte do orçamento de caridade que possuía antes da guerra para fazer donativos tanto às forças armadas como aos hospitais da Ucrânia. E, no pouco tempo livre que lhe resta, Olenytska ajuda ainda a ligar as empresas estrangeiras a organizações não-governamentais de confiança na Ucrânia, tais como a fundação Come Back Alive, para que estas saibam canalizar da melhor forma os seus donativos.

Afortunadamente, a Metro não é, de forma alguma, a única empresa internacional que está a apoiar a segurança alimentar da Ucrânia. “Ontem, o meu filho foi fazer voluntariado no centro de refugiados, e para minha surpresa, foi-lhe dada comida da KFC e da McDonald’s”, diz Symovonyk da Citadel Capital. Ou seja, ambas as empresas fecharam os seus restaurantes na Ucrânia devido a preocupações de segurança e também para cumprirem as sanções económicas, mas mantiveram as suas cozinhas abertas a fim de fornecer comida aos conselhos comunitários locais, ao exército, aos trabalhadores hospitalares e aos voluntários.

Por outro lado e como afirma Maria Barabash, directora executiva da organização sem fins lucrativos Office of Simple Solutions & Results, “muitos restaurantes em Kiev que são propriedade de estrangeiros estão a fornecer comida gratuita às forças militares e civis”, acrescentando ainda que quase todas as empresas estrangeiras sedeadas na capital russa falar estão a fazer algo para ajudar. Por exemplo, a Fedex está a prestar auxílio no transporte de abastecimento e mercadorias; a PepsiCo, e para ajudar os refugiados ucranianos deslocados para os países vizinhos, está a doar alimentos, leite e frigoríficos a organizações de ajuda humanitária, depois de já ter contribuído com quatro milhões de dólares para a Cruz Vermelha na Polónia, para o Programa Alimentar das Nações Unidas, para a World Central Kitchen e para a Save the Chidren. Por sua vez, a Procter&Gamble tem apostado essencialmente na ajuda aos trabalhadores que residem na Ucrânia: desde a assistência à evacuação, ao apoio financeiro e logístico, ao fornecimento de alimentos, de abrigo e produtos essenciais para as “famílias P&G”, também a sua força laboral na Europa Central e um pouco por todo o mundo tem intensificado esforços para prestar o seu apoio individual, muitos deles abrindo as suas casas para acolher os seus colegas ucranianos.

Um outro problema recai na quantidade de estradas e rotas cortadas e/ou completamente destruídas. Como conta também Symovonyk, uma empresa de logística estrangeira, cujo nome não revelou, que abriu um armazém na Polónia logo após a invasão, mesmo ao lado da fronteira ucraniana, é agora um armazém central para Lviv e para a região circundante da cidade e, mais especificamente, um ponto de entrega de mercadorias internacionais.

“A entrada de fornecimentos estrangeiros directamente em Lviv é tornou-se extremamente difícil, pelo que muitas pessoas e organizações diferentes (governamentais ou não) estão a enviar os seus bens para o armazém polaco, a partir do qual são trazidos para a Ucrânia”, diz Symovonyk. “É uma linha de salvação porque há uma necessidade desesperada de certos medicamentos e bens estratégicos que estão a escassear [mais informações sobre como doar para este armazém podem ser encontradas, através do Lviv’s Rotary Club para empresários internacionais].

Relembrando a obra magistral “Amor em Tempos de Cólera”de Gabriel García Márquez, e no meio de toda esta tragédia absurda, é bom saber também que existe solidariedade em tempos de guerra.

Editora Executiva