É muito fácil transformar uma das maiores conquistas da História – a longevidade e a possibilidade cada vez mais real de vivermos até aos 90 ou 100 anos – num verdadeiro pesadelo. Ter uma cada vez maior esperança de vida, que alie a saúde à dignidade e à probabilidade de envelhecermos com propósito e alegria, pode possibilitar a inversão de uma realidade que, na maioria dos casos, é esmagadoramente mais negativa que positiva. A propósito do Dia Internacional da Pessoa Idosa, que se assinalou a 1 de Outubro, exploramos a situação actual dos mais velhos e o denominado “Imperativo da Longevidade”, num livro que oferece ideias para um envelhecimento activo, saudável e com propósito
POR HELENA OLIVEIRA

Envelhecimento: limitações físicas, declínio cognitivo e, cada vez mais, pobreza dos idosos. É assim que, na maioria das vezes, encaramos a velhice.

Como sabemos, o envelhecimento da população é uma tendência global extremamente importante que está a remodelar a composição demográfica das sociedades em todo o mundo. Esta mudança significativa nas estruturas etárias da população resulta da diminuição das taxas de fertilidade e do aumento da esperança de vida. Atualmente, a esperança de vida à nascença ultrapassa os 75 anos em metade dos países ou regiões do mundo, ou seja, um acréscimo de 25 anos face às pessoas nascidas em 1950.

Como se pode ler num comunicado das Nações Unidas, que prepara uma conferência intitulada “Ageing with Dignity: The Importance of Strengthening Care and Support Systems for Older Persons Worldwide”, a ter lugar no próximo dia 7 de Outubro, actualmente espera-se que as pessoas que atingem os 65 anos de idade vivam, em média, mais 16,8 anos. Em 2018, foi atingido um marco histórico quando o número de pessoas idosas ultrapassou pela primeira vez o número de crianças com menos de cinco anos a nível mundial. Até 2030, prevê-se que a população mundial de idosos ultrapasse o número de jovens e duplique o número de crianças com menos de cinco anos, prevendo-se que este aumento seja mais rápido nos países em desenvolvimento.

Dada esta mudança demográfica global, um dos panoramas que está a sofrer transformações significativas é o da prestação de cuidados, abrangendo uma vasta gama de necessidades de apoio remunerado e não remunerado, tanto em contextos formais como informais. Nas últimas décadas, assistiu-se a mudanças nas condições de vida das famílias e dos idosos, tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento. Este facto, associado às tendências gerais de envelhecimento, aumentou a procura de diferentes formas de prestação de cuidados. No meio do aumento da procura de cuidados de longa duração, o crescimento do número de prestadores de cuidados não está a acompanhar o ritmo. Em 2015, havia um défice global de cerca de 13,6 milhões de trabalhadores de cuidados formais.  Estes défices traduzem-se no facto de metade da população idosa a nível mundial não ter acesso a cuidados formais de longa duração de qualidade.

À medida que as populações envelhecem, a procura de cuidados de saúde abrangentes, de cuidados e de serviços de apoio social tem aumentado substancialmente. Esta situação é particularmente crítica para os idosos com doenças como a demência, que é uma das principais causas de dependência de cuidados e de incapacidade na velhice em todo o mundo. A necessidade de cuidados especializados tornou-se parte integrante das exigências mais amplas de cuidados de saúde das populações envelhecidas. No entanto, a maioria dos prestadores de cuidados, tanto remunerados como não remunerados, não tem formação suficiente para responder a estas necessidades complexas.

Consequentemente, existe uma necessidade mundial urgente de expandir a formação e as oportunidades educativas nos domínios da geriatria e da gerontologia para profissionais de saúde, profissionais de assistência social e cuidadores informais que trabalham com pessoas idosas. As pessoas idosas constituem um grupo heterogéneo com necessidades de saúde diversas, que requerem diferentes níveis de cuidados e apoio. Tradicionalmente, os encargos com os cuidados recaem sobre as famílias alargadas co-residentes e multigeracionais, que contam assim com a família como um sistema informal de apoio.

Um estudo recente publicado a 25 de Setembro último, “Viver com Demências”, que revela o retrato do estado actual das principais dimensões da vivência com a doença em Portugal, destaca a importância da educação para agir preventivamente, a relevância da formação dos cuidadores e a necessidade de encontrar respostas integradas entre os vários serviços de saúde e sociais. Um dos principais resultados do estudo revela que 70% dos cuidadores informais enfrentam cansaço emocional extremo, enquanto 60% afirmam sentir cansaço físico elevado. Segundo Henrique Lopes, Diretor do NOVA Center for Global Health e coordenador do estudo, “identificou-se que muita coisa está mal para os cuidadores das pessoas com demência e é possível fazer diferente e melhor, sem significativo esforço financeiro para o País”.

Já Rosário Zincke, Presidente da Alzheimer Portugal, afirma que “estes estudos são fundamentais para sensibilizar os decisores políticos e promover a criação de políticas efectivas, capazes de melhorar significativamente a vida dos cuidadores e das pessoas com demência”.

No entanto, as alterações na dimensão e dinâmica da família, o envelhecimento da população e outras tendências sociais e económicas estão a minar estes sistemas de apoio tradicionais. As implicações para as sociedades e os indivíduos dependem significativamente do tipo de cuidados necessários e de quem os presta. As mulheres, que constituem a maioria dos beneficiários e prestadores de cuidados, contribuem com cerca de 70% das horas de cuidados informais a nível mundial. Isto é especialmente verdade nos países de baixo e médio rendimento, onde as políticas e os serviços de cuidados são insuficientes, deixando as mulheres mais vulneráveis à pobreza na velhice. Os cuidadores familiares têm frequentemente múltiplas responsabilidades, o que os deixa sobrecarregados de trabalho e em risco de prestarem cuidados de má qualidade.

A proteção dos direitos humanos tanto dos prestadores de cuidados como dos beneficiários é fundamental para a implementação de estratégias de cuidados eficazes, que devem reconhecer e valorizar os diversos contributos dos prestadores de cuidados. Estes contributos vão desde os membros da família que prestam cuidados não remunerados até aos profissionais que prestam serviços específicos, incluindo cuidados paliativos, de reabilitação e de longa duração. Repensar as abordagens aos sistemas de cuidados e de apoio beneficiará os idosos de hoje e aqueles que cuidam deles, bem como as futuras gerações de idosos.

Os sistemas de cuidados e de apoio às pessoas idosas devem ser adaptados às necessidades, valores e preferências dos beneficiários e dos prestadores de cuidados. Devem ir além dos aspectos médicos dos cuidados, adoptando uma abordagem ao longo da vida que englobe a cultura, a história de vida, a rede de apoio social e a identidade de um indivíduo, e dando aos beneficiários o controlo sobre as decisões relativas aos cuidados. De acordo com as Nações Unidas e com a Organização Mundial de Saúde (OMS), os Estados-membros devem adoptar uma abordagem dos cuidados mais equitativa e centrada na pessoa, salvaguardando os direitos humanos tanto dos prestadores de cuidados como dos seus beneficiários. Esta abordagem deve abranger os governos, a sociedade civil, as comunidades e os agregados familiares, bem como o sector privado, para responder às necessidades de prestação de cuidados formais e informais

A Comemoração de 2024 do Dia Internacional das Pessoas Idosas das Nações Unidas reunirá especialistas para debater políticas, legislação e práticas que reforcem os sistemas de cuidados e apoio às pessoas idosas

A revolução da longevidade

Uma vida mais longa traz consigo oportunidades, não só para as pessoas idosas e as suas famílias, mas também para as sociedades em geral. Os anos adicionais proporcionam a oportunidade de prosseguir novas actividades, como a continuação dos estudos, uma nova carreira ou uma paixão há muito descurada. As pessoas mais velhas também contribuem de muitas formas para as suas famílias e comunidades. No entanto, a dimensão destas oportunidades e contributos depende em grande medida de um factor primordial: a saúde.

De acordo com a OMS, os dados existentes sugerem que a proporção de anos de vida com boa saúde se manteve praticamente constante, o que implica que os anos adicionais são vividos em condições de saúde precárias. Se as pessoas puderem viver estes anos adicionais de vida com boa saúde e se viverem num ambiente favorável, a sua capacidade de fazer as coisas que valorizam será pouco diferente da de uma pessoa mais jovem. Se esses anos adicionais forem dominados por declínios na capacidade física e mental, as implicações para os idosos e para a sociedade serão irremediavelmente negativas.

No entanto, e para além do crucial elemento da saúde física e mental, Andrew J. Scott, professor de Economia na London Business School e especialista em longevidade e macroeconomia, afirma que podemos impedir que uma das maiores conquistas da humanidade se transforme num futuro próximo distópico. Scott é igualmente Diretor de Economia no Ellison Institute of Technology, cuja investigação, escrita, trabalho de consultoria e palestras se centram em ajudar os indivíduos, as organizações e os governos a adoptar uma agenda de longevidade face a uma sociedade em envelhecimento.

No seu mais recente livro, The Longevity Imperative: Building a Better Society for Healthier, Longer Lives (escolhido para a short list dos melhores livros do ano anunciada há dias pelo Finantial Times), em vez de encarar o envelhecimento da população como um fardo económico, Scott encoraja uma mudança de paradigma para aquilo a que chama a “agenda perene” [‘evergreen’, no original em inglês]. Esta estratégia envolve mudanças sistémicas nos cuidados de saúde, na educação, no trabalho e na reforma, de modo a que os indivíduos possam permanecer saudáveis, produtivos e realizados ao longo da sua vida. Ao concentrar-se nos cuidados de saúde preventivos e na melhoria da qualidade de vida, Scott vê o envelhecimento não como um problema, mas como uma oportunidade de crescimento, inovação e vitalidade económica única e defende que o aumento da duração da nossa vida está a conduzir a uma nova era da humanidade. “Preparem-se para uma mudança fundamental no que significa ser humano”, afirma numa entrevista ao The Guardian.

Scott argumenta que sem uma transformação fundamental da sociedade, estamos a caminhar para um futuro próximo distópico de custos de saúde em espiral, uma crise de pensões, demência em massa e lares de idosos sobrecarregados.

No entanto, se a abordagem for diferente, a nossa maior longevidade poderá ser a maior dádiva que a humanidade alguma vez recebeu. “Este pode ser um momento de arranque na história da humanidade”, afirma. “O envelhecimento não é inevitável. Pode ser abrandado ou mesmo adiado. E, por exemplo, a idade da reforma deverá estar associada à esperança de vida saudável e não à esperança de vida”. Mas para que tal aconteça, é necessário prepararmo-nos para as nossas vidas mais longas em idades cada vez mais jovens. Como argumenta de forma algo polémica, mas lógica em termos de futuro, em vez de concentrarmos os recursos no apoio aos idosos, temos de ajudar os jovens a tornarem-se os idosos mais saudáveis de sempre.

Uma outra das ideias que defende no livro é a de que “se a esperança de vida continuar a aumentar, mas a esperança de vida saudável e a produtividade também aumentarem, não há necessidade de aumentar a idade da reforma”.

Para o especialista em longevidade, se a duração da vida está a ultrapassar a duração da saúde, precisamos realmente de encontrar formas de nos mantermos mais saudáveis durante mais tempo. E se estamos a viver mais tempo, trata-se de uma aritmética económica muito simples. “Se não quisermos assistir a uma queda no nosso nível de vida, temos de produzir mais. Pode ser que a IA nos resolva esse problema e nos tornemos tão produtivos que não precisemos de trabalhar mais tempo, mas se isso não acontecer, vamos ter de o fazer ou seja, vamos precisar de produzir mais se quisermos ter o mesmo nível de vida. Mas isso não significa que tenhamos de trabalhar da forma como o fazemos atualmente”.

Scott descreve também como o prolongamento da vida cria oportunidades e responsabilidades. As sociedades, as empresas e os governos terão todos de fazer mudanças, mas o desafio, afirma, não é o facto de termos de lidar com mais pessoas idosas no futuro – é o facto de termos de nos preparar hoje para a possibilidade de vivermos mais tempo. Como afirma, “não estruturámos uma vida, não temos instituições sociais, não temos planos financeiros, não temos planos de poupança, não temos planos de educação, não temos normas sociais que nos encorajem a envelhecer bem. E isso é o mais importante”.

No seu livro, Scott identifica os “quatro cavaleiros do apocalipse” como sendo vidas mais longas, menos crianças, populações em declínio e os idosos em maior número do que os jovens. Mas diz que há razões para olhar para isto com otimismo. Assim, de que mudança de mentalidade precisamos?

Para o autor, o conceito de uma sociedade envelhecida é, de facto, um tema negativo. Como afirma, ninguém se entusiasma com o envelhecimento. “É uma palavra de que cada vez mais ninguém gosta. Passa-se logo para o lado da desgraça e do desânimo”.

Se em média estamos a viver mais tempo e somos mais saudáveis durante mais tempo, isso parecem ser boas notícias, defende.  “Como é que transformámos viver mais tempo e com mais saúde numa história de más notícias?”, questiona. Apesar de existir um problema grave com a demência [a prestação de cuidados] e com as pensões, temos de mudar a forma como encaramos a velhice.

“Não podemos subestimar a capacidade das pessoas mais velhas. Sempre subinvestimos na velhice. Por isso, não chegamos lá com as competências, o objetivo, os recursos e a saúde de que precisamos. Isso fazia sentido quando 5% das pessoas chegavam aos 90 anos. Mas quando 50% das pessoas chegarem aos 90 anos, temos de começar a preparar-nos”.

Sem dúvida.

Imagem: © Hector Reyes/Unsplash.com

Editora Executiva