A Responsabilidade Social Corporativa (RSC), pelo menos na narrativa em voga, não é – a meu ver – um sinónimo do respeito pela dimensão ética da actividade empresarial, ou da necessidade de amenizar o implacável “rottweiler capitalism”, coisa com que estou evidentemente de acordo. É, sim, em muitos casos, uma visão miópica ou esquizofrénica da economia empresarial
POR PEDRO FERRO

Há cinquenta anos, num artigo famoso, maldito e abusivamente aplicado,1 Milton Friedman sustentou vigorosamente que «existe uma – e uma só – responsabilidade social da empresa: usar os seus recursos e desenvolver actividades visando aumentar os seus lucros, desde que permaneça dentro das regras do jogo, ou seja, em competição aberta e livre e sem engano ou fraude», nos termos «da lei e dos padrões éticos vigentes».2 Tratar-se-ia de uma “maximização sujeita a restrições” substanciais. Tomarei esta tese – interpretada benevolamente e com certa liberdade – como ponto de partida, até porque contém algo de certeiro (embora não tudo).

A ideia de base é que a actividade empresarial tem uma lógica económica fundamental e, consequentemente, uma racionalidade própria, associada a incentivos e critérios de eficiência e optimização, na afectação de recursos a finalidades alternativas. Ao mesmo tempo, a empresa é – também fundamentalmente – uma actividade humana e uma organização de pessoas: como tal, em si mesma, precisamente por ser um empreendimento humano e uma instituição social, deve ser «eticamente estruturada e institucionalizada».3 Isso faz parte das “regras do jogo”. A empresa tem uma racionalidade económica própria, mas não é «intrinsecamente neutra nem de natureza desumana e antissocial».4 Não precisa de ser humanizada por adição de uma “responsabilidade social” extrínseca; como se para ter um “rosto humano” precisasse de maquilhagem, de modo a embelezar artificialmente a sua natureza. No seu próprio core business, a empresa tem uma bondade ontológica, por assim dizer, e uma inerente função social: gera e distribui riqueza; oferece produtos ou serviços – livremente adquiridos no mercado – que satisfazem necessidades reais, e como tal são avaliados pelos clientes; emprega, valoriza e remunera pessoas e capitais; faz e amortiza investimentos; desenvolve tecnologias e promove inovações; contrata fornecimentos externos e constrói cadeias de valor; dinamiza a economia; paga impostos… Tudo isto contribui para o bem comum: traz benefícios para a sociedade em geral e, em particular, para as pessoas mais desfavorecidas, se tudo correr normalmente. Nestes termos, a primeira obrigação moral, a principal “responsabilidade social”, a mais importante maneira de impactar o bem-comum, a mais nuclear e específica forma de estar “doing good”, o modo mais eficaz de elevar a “base da pirâmide”, e o mais honesto, nobre, sóbrio e consistente “purpose” da empresa é a sua continuidade – a sua sustentabilidade bem entendida – e, portanto, o foco na lucratividade e criação de valor, no médio-longo prazo: por outras palavras, “doing well”.

Sendo a empresa uma actividade humana, tudo isto pressupõe, inclui e exige – radicalmente, desde dentro – que lida com empregados, fornecedores e outras partes interessadas com humanidade, respeito e honradez. Para reconhecer a dignidade intrínseca das pessoas (que não podem ser tratadas apenas como meios ou factores de produção), para conceder sentido e estatuto ao seu esforço e trabalho, para considerar que as pessoas valem mais do que as coisas (e têm prioridade sobre elas), ou para recordar que elas têm família, não é necessária qualquer “responsabilidade social” exógena; basta a justiça, basta o respectivo sentido de responsabilidade pessoal. Do mesmo modo, ao negligenciar investimentos pela obsessão de obter lucros no curto prazo, ao ludibriar clientes ou esmagar fornecedores, ao abusar do poder de mercado ou explorar uma posição negocial leonina, ao furtar-se a compensar a comunidade relevante pelas externalidades negativas da sua actividade (mesmo se a coberto da lei), a empresa não está a “criar valor para o accionista” ao arrepio da sua “responsabilidade social”: está simplesmente “doing badly” por estar “doing evil” (não na acepção proverbial de que “a ética compensa”, mas no sentido de que a ética é um elemento estruturante da acção humana e, portanto, da actividade empresarial).

Daqui se depreende que a Responsabilidade Social Corporativa (RSC), pelo menos na narrativa em voga,5 não é – a meu ver – um sinónimo do respeito pela dimensão ética da actividade empresarial, ou da necessidade de amenizar o implacável “rottweiler capitalism”,6 coisa com que estou evidentemente de acordo. É, sim, em muitos casos, uma visão miópica ou esquizofrénica da economia empresarial. Presume que a forma principal de “criação de valor para a sociedade” ao dispor das empresas é algo que está à margem do seu objecto social, produtivo e comercial, como se este não fosse já socialmente impactante e valioso em si mesmo.7 Nestes termos, a legitimidade do capitalismo, do lucro e da própria empresa dependeria da sua contribuição para outros supostos “fins sociais”. No fundo, os negócios seriam uma actividade moralmente suspeita, que deveria ser revestida pelo cândido manto da RSC para granjear honorabilidade e eticidade. Ora, o lucro – em geral – é simplesmente a remuneração (justa e socialmente necessária) do risco, inovação e energia empresarial. É ainda um indicador – nos pressupostos referidos acima – de que a empresa cumpre a sua responsabilidade primária perante a sociedade.8

Aliás, não faltam exemplos de empresas credenciadas como socialmente responsáveis, sustentáveis ou inclusivas – empresas que ganham prémios a esse título, figuram nos primeiros lugares dos respectivos rankings, exibem altissonantes e impecáveis “declarações de missão”, ostentam certificações éticas e ambientais, e desenvolvem generosos programas filantrópicos – e que, ao mesmo tempo, abusam do seu poder oligopolista, e incumprem gravemente as mais elementares obrigações perante empregados, clientes, fornecedores, concorrentes (e até accionistas), sendo que algumas delas foram mesmo protagonistas de escândalos fiscais e financeiros com enorme prejuízo social. Isto não acontece por acaso nem é simplesmente resultado da debilidade moral da espécie humana (embora também). Isto verifica-se porque a “ética empresarial” subjacente é artificial e postiça: não está embutida ou impregnada no metabolismo da própria organização.

É sabido que a teoria segundo a qual, num sistema de livre concorrência e liberdade de escolha, a prossecução do valor máximo para o accionista proporciona os melhores produtos aos melhores preços, optimiza o emprego e gera inovação, crescimento e riqueza que pode ser depois utilizada (pelos accionistas) para os fins mais nobres, desembocando automaticamente no bem comum, no médio-longo prazo, é uma bela, conveniente e reconfortante teoria.9 Na vida real, a concorrência é sempre imperfeita, a liberdade é frequentemente assimétrica, tal como a informação, os mercados são incompletos, os seus efeitos não são sempre óptimos ou justos, e o longo prazo pode demorar muito tempo. Este sistema – como qualquer outro cometimento humano – requer ajustamentos prudenciais e não dispensa o reforço legal e o esforço moral, para repor a sua eficiência e lhe agregar um mínimo de equidade.10 Mas isso não significa que a lógica da livre empresa (com ânimo de lucro) e o mecanismo dos preços que lhe está associado, bem como a conexão entre a propriedade e o interesse próprio dos accionistas, que desencadeiam o ímpeto empreendedor, não constituam, mesmo assim, a mais credível promessa de dinamismo e prosperidade, para todos, relativamente às teorias e práticas alternativas, também elas imperfeitas.11 Com efeito, apesar dos acidentes e da maldade humana, aquela teoria tem retirado milhões de pessoas da miséria, e voltou a fazê-lo no espaço da última geração.

1 Cf. The Economist, “Briefing. Corporate purpose”, Aug 22nd 2019, p. 17.

2 Cf. Milton Friedman, “The Social Responsibility of Business is to Increase its Profits”, The New York Times Magazine, September 13, 1970. A frase inicial é uma citação do livro de Friedman Capitalism and Freedom, de 1962.

3 Cf. Bento XVI, Caritas in Veritate, nº 36.

4 Idem.

5 A definição de RSC não está estabilizada (cf. Stefano Zamagni, “The Ethical Anchoring of Corporate Social Responsibility and the Critique of CSR”, in Martin Schlag and Juan Andrés Mercado (Eds.), Free Markets and the Culture of Common Good, Springer, 2012, p. 191). Haverá versões dessa teoria que constituem desenvolvimentos positivos e com as quais eu poderei estar de acordo. O conceito que tenho em mente neste ensaio – que espero venha a ficar claro –, prende-se com a extensão da responsabilidade das empresas a esferas sociais que não estão directamente relacionadas com o seu objecto social, associada a um certo desgosto pela economia de mercado.

6 Expressão tomada emprestada de Paul Collier, em The Future of Capitalism: Facing the New Anxieties, Penguin, 2019.

7 Para uma posição contrária, ver Filipe Santos, “Empresas e Responsabilidade Social”, em Maria do Céu Patrão Neves e João César das Neves (Coords.), Ética Aplicada: Economia, Lisboa: Edições 70, 2017, pp. 243-267, passim. Para uma visão equilibrada, embora também ligeiramente diferente da minha, ver João César das Neves, “Cap. 7. Responsabilidade Social”, Introdução à Ética Empresarial, Principia2014, pp. 411 ss.

8 Michael Porter tem sugerido uma abordagem diferente em torno do conceito de “shared-value – à relação entre a “responsabilidade social” e a performance económica das organizações. A sua ideia é que as preocupações ambientais e societais devem ser vistas não como restrições mas como oportunidades de crescimento, lucratividade e vantagem competitiva, capazes de gerar valor social e maximizar o valor para o accionista, simultaneamente. Isso implicaria que essas questões fossem integradas no modelo de negócio e no posicionamento estratégico nuclear das empresas, de modo singular: criando novos produtos que respondam às necessidades sociais emergentes ou descobrindo novos segmentos de mercado; aumentando a eficiência operativa ou a produtividade de funcionários e fornecedores; e investindo para melhorar o ambiente de negócios ou o cluster industrial nas regiões onde a empresa opera (Cf. Porter, Serafeim and Kramer, “Where ESG Fails”, op. cit.). Esta posição permite evitar o divórcio, acima aludido, entre o impacto social e a actividade empresarial normal, e possibilita também distinguir a criação de valor económico real, através de iniciativas com impacto social, do mero “window dressing” empresarial e da mera gestão de reputação. No entanto, essa abordagem não realça suficientemente que o sentido de responsabilidade e a justiça não são facultativos, nem justificados apenas quando incorporados em estratégias lucrativas no longo prazo, e que o “doing good” está incluído no “doing well”.

9 Cf. The Economist, “Corporate purpose”, p. 17.

10 Cf. Kenneth J. Arrow, “Social Responsibility and Economic Efficiency”, Public Policy, 21, 1973, passim. Suponho ser evidente que o conceito de “responsabilidade social” de Arrow, está muito longe do actual.

11 Aliás, as versões mais rebuscadas da stakeholder theory – como a inspirada em Rawls – não podem reclamar um nível menor de abstracção e desencarnação. De resto, do ponto de vista conceptual, a abordagem rawlsiana – e os seus critérios de justiça, consenso, reciprocidade, etc. – tem os seus problemas, mesmo no campo político (para o qual foi concebida). A sua aplicação à ética empresarial é ainda mais problemática. A “cooperação social” implicada na sociedade política e na empresa são muito diferentes. Para uma opinião contrária, ver Zamagni, “The Ethical Anchoring …”, pp. 194 ss.

Pedro Ferro, Professor da AESE e Director do Programa de Alta Direcção de Empresas