Para iniciar o seu novo ciclo de debates para 2020, dedicado ao tema “Lideranças e Organizações com Propósito”, a ACEGE convidou Filipe Santos, professor de Empreendedorismo Social e Director (Dean) da Católica-Lisbon. Na sua intervenção, Filipe Santos partilhou a sua ideia de propósito, tanto a nível pessoal como organizacional: “é a criação de uma unidade em tudo o que fazemos, é dar o nosso melhor em prol de algo que nos supera, é um bem que, por ser comum, nos desafia”, afirma
POR HELENA OLIVEIRA

Começando por afirmar que o tema do propósito se encontra na crista do momento, estando a ser reflectido por muitos, mas sem integrar ainda um guia de acção muito claro, Filipe Santos considera que “a tarefa de colocar o propósito no centro do nosso trabalho enquanto líderes de organizações – mas também na nossa vida – é algo que cada um tem de encontrar, a nível individual, mas também com os outros”.

O tema, como diz, fala-nos a diferentes níveis: ao nível individual, pessoal, e ao nível da organização a que pertencemos, seja uma escola, uma associação, uma grande empresa, nacional ou internacional, e até de um país, “atrevendo-se” a dizer que na altura em que Portugal esteve no seu melhor, encontrou um propósito maior do que si próprio, e teve uma acção surpreendentemente maior do que a sua pequena dimensão. “Penso que é isso que o propósito nos traz: é a criação de uma unidade em tudo o que fazemos, é dar o nosso melhor em prol de algo que nos supera, é um bem que, por ser comum, nos desafia”, afirma.

O especialista em empreendedorismo social dividiu a sua apresentação em duas partes, optando por partilhar com a audiência um pouco da sua história pessoal e de como o propósito influenciou a sua carreira – por que é que um académico lança projectos de empreendedorismo social, vai para a política pública e depois regressa ao ensino – e, de seguida, de que forma é que o propósito está a entrar na agenda empresarial e quais são as principais novidades e desafios deste tema com importância crescente.

Sou apaixonado pelo conhecimento e pelo ensino”

“Em termos pessoais, e acho que sem o saber, sempre procurei um propósito na minha carreira”, declarou o actual director da Católica-Lisbon. Ao se apresentar como uma apaixonado pelo conhecimento e pelo ensino ou, como diz, “por compreender a realidade e partilhá-la”, diz acreditar muito e igualmente na acção, no empreendedorismo e na inovação, e que ao “cozinhar estes diferentes elementos”, pensou que gostaria de seguir uma carreira académica em empreendedorismo e inovação e contribuir para o desenvolvimento do empreendedorismo na Europa. E se bem o pensou, melhor o fez. Em 1998 ruma aos Estados Unidos, para Stanford, o centro do empreendedorismo de Silicon Valley, onde faz o seu doutoramento “a aprender com os empreendedores e a analisá-los”, regressando depois à Europa “porque é o meu valor identitário” e porque esta estava também menos desenvolvida em termos de empreendedorismo. Em 2003, junta-se ao INSEAD, exactamente como professor de Empreendedorismo, onde esteve vários anos a adorar a experiência. Contudo, sentia que “faltava qualquer coisa”, em particular quando via a onda de empreendedorismo que começava também a varrer a Europa. Não se contentando em ser mais um entre 30 ou 40, Filipe Santos sentia que “gostava de ter um contributo maior, um impacto maior e de fazer a diferença”. E foi no INSEAD que conheceu vários empreendedores sociais, entre os quais alguns portugueses, como Miguel Alves Martins e o saudoso Manuel Forjaz”. E pensou o quão estranho era – e diferente daquilo que ensinava – estar perante um grupo de pessoas com um conceito diferente de empreendedorismo, “que criam novas soluções, olhando para um problema da sociedade, que não procuram necessariamente o lucro, mas antes a sustentabilidade da sua actuação e que querem criar valor para todo o ecossistema e não só para si próprios”.

Apesar de perceber que esta abordagem fazia todo o sentido, percebeu também que a mesma estava ainda muito negligenciada. E “quando se encontra um tema negligenciado, que faz todo o sentido abordar, resolver ou contribuir, encontra-se, de certa forma, o propósito”, diz. Pensando em tudo o que já tinha aprendido até então, considerou que o enfoque neste segmento faria todo o sentido, na medida em que era fundamental para a sociedade ter mais pessoas com esta vontade de empreender para o bem comum, em particular se este fosse disseminado, pois o resultado seria uma sociedade muito mais resiliente, um capitalismo mais consciente – outro tema que está igualmente a ser muito abordado – sentindo que este poderia ser o futuro e descobrindo que era “isto” que queria fazer.

Na altura, reorientou toda a sua investigação, as suas aulas, todo o trabalho que fazia no INSEAD e foi “pelo mundo fora” lançando conferências sobre empreendedorismo social, em lugares tão díspares como o Brasil, a Tailândia ou Madrid, acabando por realizar o primeiro congresso sobre o tema em Portugal, em Cascais, em 2007. Apesar de nem toda a gente perceber as suas escolhas, Filipe Santos sabia que o caminho fazia sentido e foi assim que o percorreu. “A certa altura pensei que, vindo do INSEAD, conseguiria ter um papel importante em Portugal e a verdade é que criámos um conjunto de projectos na área do impacto social, o que resultou no facto de termos hoje um ecossistema de inovação social muito forte, com projectos e pessoas excepcionais e acreditando que o nosso país ainda vai dar muitas cartas nesta área no futuro”.

E o que aprendeu com esta experiência? “Ao olharmos para quem somos, para os valores, competências e forças que temos, e ao encontrarmos uma área que achamos muito importante e para a qual podemos contribuir, na qual podemos fazer a diferença, essa mesma diferença impele-nos a trabalhar o triplo a mobilizar todos os nossos recursos em prol desse objectivo, o que é, de certa forma, o que o propósito faz, numa pessoa ou numa organização”, explica.

Propósito, lucro e o choque cultural

Falando seguidamente do propósito em termos empresariais, Filipe Santos optou por dar um passo atrás e traçar uma breve perspectiva histórica deste movimento. A seu ver, existiu um conjunto de factores que convergiu nos últimos anos e que, em particular em 2019, acabou por ter um grande desenvolvimento. O responsável pela Católica-Lisbon recordou a famosa carta de Larry Fink, CEO da BlackRock, a maior empresa de gestão de activos do mundo, na qual, há dois anos, se expressou sobre “propósito e lucro”, afirmando que não faz sentido as empresas procurarem um lucro se não tiverem um sentido de propósito, pois essa procura será de curto prazo e destrutiva a médio e longo prazo. Na mesma carta, Fink recomendava a todos que pensassem nos fundamentos do propósito nas suas organizações, em todos os stakeholders, alertando igualmente que, caso não o fizessem, se não orientassem a sua estratégia e iniciativas neste sentido, não contassem com o seu investimento nas mesmas. De acordo com Filipe Santos, tal representou “um choque cultural em relação à premissa da maximização do valor para o accionista e dito por quem investe em recursos de longo prazo” e “criou uma onda de impacto, ‘apanhada’ também pelos CEOs que representam a Business Roundtale, com cerca de 180 senhores das maiores empresas públicas norte-americanas a assinar uma declaração que dizia “nós reconhecemos a importância de atender às necessidades de todos os stakeholders, e não só dos accionistas, e portanto comprometemo-nos a olhar para o bem-estar dos nossos colaboradores, das nossas comunidades, dos nossos fornecedores e do ambiente na nossa actuação”. “Mas quais são as diversas fases do propósito nas organizações, o que significa esta mudança e como é que agimos sobre a mesma?”, questionou.

Olhando para a perspectiva mais histórica, Filipe Santos afirma que tanto em Portugal como na Europa, sempre existiu esta abordagem mais inclusiva de todos os stakeholders, com empresas – em particular as de cunho familiar – que não se limitavam a olhar para o lucro de uma forma de curto prazo ou restrita, mas apostavam antes na criação de valor e na criação de emprego, em prol do desenvolvimento das suas comunidades. Recordando que, nos anos 70 e 80, a ideia emergente do valor para o accionista ganhou força e predominância, tendo sido importada depois para a Europa Continental, o director da Católica-Lisbon considera que, por vezes, as sociedades não fazem as coisas por acaso e quando criam uma nova forma de gerir, têm uma razão para o fazer. Na altura, explica “a razão era a de que havia muitas oportunidades, mas os recursos financeiros eram, apesar de tudo, escassos. Depois da enorme destruição de riqueza que se seguiu à segunda guerra mundial, as décadas seguintes foram de recuperação, mas os elementos do sistema financeiro e as poupanças acumuladas que poderiam permitir investir em todos os projectos não eram muitas, havendo, portanto, pouco capital”.Ou seja, na altura, o dinheiro era um recurso escasso e o sistema económico reorientou-se para dar importância a este recurso escasso – o capital – para permitir que o mesmo fosse utilizado o melhor possível nas áreas onde produzia mais valor. Sendo que o lucro era, de certa forma, um objectivo contabilístico ou a criação de valor de determinada empresa ou projecto.

“No fundo, são as receitas que o projecto tem menos os custos dos recursos que utiliza e, portanto, o lucro é uma medida aproximada da criação de valor”, acrescenta. “Mas e o que se passou então?”, questiona ainda. “Esta proxy é um indicador e quando a pessoa olha para a proxy como objectivo final, em vez de olhar como um indicador, começa a limitar a sua actuação. E quando todo um sistema se organiza com um objectivo muito restrito e elementar, acaba por perder todo o potencial que está à volta”, assegura.

Assim e de seguida, o sistema financeiro começou a desvirtuar-se e Filipe Santos considera que a crise de 2007-2008 foi um “acordar”. Como explica: “nós achávamos que íamos suportar alguns custos que o capitalismo, pela boa alocação dos recursos, trazia para a economia; mas depois verificámos que, em vez dessa boa alocação de recursos, estava a haver uma desvirtuação da mesma e que teríamos de repensar o modelo. Penso que já existiam sinais disso no início dos anos 2000 e era claro que, nessa altura, o sistema já não estava a funcionar como gostaríamos”.

Em simultâneo, continua, “começámos a testemunhar um conjunto de desafios sociais mais abrangente e -se a desafiar, cada vez mais, a ideia do valor para o accionista. E começou-se então a falar da gestão de todos os stakeholders, sendo essa agora a tónica dominante e o motivo devido ao qual os CEOs da Business Roundtable assinaram a declaração do stakeholder management que, no fundo, é um assumir de uma transição de ciclo”.

A gestão de stakeholders nunca me satisfez enquanto modelo de gestão”

Discorrendo sobre o stakeholder management e afirmando que quando existem múltiplos objectivos, “as coisas podem tornar-se confusas e mais políticas”, o professor de Empreendedorismo Social afirma que este modelo não o satisfaz, pois o que faz uma organização que tem de atender a todos os stakeholders? Quem é que tem voz nesse diálogo, nessa conversa? Quem é que tem representação? Das várias questões, o que acontece ou pode acontecer “é que a gestão para stakeholders se torna uma gestão de interesses particulares muito corporativa: eu represento os trabalhadores e quero receber o máximo para os trabalhadores ou eu represento os accionistas e quero receber o máximo para os accionistas, ou seja, todos tentamos ter mais influência para receber mais dos recursos da organização”.

E a sua insatisfação com este modelo prende-se com um conjunto de factores. Por um lado, “porque torna a gestão muito política, ou seja, quanto é que eu ganho para mim ou como é que consigo pressionar para ganhar mais para mim e para o grupo que represento; por outro, se falta um propósito maior, se falta um objectivo comum que todos tentamos alcançar em conjunto, a conversa é como é que dividimos o que temos; e o terceiro factor está relacionado com aqueles que não têm voz, aqueles que não estão sentados à mesa, que não são os stakeholders chave, mas que podem ser os que sofrem os efeitos negativos da organização ou os que podem beneficiar dos seus efeitos positivos, mas ninguém está a pensar neles, como acontece nos fenómenos de exclusão social ou com o planeta, que não tem voz”, explica ainda. A seu ver, o que acaba por acontecer muitas vezes é que existem pessoas que começam a representar quem não tem voz, mas com demasiada ideologia nessa representação, o que resulta em perder um bocadinho a sensatez. “Estou a pensar em algumas associações ambientalistas, por exemplo, que querem defender o planeta, mas que acabam por perder a razoabilidade, porque a ideologia suplanta-se à análise fundamentada dos factos”, exemplifica.

Ajustar a estrutura organizacional e os incentivos para orientar as pessoas a alinharem-se com o propósito é o desafio”

Falando ainda sobre a sua insatisfação face ao stakeholder management, Filipe Santos afirma que a declaração assinada pelos CEOs da Business Roundtable lhe parece, e desta forma, um compromisso com um modelo que já está desactualizado. “Nós devíamos estar a pensar no modelo que vem a seguir, que é o que nos serve melhor enquanto sociedade e enquanto empresa”, declara, acrescentando que o mesmo é aquele que é orientado para a questão do propósito. E como explica a sua noção de propósito? “É olhar muito para além do mercado, da organização ou até da cadeia de valor e pensar quais são os desafios do sistema em que me insiro – ou onde a organização se insere – quais os desafios principais que esse sistema está a sofrer ou vai sofrer e como é que eu, dado as competências e valores que tenho enquanto organização, posso contribuir para a melhoria desse sistema no qual me insiro”, diz. “Esse exercício aponta-nos o caminho para as áreas importantes do futuro e quando uma organização aponta a sua estratégia para as áreas importantes do futuro, está a criar espaço para criar valor, ou seja, espaço para onde vai estar a criação de valor no futuro”, remata.

“E como é que podemos, no nosso dia-a-dia, desafiarmo-nos pelo propósito para repensarmos a nossa organização?”, questiona o orador. Apesar de confessar não ter respostas claras, Filipe Santos acredita que um ponto de partida será fazer um equilíbrio entre o interno ou o externo. Ou seja, perceber, enquanto organização, quem somos, quais são os valores e competências que nos caracterizam, bem como aos nossos colaboradores; definir o ecossistema onde queremos estar, que deve ser todo o que está à volta do mercado que servimos, e pensar quais são os seus desafios, o que não está feito e o que se pode fazer, o que é negligenciado e como se vai reorientar as actividades para conseguir cumprir este desígnio que vai mobilizar toda a organização e que a tornará mais focada, produtiva e com um maior envolvimento por parte de todos.

“Se eu pensar como é que contribuo para um propósito maior e se, enquanto líderes, conseguirmos dar esse mesmo propósito a quem trabalha connosco, a diferença que isso poderá fazer é gigantesca”, sublinha. “E depois é um caminho de estratégia onde o desafio é ajustar a organização: os trabalhadores podem, individualmente, perceber esse propósito, a liderança poderá estar imbuída desse propósito e comunicá-lo, mas se não se alterarem os incentivos e as estruturas organizacionais, a burocracia e o dia-a-dia acabarão por matar estas ideias”, acrescenta. Ou, e em suma, como é que conseguimos ajustar a estrutura organizacional e os incentivos para orientar as pessoas a alinharem-se com o propósito é o desafio. “E é também um tema que temos de estudar mais de perto”.

Como assumimos a responsabilidade? No nosso propósito.”

De regresso a um tom mais pessoal, Filipe Santos propõe-se, no final da sua intervenção, a partilhar com a audiência de que forma, e enquanto líder da Católica-Lisbon, está a pensar no propósito da organização. Falando da influência que as escolas de gestão têm na sociedade, na medida em que é delas que irá sair a actual e futura geração de líderes, porque se posicionam em meios influentes para criar políticas públicas, porque podem informar e inspirar a gestão e têm um potencial de contributo que é muito superior à sua dimensão, o director sublinha que a sua responsabilidade é enorme e que a forma de a assumir é através do propósito.

Definindo as três áreas por excelência em que está a trabalhar – knowledge, learning e impact – o actual dean da Católica-Lisbon explica quais são os seus planos.

Começando pelo knowledge, e apesar do “conhecimento académico e científico fenomenal no âmbito dos professores”, Filipe Santos afirma que existe uma oportunidade de criação de valor através do conhecimento que devia ser explorada de forma mais aprofundada. Assim, e para este objectivo, “estamos a criar um conjunto de centros de excelência para cada tema-chave da sociedade do futuro – o responsible business, a questão da transformação digital, o consumer well-being – que sejam o ponto de referência e comunicação das nossas competências, ou seja, uma abordagem através do conhecimento”.

Já o learning aborda a forma como se transformam os modelos de aprendizagem face à nova realidade, estejamos a falar da aprendizagem continua (lifelong learning) ou da aprendizagem digital, em que “os programas não acabam, têm continuidade” e também do “action learning”, pois “não se aprende na aula, aprende-se fazendo, e portanto temos de dar as ferramentas e envolver as pessoas em projectos”, sendo este tipo de iniciativas que estão a ser abordadas na transformação do ensino.

Por último, a questão do impacto. “O poder de convocatória e de mobilização de uma business school devia chamar-nos a exercer essa influência e de juntarmos as diferentes forças – o sector privado, o sector público e o sector social – em prol de projectos e iniciativas que vão ao encontro e que ajudem a resolver os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável”, afirma. E acrescenta: “o que estamos a fazer é criar um conjunto de iniciativas de parcerias para o impacto – de que é exemplo, a breve trecho, o Water Summit, mas também o tema da empregabilidade de pessoas de meia-idade, o tema do empowerment das mulheres – ou seja, ajudar a desenvolver iniciativas e projectos que desenvolvam esta agenda de impacto na sociedade”, diz.

“E esta é a forma como estou a tentar definir e a implementar o propósito da escola. É um caminho que está a iniciar e que terá muito desenvolvimento, mas não é, como em qualquer organização, um caminho fácil”, conclui.

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