POR HELENA OLIVEIRA
Fundada em 1929, a revista Fortune iria para as bancas, pela primeira vez, em Fevereiro de 1930, em plena Grande Depressão. Com o preço de um dólar, uma base inicial de 30 mil assinantes, a primeira edição da revista teria 184 páginas e, sete anos passados, contava já com uma base de 460 mil leitores e meio milhão de dólares em lucros anuais. Conhecida e reconhecida pela profundidade dos seus artigos lança, em 1955, o talvez mais famoso ranking do mundo – o Fortune 500 – que lista, desde então, as mais lucrativas empresas do planeta, numa espécie de ode ao capitalismo bem-sucedido.
Todavia, e como mudam os tempos e também as vontades, a famosa revista norte-americana não deixou de seguir as tendências do “mundo moderno” e, 60 anos depois da sua estreia na hierarquização do poder empresarial, publica, pela primeira vez, a lista das empresas que (melhor ou mais?) “mudam o mundo”. Para além da não originalidade do título que escolheu para este ranking – Change the World -, no qual constam 51 empresas, o editorial explicativo dos motivos que levaram a Fortune a enveredar pelas denominadas “novas formas de capitalismo” e estimar o valor das empresas de acordo com critérios não financeiros parece representar um esforço “abusivo” relativamente à pertinência deste ranking. Como explicou ao programa televisivo CBS This Morning, uma das editoras da revista, “temos vindo a reparar numa enorme mudança no capitalismo, o qual está sob ataque, para um capitalismo consciente ou ‘preocupado’”.
No mínimo, esta “tomada de consciência” é um bocado tardia. E continua: “as empresas estão a começar a ir mais longe e a tentar, realmente, resolver os problemas do mundo. E isto não é filantropia. Não estamos a declarar que estas empresas são 100% ‘de ouro’, mas a verdade é que estão ter um efeito mensurável em tornar o mundo melhor”.
Mais uma vez, a ideia que dá é que a Fortune acordou agora para uma realidade que já existe há uns bons anos e, apesar de mais valer tarde do que nunca, os seus próprios argumentos não são facilmente compreensíveis à luz do que parece representar este ranking. Considerados quatro critérios – o grau de inovação no negócio em causa, o impacto mensurável em termos de escala ou de um importante desafio social, o contributo das actividades de valor partilhado para a rentabilidade da empresa e para a sua vantagem competitiva e o significado dos esforços de valor partilhado para o negócio na sua totalidade – a Fortune escreve ainda que esta lista não deve ser encarada como um ranking da “bondade” generalizada das empresas ou da sua “responsabilidade social”, na medida em que essa tarefa “está para além da nossa competência”.
Uma última questão que merece também ser divulgada: o ranking foi feito em estreita parceria com o FSG, o think tank/consultora liderado por Mark Kramer e Michael Porter, os mesmos que inauguraram o conceito de criação de valor partilhado em 2011 (um movimento bem-sucedido e meritório que o VER tem vindo a acompanhar e sobre o qual fez um dossier especial) e também pela própria Shared Value Initiative (da qual ambos os autores fazem, obviamente, parte). Apesar de serem várias as empresas aderentes a este novo modelo de responsabilidade social, mais alargado, que o estão a cumprir com sucesso, e pese embora o facto de a própria Fortune afirmar que a responsabilidade final das empresas listadas (entre cerca de 200 candidatas)ter cabido aos editores da revista, com tantos outros modelos que estão também a ter resultados positivos e bem visíveis, talvez o ranking pudesse ter incluído outras empresas, ao mesmo tempo que a própria Fortune poderia ter explicado melhor a metodologia utilizada para a classificação das que o integram.
Todavia, as 51 eleitas conferem já um cenário promissor e incluem exemplos, transparentes, de umas quantas que, devido a más práticas passadas (como é o caso da 37ª classificada, a Nike), foram obrigadas a redimir-se e a fazer esforços genuínos de mudança para o tal mundo melhor. Na medida em que o espaço não permite elencar todas as empresas do ranking, o VER seleccionou algumas que, pelo seu impacto a uma escala considerável, merecem ser (re)conhecidas, e não propriamente pelo lugar melhor ou pior que alcançaram no mesmo.
Tecnológicas sem fronteiras
Quando, em 2007, a britânica Vodafone e a Safaricom, no Quénia, se juntaram para criar uma plataforma de serviços financeiros móveis para todos aqueles que nunca imaginaram ser possível ter uma “conta bancária”, as expectativas não eram, de todo, elevadas. Apesar de muitos acreditarem que o M-Pesa era uma boa ideia – na medida em que permite às pessoas sem “registo bancário” utilizarem os seus telemóveis para poupar e transferir dinheiro, receber pensões e pagar contas –, foram poucos os que imaginaram que o serviço iria transformar muitas economias regionais. Em poucos meses, o seu número de assinantes explodiu e, na actualidade, são cerca de 17 milhões de pessoas, na África Oriental, na India, na Roménia ou na Albânia – muitas delas a integrar o sistema financeiro pela primeira vez – que utilizam o M-Pesa. “Revolucionário” é o adjectivo utilizado pelo economista do Banco Mundial, Wolfgang Fengler, para qualificar este serviço na Fortune, a qual colocou ambas as empresas no primeiro lugar do seu ranking. Actualmente, o dinheiro transacionado através deste sistema e que deixou de estar literalmente debaixo de muitos colchões, representa 42% do PIB do Quénia. E, para a Vodafone, o ganho reside numa lealdade total por parte dos clientes que o subscreveram.
Num outro plano completamente diferente, a Google ocupa o 2º lugar na lista pela sua “luta universal contra a ignorância”, por permitir o acesso aos seus vários milhares de milhões de utilizadores a informação variada e em 159 línguas, e de tal forma mudou o nosso mundo que “já é difícil pensar no mesmo antes da sua existência”, como escreve a Fortune, acrescentando ainda que mais do que uma ferramenta para mentes curiosas, a empresa representa igualmente um “trampolim para a colaboração académica, através do Google Scholar, que nivelou as torres de marfim e se transformou num guia espiritual para a ciência em modo “aberto”, em conjunto com o Google Translator, que “descodifica mil milhões de mistérios linguísticos por dia”. O Google Books e o Google Earth contribuem também para a eleição deste gigante como segundo classificado no ranking.
Enquanto “redes que servem o bem” (e também o mal, necessariamente), o Facebook (10º classificado) e o Twitter (41º) fazem também parte das empresas eleitas pela Fortune. O primeiro, enquanto expoente do poder da conectividade e do valor das comunidades e o segundo, especialmente pelo papel preponderante que teve na Primavera Árabe, em particular na Praça de Tahir, no Cairo, em Fevereiro de 2011. “Depois do Twitter, nenhuma revolução será igual”, escreve a editora da Fortune.
Também na área da tecnologia se destaca a Cisco, numa honrosa 8ª posição, enquanto pioneira de um movimento colaborativo entre o seu escritório em Israel e muitos jovens palestinianos com competências tecnológicas. Este esforço, já seguido por empresas como a Google e o Facebook, ajudou o sector das TI, a operar em regime de outsourcing, a crescer 64% entre 2010 e 2014 na região. Adicionalmente, a Cisco, que fornece a maior parte das infraestruturas de rede no Médio Oriente, investiu igualmente 15 milhões de dólares em incubadoras locais e em programas de formação para jovens. A área de formação para jovens é, aliás, o ponto de honra da empresa, a qual, desde 1997, e através do seu programa Cisco’s Networking Academy já formou 5,5 milhões de estudantes em todo o mundo, em quase todos os locais que não possuem sectores de alta tecnologia desenvolvidos. E qual o retorno do investimento para a própria Cisco? Uma extensa e cada vez maior pool de trabalhadores técnicos – e barata – e um pé firmado em dúzias de novos mercados.
Boas receitas para a saúde
Quando a Mosquirix, uma vacina desenvolvida ao longo de três décadas pela farmacêutica GlaxoSmithKline (GSK), foi aprovada em Julho último pela Agência Europeia de Medicamentos, uma grande vitória foi atingida. A primeira vacina do género – uma arma há muito esperada contra a malária, que atinge cerca de 200 milhões de pessoas anualmente e mata cerca de 600 mil, na sua maioria, crianças – reduziu, na fase dos testes clínicos, os casos de malária em 40%. Apesar de não ser ainda a varinha de condão que tudo resolve, representa um progresso significativo contra uma doença que não tem merecido a atenção suficiente por parte da esmagadora maioria das farmacêuticas. Talvez por isso, a GSK ocupe o 6º lugar no ranking da Fortune, com o bónus de o preço da vacina em causa ficar abaixo, em 5%, dos seus custos de fabrico, tornando a sua aquisição mais fácil por parte dos países mais pobres e que lutam diariamente contra esta arma mortífera. Adicionalmente, os lucros que dela resultarem serão reinvestidos na área de Investigação & Desenvolvimento em doenças tropicais da GSK. A Fortune sublinha ainda que outros potenciais ganhos – tanto empresariais, como científicos – resultantes de todo o conhecimento que a farmacêutica foi adquirindo ao longo de todos estes anos de pesquisa, serão aplicados a outros projectos, incluindo uma vacina para o herpes, tendo ainda a convicção e esperança de que a tecnologia e os avanços científicos colecionados neste longo caminho sirvam para serem aplicados a outras doenças complexas como a hepatite C ou o HIV.
Um caminho diferente, mas igualmente louvável, tem vindo a ser percorrido pela também farmacêutica Novartis (9ª classificada) que, desde 2006, delineou um plano arrojado para prover a Índia rural com medicamentos básicos para combater a diarreia, os parasitas, as deficiências nutricionais e as doenças respiratórias. Como escreve a Fortune, se do ponto de vista filantrópico a iniciativa já é, só por si, louvável, a Novartis quis ir mais longe e torná-la sustentável. Enfrentando vários desafios nas regiões em causa – ausência de educação para a saúde, escassez de médicos e canais de distribuição inexistentes -, a farmacêutica contratou numerosos profissionais da saúde para ali exercerem – os quais já trataram cerca de um milhão de pacientes desde 2010 – e para sensibilizarem as populações locais para a importância dos hábitos de higiene na prevenção de infecções. Trinta e um meses depois do lançamento do projecto Arogya Parivar (saúde familiar em híndi), não só a Novartis atingiu o seu breakeven, como o mesmo programa está a ser implementado também no Quénia, na indonésia e no Vietname.
De um outro sector, mas com o objectivo similar de melhorar as condições de saúde de populações vulneráveis, vem o iogurte Shokti-Doi, rico em nutrientes e que é servido, semanalmente, a cerca de 600 mil crianças no Bangladesh. Depois de abandonar por completo o negócio da “comida de plástico” em 2007, a francesa Danone tem vindo a reformular vários dos seus produtos (reduzindo os açucares e adicionando vitaminas) sem perder um cêntimo nas suas vendas. O Shoktu-Doi é um dos seus produtos por excelência e provém de uma parceria feita já há alguns anos com o Grameen Bank, do Nobel da Paz Muhammad Yunus, o qual ocupa também o 12º lugar neste ranking.
Chama-se Jain Irrigation Systems e a sua história remonta ao século XIX, quando uma família de agricultores abandonou o deserto em busca de água e comida e chegou à região de Maharashtra, na Índia, instalando-se em Ajanta, perto das famosas cavernas com pinturas rupestres de inspiração budista. Mas o verdadeiro negócio da Jain nasceria em 1986, com a venda de sistemas de micro-irrigação. Rapidamente a pequena empresa reconheceu que esta tecnologia, comummente utilizada na agricultura industrial, poderia ser adaptada para os pequenos agricultores da Índia rural, cujos ínfimos pedaços de terra eram tradicionalmente regados ou pelas águas da chuva ou por cheias abruptas. Posicionada em 7º lugar no ranking da Fortune, a Jain Irrigation Systems já melhorou, e consideravelmente, a vida de cerca de 5 milhões de pequenos agricultores na Índia, os quais, graças aos sistemas em causa, viram as suas colheitas aumentarem entre 50% a 300% (dependendo da cultura em causa). Complementarmente, a empresa indiana, que é a 2ª maior do mundo na venda destes sistemas de irrigação gota-a-gota, introduziu uma enorme variedade de novas e mais viáveis sementes e tem vindo a formar milhares de agricultores em novas técnicas agrícolas, muito mais produtivas. Na medida em que a electricidade é também um bem escasso em muitas destas zonas rurais, a Jain apostou igualmente na produção e comercialização de bombas de água accionadas por energia solar, no financiamento a pequenos agricultores e na área de processamento alimentar, abrindo novos mercados para inúmeras famílias que, de outra forma, se juntariam às longas fileiras de pobres existentes na gigantesca Índia. A empresa está agora presente em 116 países.
Pela sua dimensão e pelos gigantescos e reconhecidos esforços em termos de responsabilidade social e ambiental, a Unilever teria, forçosamente, de fazer parte deste ranking. Não sendo muito claro o motivo de ter ficado classificada num 28º lugar – quando, noutros rankings, ocupa sempre lugares cimeiros – a verdade é que enquanto líder mundial na área dos bens de consumo (é a 3º maior do mundo), a empresa responsável por uma gama variada de produtos que usamos em nossas casas tem vindo a percorrer um caminho digno de nota na área da sustentabilidade. Mais de metade dos materiais agrícolas por si utilizados são derivados de fontes sustentáveis e foram já 800 mil os pequenos agricultores, em várias partes de mundo, que foram formados para cultivar os seus produtos de forma responsável. Em 2009, o gigante empresarial decidiu acabar com a “ditadura” da emissão de resultados trimestrais como forma de orientação da sua estratégia (foi uma das primeiras empresas a fazê-lo) e, apesar da inquietação manifestada por vários dos seus accionistas, a empresa assegura que os seus produtos “mais sustentáveis” (incluindo os sabonetes da Dove e os gelados Ben & Jerry’s) são, actualmente, os seus principais motores de crescimento.
Mais bons exemplos em: http://fortune.com/change-the-world/
Editora Executiva