POR HELENA OLIVEIRA
“Não peço conselhos políticos nem aos meus bispos, nem ao meu cardeal nem ao meu Papa”
Jeb Bush, candidato republicano à presidência norte-americana
“A Igreja já errou muitas vezes no que à ciência diz respeito” e “(…) não concordo com a filosofia do Papa no que respeita ao aquecimento global (…) visto que as alterações climáticas são uma crença e não um facto científico”.
Senador James Inhofe, republicano, presidente do Comité Ambiental do Senado norte-americano
“O Papa devia limitar-se a fazer o seu trabalho, que nós sabemos fazer o nosso” e “é melhor deixar a ciência para os cientistas e concentrarmo-nos no que somos bons, que é a teologia e a moralidade”.
Rick Santorum, candidato republicano à presidência norte-americana [e apesar de o Papa ter recorrido ao conhecimento de muitos cientistas e respectivos estudos para escrever esta encíclica]
“Esta nova encíclica está a ser interpretada como um documento ‘anti-carvão’” (…) “e, no Vaticano, são muitas as vozes que se ergueram para definir esta encíclica como anti-Polónia”
Escreve o jornal polaco e conservador Rzeczpospolita [sendo a Polónia, uma das nações “mais católicas” da Europa, mas extremamente dependente da indústria do carvão].
O rol de críticas poderia continuar, tantos foram os políticos, empresários e “negacionistas” das alterações climáticas que se insurgiram com a recentemente divulgada encíclica do Papa Francisco “Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum”. O título, que significa “Louvado Sejas”, remete ao “Cântico das Criaturas”, de São Francisco de Assis, religioso que inspirou o Pontífice na escolha do seu nome e que é, também, mundialmente conhecido como o santo patrono do ambiente e defensor dos pobres. E, apesar de ter partes especificamente dedicadas aos crentes católicos – os quais, de acordo com o Papa, têm responsabilidades acrescidas no que respeita à interpretação – errada – de uma passagem na Bíblia, a qual faz referência ao “domínio” dos seres humanos sobre a Terra – e que tal não significa que aos humanos foi dada licença para “saquear” os seus recursos sem respeito pelos demais organismos vivos – é um apelo lançado a toda a humanidade que partilha esta “casa comum”.
Apesar de não ser o primeiro papa a alertar para questões ecológicas ou relacionadas com questões globais que a todos interessam – Francisco socorre-se de vários dos seus antecessores, desde João XXIII, Paulo VI, João Paulo II ou Bento XVI – é a primeira vez que uma encíclica é completamente dedicada ao “bem-estar do planeta”, apesar de a linha de pensamento expressa neste documento estar em absoluta consonância com as temáticas que mais tem defendido ao longo do seu ainda curto, mas “rico” percurso enquanto Sumo Pontífice: as desigualdades sociais e a pobreza.
A irritação que tem suscitado em variados contextos e respectivas elites não está apenas relacionada com o facto de ter escrito – e sustentado – que “numerosos estudos científicos indicam que a maior parte do aquecimento global das décadas mais recentes deve-se às elevadas concentrações de emissões de gases de estufa emitidas, sobretudo, pela actividade humana”, mas também pela crítica aberta que faz aos países ricos e desenvolvidos, os quais, com a sua cultura de consumo, exploram os países pobres. As ferozes críticas ao sistema económico que exacerba as desigualdades e causa a degradação ambiental é uma das mensagens mais fortes que consta na primeira encíclica ambientalista da história, a qual tem unido líderes religiosos de vários credos e que tem sido alvo de uma cobertura mediática mais significativa do que os inúmeros alertas que, desde há décadas, cientistas de todo o mundo têm vindo a divulgar na tentativa, até agora inglória, de convencer os decisores globais a tomarem verdadeiras medidas para estancar a crise que coloca em causa o futuro do planeta. Com religião e ciência de mãos dadas, é unânime a ideia de que “pode ser desta” que a crise climática e seus “sucedâneos” possam ser levados (mais) a sério.
O timing para a divulgação da segunda encíclica de Francisco [a primeira foi Lumen fidei] foi também bem escolhido (ou não, de acordo com as perspectivas). De acordo com notícias divulgadas pelo Vaticano, Francisco visitará os Estados Unidos em Setembro de 2015 e, espera-se, discursará na reunião especial que terá lugar na sede das Nações Unidas, com vista à adopção da nova agenda para o desenvolvimento e como preparação para a cimeira que terá lugar em Paris, em Dezembro, na qual se espera que, finalmente, um compromisso universal sobre o clima seja firmado.
A excepção à regra é personificada pela maioria dos republicanos no Congresso norte-americano, a qual continua a negar a existência das alterações climáticas e se opõe a qualquer regulação que implique cortes nas emissões de gases com efeito de estufa. Por exemplo e entre o ultra-conservador Tea Party, o cepticismo ou negacionismo atinge proporções epidémicas – cerca de 80% de acordo com dados do Pew Research Centre – a juntar às afirmações hilariantes – se não fossem tão graves – da indústria dos combustíveis fósseis. Por exemplo, o grupo lobista do Instituto Americano do Petróleo e a Peabody Coal garantem que os combustíveis fósseis constituem o caminho para o fim da pobreza no mundo em desenvolvimento e o think tank Heartland Institute, o qual foi fundado pela indústria do petróleo, declarou, a propósito da nova encíclica e numa mensagem dedicada ao Papa que este “pretende sacrificar vidas humanas através de gestos sem significado que visam alterar o clima nos próximos 100 anos a partir de agora (…), o que, francamente, nada tem de moral”.
Mas deixemos as críticas, que pouco valem, e atentemos na mensagem ecológica do Papa que, decerto, ficará não só na história da Igreja, mas também na história da “casa comum” que é o planeta em que vivemos.
As questões que causam inquietação e que “já não se podem esconder debaixo do tapete”
A forma como a encíclica está organizada casa, na perfeição, os argumentos da actual crise ecológica – com base nas mais recentes pesquisas científicas – com as questões éticas e espirituais. Sem esquecer as argumentações que derivam da tradição judaico-cristã – como forma de dar coerência ao compromisso da humanidade com o meio ambiente – Francisco elenca as raízes, “sintomas” e as causas mais profundas desta crise, propondo uma nova ecologia, multidimensional, com vista a integrar “o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia”.
Todos os grandes “temas” que pertencem à crise ambiental estão presentes na encíclica: poluição e alterações climáticas; a questão da água; a perda de biodiversidade; as questões energéticas; os resíduos; a tecnologia; a deterioração da qualidade de vida humana e a degradação social; as grandes desigualdades planetárias, sem esquecer as “fraquezas” das reacções políticas internacionais e as diferentes perspectivas de linhas de pensamento que apenas inibem quaisquer tipos de resoluções eficazes.
Todavia, a sua força adicional reside no facto de todas as temáticas elencadas estarem transversal e intimamente ligadas com as “cruzadas” eleitas pelo Papa e que ficarão, decerto, na história do seu pontificado. Desde a relação estreita entre a pobreza e a fragilidade do planeta, à convicção de que tudo está intimamente interligado, com a urgência de um novo paradigma no que respeita aos actuais modelos de desenvolvimento socioeconómicos – com uma referência explicita a uma “ecologia integral” – mas também de um novo paradigma na própria ciência, a qual, na visão de Francisco, precisa de “ultrapassar” os silos e o enfoque meramente tecnológico, para se tornar numa ciência de colaboração interdisciplinar, com a sociedade e os decisores a co-desenvolverem o conhecimento e as ferramentas exigidas para “um novo diálogo sobre como moldar o futuro do nosso planeta”.
Um apelo à protecção da nossa “casa comum”
Ao longo de cerca de 180 páginas, a encíclica articula, de forma marcante, a complexidade e profundidade da Terra, neste apelo para proteger “ a nossa casa comum”. Explorando com grande detalhe o conhecimento científico actual sobre a biosfera terrestre – a camada de vida na Terra composta pelos milhões de espécies de animais, plantas, microorganismos e os seus ecossistemas – o Papa não se limita a sublinhar a tragédia da sua deterioração, em conjunto com os dilemas morais e éticos que lhe estão subjacentes, mas também os “custos extremamente elevados” destas perdas para a humanidade, tanto no presente como no futuro. “Já não é suficiente falar apenas da integridade dos ecossistemas. Temos, sim, de ousar falar da integridade da vida humana, da necessidade de promover e unificar todos os grandes valores”.
A encíclica sumariza também os estudos científicos recentes sobre as consequências da deterioração da biosfera na nossa qualidade de vida – explorando não só os impactos materiais nas sociedades e economias – uma área que está, crescentemente, a ganhar espaço nas agendas científicas, empresariais e governamentais – mas também os impactos destas alterações nas dimensões espirituais e culturais no que respeita à comunhão humana com a natureza. Pesquisas recentes já comprovaram de que forma o declínio das interacções humanas com a natureza, decorrentes dos nossos estilos de vida urbanos e consumistas, têm consequências para a nossa educação, bem-estar psicológico, saúde, felicidade, direitos e coesão social. Como escreve Francisco, “não fomos feitos para sermos inundados por cimento, asfalto, metal e vidro e privados do nosso contacto físico com a natureza”. E, acrescenta, “ se não conseguirmos falar a linguagem da fraternidade e da beleza no nosso relacionamento com o mundo, a nossa atitude será a de ‘senhores’, consumidores, exploradores implacáveis, incapazes de estabelecer limites nas suas necessidades imediatas”.
Recordando que também o clima é um bem comum, que a todos pertence e que a todos importa e que, ao nível global é um sistema complexo responsável por muitas das condições essenciais à vida, o Papa sublinha novamente “os fundamentos científicos sólidos” que provam estarmos a testemunhar o aquecimento desse mesmo sistema climático (…). Nesse sentido, o apelo que faz à humanidade é que esta reconheça, e tome consciência, da necessidade urgente de mudar o seu estilo de vida, de produção e consumo, “para o combate a este aquecimento ou às causas humanas que o provocam e agravam”, com referências directas aos combustíveis fósseis. “(…) um olhar atento ao nosso mundo mostra que o grau de intervenção humana, na maioria das vezes ao serviço dos interesses empresariais e do consumismo, está a tornar a nossa terra menos rica e menos bela, antes mais limitada e cinzenta, mesmo com os avanços tecnológicos e os bens de consumo a abundar de forma ilimitada. Na verdade, parece que pensamos ser possível substituir uma beleza insubstituível e irremediável com algo que foi criado por nós mesmos”. Para Francisco, o problema das alterações climáticas é global e tem implicações graves ao nível ambiental, social, económico, distributivo e político, constituindo o “ principal desafio da humanidade”.
“Negação, indiferença, resignação acomodada e confiança cega nas soluções técnicas”
É desta forma que Francisco resume as atitudes dos que ainda não se deram ao trabalho de levar a sério uma realidade que está à vista de todos nós – mesmo sem as inúmeras provas científicas que a sustentam – ou, mais precisamente, dos que não estão dispostos a abdicar dos seus interesses particulares, com “o interesse económico a prevalecer sobre o bem comum” em conjunto com “a manipulação da informação para não verem afectados os seus projectos”. Referindo que “os poderes económicos continuam a justificar o sistema mundial actual, onde predomina uma especulação e uma busca de receitas financeiras que tendem a ignorar todo o contexto e os efeitos sobre a dignidade humana e sobre o meio ambiente”, o Papa fala também da “cultura do descarte” – com os “hábitos nocivos de consumo que não parecem diminuir – antes expandem-se e desenvolvem-se” – pese embora o crescimento da “sensibilidade ecológica das populações”, apesar de manifestamente insuficiente.
Com inúmeros outros temas que, forçosamente, têm de ficar de fora neste artigo – a leitura da encíclica é fortemente aconselhada pela clareza, impacto e beleza que a caracterizam – uma última chamada de atenção, também ela relacionada com uma das grandes cruzadas deste papa e que, de forma crescente, está na ordem do dia: não só o facto de os principais impactos das alterações climáticas recaírem sobre os países em desenvolvimento, com “muitos pobres a viverem em lugares particularmente afectados por fenómenos relacionados com o aquecimento” e os seus meios de subsistência dependerem fortemente “das reservas naturais e dos chamados serviços do ecossistema, como a agricultura, a pesca e os recursos florestais”, mas também o “trágico aumento de emigrantes em fuga da miséria agravada pela degradação ambiental que, não sendo reconhecidos como refugiados nas convenções internacionais, carregam o peso da sua vida abandonada sem qualquer tutela normativa”.
Nota: a versão portuguesa da encíclica papal pode ser lida aqui.
Editora Executiva