POR SOFIA SANTOS
Os fundos de empreendedorismo social já têm enquadramento legal em Portugal desde Março de 2015. Ou seja, já é possível criarem-se fundos cujo objectivo não é maximizar o lucro, mas sim maximizar as “incidências sociais positivas”. Só falta mesmo termos uma lei aprovada para podermos ter empresas sociais, ou seja, empresas cujo objectivo não é a maximização do lucro, apesar das figuras de “empreendedorismo social” e “empresas sociais” já constarem em leis específicas portuguesas.
Para muitos economistas e gestores estes conceitos não são racionais, pois o objectivo último de qualquer actividade económica privada é o lucro. Ensinam-nos isto na escola e na universidade. No entanto, o mundo mudou e, afinal, há agentes económicos que maximizam a sua utilidade sem que para isso maximizem o seu consumo ou o lucro das empresas. E agora estas ideias já não vêm de “gente alternativa e estranha”, mas sim dos burocratas europeus e da própria CMVM. O mundo está mesmo virado ao contrário.
Contexto Europeu
Em Abril de 2013, o Jornal Oficial da União Europeia publicou o Regulamento nº 346 relativo ao fundos europeus de empreendedorismo social, mais conhecido por regulamento “EuSef” (European Social Entrepreneurship Funds). O objectivo deste regulamento “consiste em apoiar o crescimento das empresas sociais da União”, sendo que estas empresas sociais “mais do que maximizar os seus lucros”, visam “alcançar incidências sociais positivas”. E sendo que “deverão ser considerados fundos de empreendedorismo social qualificados os fundos que pretendam investir nessas empresas pelo menos 70% do total das suas entradas de capital e do seu capital subscrito realizado”. Tal significa que um fundo de empreendedorismo qualificado, no contexto Europeu, pode investir 30% em projectos de empresas não sociais.
Contexto Português
Em Portugal, a Lei 18/2015 de 4 de Março transpõem parcialmente este regulamento para o enquadramento legal português, tendo aprovado o regime jurídico do capital de risco, do empreendedorismo social e do investimento especializado. Ou seja, juridicamente os fundos de empreendedorismo social são fundos de capital de risco, apesar da directiva europeia ser clara acerca das diferenças existentes entre ambos, afirmando que “a actividade principal dos fundos de empreendedorismo social qualificados consiste no financiamento de empresas sociais através de investimentos primários. Os fundos de empreendedorismo social qualificados não deverão participar em actividades bancárias de importância sistémica (…) nem adoptar estratégias típicas de capital de risco, como a aquisição de empresas por endividamento”.
[pull_quote_left]Um fundo de empreendedorismo qualificado, no contexto Europeu, pode investir 30% em projectos de empresas não sociais[/pull_quote_left]
Neste contexto, esteve em consulta pública, até 1 de Abril, a proposta de regulamento da CMVM relativa ao capital de risco, empreendedorismo social e investimento especializado, ou seja, a proposta de regulamento para a Lei 18/2015. Nesta proposta, e relativamente aos fundos de empreendedorismo social, pode ler-se que “tendo em conta as propostas europeias de definição e orientações neste sentido, optou-se por não concretizar os critérios que deverão nortear a avaliação de activos de caris social, tendo em conta o seu objectivo principal de alcançar uma incidência social positiva e quantificável, remetendo-se para a avaliação de acordo com os critérios adoptados no sector. Segundo o documento, “considera-se que nesta fase é preferível que o mercado vá encontrando a melhor forma de avaliar os activos à luz do princípio geral.”
Ora, atendendo a que tudo isto é novo em Portugal, acredito que nesta fase os investidores e/ou sociedades gestoras de fundos que queiram comercializar este tipo de fundos, necessitam de vários níveis de esclarecimento que poderão ser fundamentais à compreensão correcta deste novo mundo financeiro que agora começa a iniciar-se em Portugal, mas que já existe no resto da Europa e nos EUA há vários anos.
Compreender o que tudo isto significa
Existem muitas “coisas” que necessitam de ser compreendidas pelo mundo financeiro sobre este novo contexto. No entanto, este artigo tem apenas como objectivo chamar a atenção aos investidores que Fundos de Empreendedorismo Social são, em essência económica e financeira (não a nível jurídico), completamente diferentes dos fundos de capital de risco e dos fundos a que estamos habituados. Isto apesar de a lei portuguesa afirmar que “os fundos de empreendedorismo social podem ser geridos por sociedades de empreendedorismo social, por sociedades de capital de risco e por sociedades gestoras de fundos de investimento mobiliário”.
[pull_quote_left]“Os investidores que queiram comercializar este tipo de fundos necessitam de esclarecimento, fundamental à compreensão do novo mundo financeiro em Portugal”[/pull_quote_left]
Antes de mais leia-se a definição de investimento em empreendedorismo social explícita na lei 18/2015: “considera-se investimento em empreendedorismo social a aquisição, por período de tempo limitado, de instrumentos de capital próprio e de instrumentos de capital alheio em sociedades que desenvolvem soluções adequadas para problemas sociais, com o objectivo de alcançar incidências sociais quantificáveis e positivas.”
Os aspectos fundamentalmente diferentes de todos os tipos de investimentos que temos visto até agora estão associados aos seguintes pontos:
- Soluções adequadas para problemas sociais.
- Incidências sociais quantificáveis e positivas.
O que significam estas novas palavras no mundo financeiro? Para conseguirmos compreender estas expressões temos de voltar ao Jornal Oficial da União Europeia e ao Regulamento dos Fundos “EuSef”. Apenas aí temos definições. Quer a lei portuguesa 18/2015 quer a proposta de regulamento da CMVM nada dizem a esse respeito. Assim sendo, seguem-se algumas dicas:
- Antes de mais, tem de ser criado um enquadramento legal em Portugal para a criação de empresas sociais. Caso contrário estes fundos não terão activos. Apesar da recente tentativa chumbada de se aprovar no Parlamento um decreto-lei para as empresas sociais, ainda temos essa lacuna legal. No entanto, o Regulamento dos Fundos “Eusef” afirma que “uma empresa social deverá ser definida como um operador da economia social cujo objectivo principal, mais do que gerar lucros para os seus proprietários ou sócios, é ter uma incidência social. Opera no mercado fornecendo bens e serviços, e utiliza os seus lucros essencialmente para atingir objectivos sociais. É gerida de forma responsável e transparente, nomeadamente através da participação de empregados, consumidores e outros interessados abrangidos pela sua actividade comercial”. Com a definição de empresa social, penso que conseguiremos definir “soluções adequadas para problemas sociais”, como sendo algo próximo de serviços e/ou produtos disponibilizados pela empresa social e que têm como finalidade ajudar a resolver ou minimizar o impacto negativo que um, ou mais, problemas sociais acarretam à sociedade.
- Se a empresa social tem como objectivo ajudar a resolver um problema social, tal implica que as suas actividades têm de ter uma incidência social positiva e quantificável. De acordo com o Regulamento dos “EuSef”, “uma incidência social quantificável e positiva poderá constituir-se, por exemplo, na prestação de serviços a imigrantes que, de outro modo, seriam excluídos, ou na reintegração de grupos marginalizados no mercado de trabalho, fornecendo emprego, formação ou outros tipos de apoio”. Consegue-se também deduzir que a incidência positiva das empresas sociais está associada com a capacidade do objecto da empresa e das suas actividades abrangerem um ou mais dos seguintes temas:
- a) Mercados de emprego e de trabalho;
- b) Normas e direitos relativos à qualidade do emprego;
- c) Inclusão social e protecção de grupos específicos;
- d) Igualdade de tratamento e de oportunidades, e não discriminação;
- e) Saúde pública e segurança;
- f) Acesso aos sistemas de protecção social, saúde e educação e efeitos sobre os mesmos.
Existem outros dois aspectos do regulamento “EuSef” que são igualmente importantes para se compreender as obrigações destes fundos:
[pull_quote_left]“Os regulamentos de cada fundo de empreendedorismo têm de indicar a política de avaliação das incidências sociais positivas”[/pull_quote_left]
– Os fundos de empreendedorismo qualificado são obrigados a ajudar as empresas sociais “a preparar e prestar informação sobre os seus objectivos e resultados, e a recolhê-la para os investidores.” Os regulamentos de cada fundo de empreendedorismo social também têm de indicar a política de avaliação e de relato das incidências sociais positivas.
– Este tipo de fundos não se destina a ser comercializado ao público em geral. Constitui uma forma de investimento reservada a “investidores qualificados”. Para além destes investidores qualificados é ainda possível investir nestes fundos com capitais cujos limites estão definidos por lei, entre os 50 mil euros e os 100 mil euros. Este tipo de limite é imposto no interesse do investidor mas tendo em vista, também, a captação de algum investimento usualmente associado à filantropia mais tradicional.
Para além de toda a complexidade associada à medição das incidências sociais positivas e aos critérios de cada fundo, fica no ar a questão: De onde poderá vir a rentabilidade deste tipo de fundos?
Para que um fundo de investimento social possa dizer que é um “EuSef”, tem de cumprir com as regras definidas no regulamento europeu. Uma delas é que o fundo não invista mais de 30% do seu capital em activos que não sejam empresas sociais. Ou seja, a rentabilidade dos fundos “EuSef” podem surgir de um mix de investimentos em empresas sociais e noutras, desde que o equilíbrio 70% – 30% se mantenha.
[pull_quote_left]“Os fundos de investimento responsável têm uma rentabilidade mais interessante e estável que os tradicionais fundos de capital de risco”[/pull_quote_left]
Aliás, o regulamento “EuSev” afirma que “os fundos de empreendedorismo social qualificados deverão investir de forma coerente com a sua estratégia de investimento ético, não devendo, por exemplo realizar investimentos que financiem a indústria de armamento, que comportem riscos de violação de direitos humanos ou que impliquem a deposição final de resíduos electrónicos”. Ou seja, num contexto “EuSev” é possível que alguns Fundos de Investimento Responsáveis (com uma certa política de investimento ética), invistam em grandes empresas e em empresas sociais.
A rentabilidade final do fundo virá de 30% da rentabilidade das grandes empresas “éticas” e de 70% das empresas sociais. Trata-se, portanto, de uma abordagem usual dos Fundos de Investimento Responsáveis. Por vezes chamados também Fundos de Investimento Ético. E ultimamente Fundos de Investimento com Impacto Social.
Os Fundos de Empreendedorismo Social Qualificado, ou seja, um fundo “EuSef” (e atenção que poderão existir fundos de empreendedorismo social que não sejam “EuSef”, e é necessário cada Estado membro ter cuidado com este cenário), terão assim uma rentabilidade que estará mais associada às grande empresas “éticas” ou com “critérios de responsabilidade”, do que propriamente às empresas sociais. Até porque as empresas sociais não terão os lucros que se idealizam ao nível do capital de risco. E muitas vezes simplesmente não terão lucros significativos, a não ser quando o mundo das Social Bonds estiver “de vento em popa”.
Este tipo de fundos pretende, sim, trazer um profissionalismo adicional às empresas sociais, e colocar as grandes empresas a ajudá-las no combate a problemas sociais que afectam todos os agentes económicos. Os investidores têm de saber disso. E as entidades gestoras dos fundos têm de conseguir definir para cada fundo que gerem “a incidência social positiva que pretende alcançar com a política de investimento do fundo de empreendedorismo social qualificado”, bem como tornar pública as “regras relativas à avaliação de activos (que) devem constar do regulamento interno ou dos documentos constitutivos do fundo de empreendedorismo social qualificado, e assegurar um processo de avaliação correcto e transparente”.
Rentabilidade dos Fundos de Empreendedorismo Social em Portugal
A lei 18/2015 nada diz sobre a estrutura que um fundo de empreendedorismo social pode vir a ter em Portugal. Ou seja, não diz que x% tem de ser investido em empresas sociais e que y% pode ser investido noutros segmentos. Nada diz também relativamente aos critérios éticos, morais, sociais e ambientais que os fundos possam vir a ter. Mas esses critérios terão obrigatoriamente de ser públicos e explícitos.
Entrámos numa nova fase em Portugal. Numa fase em que fundos de investimento podem passar a ter associados valores morais, éticos e ambientais. Os fundos de empreendedorismo social devem ser pensados num contexto de fundos de investimento responsável. A boa notícia é que os fundos de investimento responsável têm, de forma geral, uma rentabilidade mais interessante e estável que os tradicionais fundos de capital de risco.
CEO da Systemic