POR GABRIELA COSTA
José Manuel Fernandes foi o orador convidado da Associação Cristã de Empresários e Gestores, no seu último almoço-debate de 2017. Na abertura da conferência, o presidente da ACEGE, João Pedro Tavares, citou o jornalista, numa das muitas opiniões publicadas no Jornal Público, que fundou: “os órgãos de informação não se esgotam no dever de informar, reportar, explicar, enquadrar e comentar, tal como não se esgotam no dever de serem incómodos para todos os poderes. Também podem, e devem, ser actores sociais capazes de promover uma sociedade mais aberta, uma cidadania mais informada, uma democracia com mais qualidade.”
Esta semana, e sob a temática “Um futuro com mais liberdade e responsabilidade”, José Manuel Fernandes reflectiu sobre a relação entre ambas – não apenas na comunicação social mas no País – e as razões pelas quais em Portugal se lhes dá “tão pouco valor”, desde há muito. Algo que sempre impressionou o actual publisher do Observador (que também fundou), para quem o facto de os regimes liberais ou democráticos, importados do exterior, terem “demorado muito tempo a implementar-se”, e com “muita dificuldade”, não é alheio a essa desvalorização do sentido de liberdade e de responsabilidade.
Contextualizando esta ideia na cronologia da história de Portugal, José Manuel Fernandes lembrou que perante a referência do Século das Luzes como o momento em que a Europa começa a dar importância a determinados valores, “os importadores do Iluminismo em Portugal foram governantes autoritários”, sendo que o “Marquês de Pombal talvez seja o exemplo máximo” desse autoritarismo.
[quote_center]Os choques externos permitiram um solavanco para, de alguma forma, libertarmos a nossa economia[/quote_center]
Mais, “quem trouxe ideias que permitiram acabar com o antigo regime, foi uma invasão: a francesa. E o paradoxal é que esses que trouxeram para cá outro tipo de ideias, mas muito marcados já pela degenerescência dos ideais originais da Revolução Francesa, acabaram por ser derrotados pelos ingleses, que já tinham feito a sua revolução um século antes, e que já tinham um regime representativo – uma monarquia constitucional”. Neste contexto, a verdade é que os portugueses acabam por localizar a sua revolução liberal no momento em que os ingleses se vão embora, e vendo-os “como um opressor e não um libertador, em relação aos franceses”. A vitória liberal depois da guerra civil provoca “um grande corte”, onde praticamente o País perde todas as suas estruturas e reconstrói-as de novo”, naquele a que o fundador do Observador apelida “um momento de revanche que leva muito tempo a compor-se”.
Outro exemplo do pouco valor que se dá à liberdade é quando Portugal chega à República, num “paradoxo em que a mesma devia trazer mais liberdade, mas retira direitos de voto aos portugueses”, explica o jornalista: “o corpo eleitoral da República era mais pequeno que o corpo eleitoral da Monarquia e a liberdade de imprensa era menor, pelo menos nos seus primeiros anos”. Segue-se um período largo de regime de ditadura militar, depois chamado Estado Novo, “onde também não se prezava a liberdade”, conclui José Manuel Fernandes.
Ao longo destes vários períodos ficou sempre marcada “a ideia de que para haver liberdade era preciso combater certas instituições e certos valores”. E, acredita, talvez o melhor exemplo disso seja uma noção, “que ainda hoje perdura”, de que “para termos as populações educadas é preciso combater as instituições da Igreja”. Durante muito tempo “isso significou combater os jesuítas, que tinham o sistema de ensino secundário em Portugal” durante a implantação da República, o qual desapareceu quando foram expulsos.
[quote_center]A chamada superestrutura manteve os seus tiques, e isso nota-se em inúmeras frentes e em todos os sectores[/quote_center]
Portugal caminhou assim, ao longo da sua evolução política e social, com uma liberdade “imposta de cima para baixo pelo Estado, infelizmente demasiado presente” ao longo de “vários momentos da sua história”, insiste o jornalista. Um fenómeno que, na sua opinião, não se pode atribuir “apenas à esquerda ou à direita, nem a quem tem mais ou menos recursos” – ou seja, é transversal à sociedade -, mas que “marca os portugueses de forma negativa”, até hoje.
Um país onde a economia se encosta ao Estado
Referindo-se ao papel do Estado nesta relação desprendida da nação com a liberdade, José Manuel Fernandes recorda como, apesar de actualmente ser comum “queixarmo-nos” pela forma como o mesmo “continua a privilegiar as corporações (quer sejam protagonizadas por interesses sindicais ou por empresas que vivem da protecção ou de algum estatuto de benefício)”, a verdade é que o País viveu, durante o Liberalismo, a República ou o Estado Novo, “com uma economia que se encostava quase sempre ao Estado”. E, defende, essa realidade “só foi quebrada quando tivemos choques externos”, os quais permitiram um “solavanco para, de alguma forma nos libertarmos ao nível da economia”. O fundador do Público e do Observador exemplifica: no Estado Novo tínhamos um sistema industrial que permitia proibir a concorrência, “porque esta ia criar problemas àqueles que estavam instalados”, mas no início dos anos 60 a entrada para a Associação Europeia de Comércio Livre (EFTA, na sigla em inglês) “provocou uma espécie de explosão e anos de crescimento económico mais rápido”. Isto apesar de, ”paradoxalmente, ser esse o momento em que temos as maiores vagas migratórias”, porque o crescimento não era ainda assim suficiente para manter cá todas as pessoas. Foi um momento “de mudança profunda no país”. Outro, que representou também um boom económico graças a um choque externo, foi naturalmente todo o processo que levou à adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia, em 1986.
Neste contexto, e de forma pouco “ortodoxa”, o jornalista acredita que “precisamos de outro choque externo, neste caso sob a forma de uma terceira intervenção externa”.
[quote_center]O mercado interno mudou em boa parte porque foi obrigado a mudar[/quote_center]
Na sua perspectiva, com a intervenção da troika em Portugal imposta pela crise financeira, “os últimos anos obrigaram-nos a confrontarmo-nos com aquilo que era o conforto”. Recordando as palavras de João César das Neves ao Sapo, num artigo recente em que o professor afirma que “somos um país socialista que gosta muito do carinho do Estado […], mas se isto é verdade para o País, é sobretudo verdade para as suas elites”, José Manuel Fernandes sublinha que “houve uma altura em que esta tendência parecia que ia ser alterada, mas não foi”. Pois, “a chamada superestrutura manteve os seus tiques, os seus hábitos, e isso nota-se em inúmeras frentes e em todos os sectores políticos.
Ainda assim, e fora desse “ambiente intelectual”, ao longo deste “período de dificuldade” registaram-se ”mudanças estruturais” no País, diz: Portugal entrou na crise com uma economia baseada em 28% nas exportações, que hoje representam mais de 40%. E, por outro lado, o mercado interno, em boa parte dominado pelas empresas protegidas pelo Estado sobre as quais tanto escreveu, entre 2009 e 2011, o economista e então Conselheiro de Estado, Vítor Bento, nos seus diagnósticos da crise, “também mudou. Em boa parte porque foi obrigado a mudar, e não apenas porque o Estado teve de fazer sacrifícios e porque muita gente teve de sofrer”, defende o jornalista.
Entre “três ou quatro factores que abriram um pouco a sociedade” nessa altura, o exemplo da reabilitação urbana, que nos anos 80 vivia insipidamente de fundos públicos, e que hoje tem uma dinâmica inegável, graças às alterações legislativas que se realizaram, ilustra bem como “de repente, devolvendo liberdade às pessoas, elas começaram a mudar. Com choque e problemas, naturalmente, mas é aí que entra a questão de a liberdade ter de vir a par com a responsabilidade”, conclui.
[quote_center]Precisamos de outro choque externo, neste caso sob a forma de uma terceira intervenção externa[/quote_center]
Para José Manuel Fernandes, “estamos à porta de um momento de mudança em que as coisas se estão a alterar de forma radical”, e a grande velocidade: “vão surgir novas formas de nos deslocarmos, de comunicarmos, de nos educarmos, de tratar da nossa saúde”. São inevitáveis “as novas formas de trabalhar” – afinal, num mundo já não tão longínquo dominado por robots, “que trabalho vamos nós fazer?”. Trabalho existirá sempre, “basta atravessar a baixa de Lisboa para perceber o muito emprego que foi criado”, no turismo e na hotelaria e restauração. “Mas essas pessoas não “têm progressão na carreira” nem ganham metade das que trabalhavam nos bancos” que antes aí existiam. “É uma nova realidade”.
Uma realidade em que os hábitos se alteraram totalmente, e sem retorno. Prova disso é a tendência para ler notícias no online, refere o jornalista. Quando lançou o Observador, há cerca de três anos e meio, o indicador para a consulta de notícias online mais avançado (nos EUA) estava na casa dos 20%. Hoje, dois terços dos acessos ao jornal são feitos a partir do telemóvel. E este comportamento não se faz apenas nas camadas mais jovens da população, mas por todas as pessoas, garante.
A mudança que os mais jovens já protagonizam
Perante os novos hábitos de consumo, de vivência em sociedade e do mercado de trabalho, muitas pessoas, principalmente os jovens, “já mudaram o seu chip em muitos aspectos”, acredita José Manuel Fernandes. Há 15 anos atrás, o sonho dos mais novos seria “trabalhar na Administração Pública ou numa grande empresa e ter um trabalho seguro, mesmo que isso implicasse sacrificar o rendimento”, explica. Hoje a maioria dos jovens “quer criar uma empresa com sucesso. É evidente que muitos não o conseguirão fazer”, mas este desejo é revelador da profunda mudança no estado de espírito das gerações mais novas.
Contudo, e na perspectiva de José Manuel Fernandes, existem muitas resistências à mudança, nomeadamente nas três áreas basilares do Estado Social – educação, saúde e segurança social.
[quote_center]Na educação ‘a paixão pela igualdade vai matar a liberdade’[/quote_center]
Na primeira, “a paixão pela igualdade vai matar a liberdade”. A ideia defendida pelo pensador e estadista francês Alexis de Tocqueville, no século XIX, é actual no que se refere ao sistema educativo nacional, no entender do jornalista português, para quem “depois da crise e com o actual governo houve um retrocesso nesta área”. Na sua opinião, o princípio de que “todos os professores – bons ou maus – têm de ser tratados por igual, seja no concurso nacional seja na forma como prosseguem na carreira, torna impossível que as escolas sejam diferentes”. Por exemplo, inviabiliza que os professores possam ser despedidos, se for caso disso, “como se passa no mundo das empresas”. Para o jornalista “não há que ter medo de implementar um sistema diferente”, mais livre, mesmo tendo presente que “haverão sempre favoritismos”, pois o sistema favorece “os menos bons”.
Na área da saúde, onde apesar de tudo já há “um embrião do que podia ser diferente”, o País move-se restrito a um SNS “onde o que pagamos, para irmos a um hospital ou a um centro de saúde, é quase nada”; aliás, 55% da população não paga mesmo nada por estes serviços. Daqui decorre “a noção de que o Estado paga a nossa saúde. Mas não é verdade: 33% dos gastos da saúde saem do bolso das famílias” (um valor que está quase no dobro da media da União Europeia). Mais uma vez, falta liberdade, defende José Manuel Fernandes: “noutros sistemas europeus é o dinheiro que vai atrás do doente e não o doente atrás do Estado”. No seu prisma, “seria possível introduzir mais liberdade” no sistema nacional de saúde, uma área “onde a responsabilidade tem de estar sempre presente”.
Finalmente, no terceiro pilar do Estado Social – a segurança social –, e considerando a insustentabilidade das suas contas, “é mais difícil introduzir mudanças radicais”. Neste sector tão crítico “temos vindo a empurrar o problema com a barriga”, ou seja, “a arranjar novas fontes de financiamento sem perder as antigas”, lamenta. Sucede que como a esperança de vida aumenta sucessivamente, “mesmo aumentando a idade de reforma vamos retirando cada vez mais dinheiro à economia para o sistema de pensões”.
[quote_center]Noutros sistemas europeus é o dinheiro que vai atrás do doente e não o doente atrás do Estado[/quote_center]
E se estas são três áreas-chave “onde ganharíamos muito em ter mais liberdade e mais responsabilidade”, para José Manuel Fernandes são também, e “infelizmente”, campos onde, “nos últimos anos temos andado p trás”. Em suma, “o país seguramente não voltou ao que era nos anos da crise, no que se refere a tudo o que não está na área protegida do Estado, mas está a voltar demasiado p trás nas zonas por ele protegidas”, critica.
Concluindo a sua reflexão, o jornalista afirma: “gostava de ver líderes políticos a defenderem a ideia de liberdade”. Na sua visão democrática, trata-se de um gesto “muito simples” que poderia mudar muita coisa. É preciso, pois, encontrar líderes capazes de “dizerem às pessoas que querem mandar menos, e que querem que elas mandem mais”. Tal só é possível dando às pessoas mais liberdade, sem que o Estado deixe de ter as suas responsabilidades, “mas passando a tê-las de forma diferente”, sublinha.
Perante a tendência, que vive “um momento alto” em Portugal, para ser o Estado (leia-se, para muitos, o Governo) a dizer onde estão os bons e os maus investimentos, para onde deve ir todo o dinheiro, onde devem estudar os alunos, para onde devem ir os doentes ou como deve ser o sistema de pensões, há uma nova geração que “já percebeu que o sistema não vai funcionar, já não está a funcionar, nos empregos que os jovens estão a encontrar, na forma como estão no mercado de trabalho, e na forma como encaram a sua profissão, já sem a ideia de uma carreira automática”.
[quote_center]Temos vindo a empurrar o problema [da segurança social] com a barriga[/quote_center]
Portanto “há, na minha perspectiva, margem para algum líder político vir dizer que quer ‘empower the people’, isto é, devolver poder às pessoas, dando-lhes mais liberdade de escolha e obrigando-as também a assumirem mais responsabilidades. Eu gostava de ter líderes políticos capazes de fazer este discurso mas em Portugal, infelizmente, mesmo nos partidos que poderiam fazê-lo vejo isso muito pouco”, remata José Manuel Fernandes: “quando olho para os dois candidatos à liderança do maior partido da oposição fico particularmente triste, porque de facto não esperava que houvesse uma tal incapacidade de renovação no partido, de tal forma que nunca antes houve um concurso pela liderança com duas pessoas com mais de 60 anos”, o que contraria a actual tendência europeia para as lideranças jovens.
Consciente de que este tipo de discurso poderá não ser, à primeira vista, o mais popular, o jornalista deixa o repto à esfera política: “se ninguém defender ideias destas, elas nunca farão caminho”.
Jornalista