POR MÁRIA POMBO
A nível mundial, cerca de 15 milhões de raparigas casam antes dos 18 anos e na maioria dos países em desenvolvimento menos de metade das jovens termina o ensino secundário, com apenas 1% a entrar na universidade. Esta realidade afecta em grande escala países como Moçambique (que é um dos mais pobres do planeta), onde 48,2% das raparigas casam antes dos 18 anos e 40% têm o seu primeiro filho também antes de atingirem a maioridade, sendo que 70% acabam mães solteiras em algum momento da sua vida.
Foi com a vontade de construir uma sociedade melhor, que promove a educação, permite que os cidadãos tenham acesso a melhores empregos e mitiga a violência doméstica e os abusos contra as mulheres, que nasceu, em 2013 a Girl Move Academy, projecto liderado por Alexandra Machado. E é através de uma lógica de “liderança de serviço” que esta academia – que tem sede em Moçambique mas procura ter impacto a nível mundial – pretende combater a pobreza e promover o acesso de todas as pessoas a uma educação de qualidade, combatendo o abandono escolar precoce e aumentando os níveis de empregabilidade.
Trata-se de uma organização sem fins lucrativos que tem vindo a criar uma nova geração de líderes transformadoras, inspirando-as e motivando-as a serem inovadoras e a criarem impacto, através de uma metodologia que estimula o seu desenvolvimento pessoal e profissional. Com três programas, a organização apoia diversas faixas etárias: o programa Believe destina-se a jovens adolescentes, o programa Lead apoia estudantes universitárias e o programa Change é para mulheres licenciadas e com perfil de liderança.
Pela garra, determinação e atenção à família que as jovens reconhecem na figura da mulher moçambicana, esta serve-lhes de inspiração e incentiva-as, de forma crescente, a possuir e desenvolver estas mesmas características, transformando-se, também elas, num exemplo a seguir pelas gerações seguintes.
Na conferência “Liderança Transformadora – Mulheres com Impacto”, que decorreu recentemente em Lisboa, cerca de 30 jovens mostraram que, mais do que uma nação com muitas carências, Moçambique é um país com um enorme potencial, cuja população tem a capacidade de encontrar recursos onde antes existia desperdício e de ver oportunidades onde outros não viram nada. O evento, que foi moderado pela jornalista Laurinda Alves, contou com o testemunho de três Girl Movers e de três líderes portuguesas. Através das suas experiências de vida, as seis oradoras deram a conhecer de que modo conseguiram (e conseguem) ultrapassar barreiras e desafiar a normalidade, lutando por um planeta mais justo e melhor para todos.
A primeira parte contou com o testemunho das jovens moçambicanas, com as líderes portuguesas convidadas a preencherem, com as suas histórias, a segunda parte do evento.
Vera Guitiche e o desafio da normalidade
Desafiar a normalidade e promover uma mudança transformadora. Este é, em termos simplificados, o grande papel de Vera Guitiche. A jovem de 23 anos foi a primeira oradora da conferência e começou por explicar que, quando frequentou o ensino básico, não existiam salas de aula. As turmas eram compostas por 50 alunos que se encostavam às árvores existentes para ouvirem os professores, estando dependentes das condições climatéricas e sendo por isso normal não haver aulas quando chovia.
E este poderia ser um testemunho de um qualquer moçambicano que vive nas zonas rurais daquele país. Porém, Vera não se contentou com a ideia de depender do clima para ter aulas e sublinha que à medida que foi crescendo, foi percebendo que “aquela situação não era normal” e que, mesmo quando todos diziam que não havia nada a fazer, não conseguia não se indignar.
Foi esse o motivo pelo qual se formou em Administração Pública, tendo-se posteriormente envolvido em projectos sociais com o intuito de “pressionar o governo a apostar na educação”. E conseguiu. Com diálogo, Vera já ajudou a reabilitar algumas bibliotecas e a construir salas de aula. E as crianças e jovens que agora estudam na sua antiga escola não precisam de procurar as sombras das árvores, beneficiando, ao invés, de espaços fechados e protegidos que lhes permitem aprender tanto no Verão como no Inverno. Através deste esforço, a jovem conseguiu “mostrar ao governo que é possível”. Porém, também foi percebendo que a dificuldade não está no investimento, mas sim em “saber aquilo em que é preciso investir”, e que mais do que dinheiro e meios “são necessários recursos”.
A agricultura é uma das principais fontes de subsistência da população moçambicana, já que 70% dos agricultores cultivam para consumo próprio. Todavia, Vera explica que, “dos 36 milhões de hectares agrários existentes, apenas menos de 10% são aproveitados”, o que implica que muitos dos alimentos que são consumidos tenham que ser importados de outros países. Foi com foco na gestão ineficiente dos solos e com o intuito de diminuir a taxa de importação e contribuir para o aumento da taxa de produção de frutas e legumes que Vera decidiu dar o passo seguinte: criar o projecto AgroVida. “Se capacitarmos os agricultores e investirmos neles, podemos produzir o suficiente para nos auto-sustentarmos e exportarmos produtos”, explica.
Vera não tem dúvidas de que o seu propósito é “contribuir para o desenvolvimento do [seu] país”. Para si, a Girl Move significa “a possibilidade de gerar ainda mais mudança” e a aquisição de “mais ideias e conhecimento”.
Iva Monteiro e a ode à felicidade, à liberdade e à capacidade de superação
Com 22 anos, Iva Monteiro foi talvez a oradora cujo testemunho mais impressionou a plateia.
Misturando humor com assuntos sérios, a jovem começou por referir que queria iniciar o seu discurso com uma frase sábia e com a qual se identificasse. Procurou no Google e encontrou uma citação de Malala que lhe pareceu bonita: “levanto a minha voz, não para falar mais alto, mas para que outros sejam ouvidos”. Porém explica que não quer falar em nome de ninguém, preferindo, ao invés, “que todos tenham a sua própria voz”.
Sendo adepta de boxe, lembrou-se igualmente de uma das frases mais conhecidas de Rocky Balboa, que afirmava que “não são as vezes que caímos que importam, mas sim as vezes em que nos levantamos”. Mas ainda assim, não se identificava a 100%. Foi então que optou por “ser original” e procurar a sua própria frase. Explica que sabe, desde nova, qual é o impacto que quer deixar no mundo e conta um pouco da sua história de vida.
“A adolescência é uma fase complicada e leva-nos a fazer coisas sem pensar, e foi isso que aconteceu com a minha mãe, que engravidou de mim quando era nova”, começa por referir. Iva nasceu e cresceu com os avós, a sua mãe continuou a estudar e mais tarde voltou a casar, tendo tido mais dois filhos. E tudo corria bem, até que o seu padrasto decidiu divorciar-se da sua mãe (na altura com 35 anos), expulsando-a de casa e retirando-lhe os filhos, para casar com uma jovem de 17 anos que maltratava os menores. “E eu via tudo e não pude fazer nada”, remata.
Sendo sobrinha de mais cinco mulheres e um homem, Iva Monteiro conta ainda que viu, ao longo da vida, “muitos abusos, sofrimento e fome” e reforça que “não podia fazer nada”. Até que, aos 16 anos, decidiu que “mais mulher nenhuma iria sofrer”. Criou uma associação e começou a abordar temas como a educação sexual e a violência sobre as mulheres, e percebeu o impacto que tinha quando, após uma sessão, uma jovem lhe confessou que, ao ouvi-la, sentia-se poderosa.
Entrou no ensino superior e pouco tempo depois percebeu que podia juntar a sua grande paixão – o boxe – à sua missão de lutar pelo fim da violência sobre as mulheres, ensinando-as a defenderem-se de maridos violentos. E tudo parecia encaminhar-se até ao momento em que quis fazer uma apresentação pública do seu projecto e deparou-se com uma sala cheia de homens que acreditavam que o seu intuito era “incentivar as mulheres a vingarem-se dos homens” e “estimular a violência doméstica por parte das mulheres, aos seus maridos”.
Vários desafios ultrapassados, entretanto, foi mais tarde, na Girl Move Academy, que encontrou “um conjunto de mulheres que se ajudam”, sentindo-se incentivada a lutar por aquilo em que acredita. Hoje, Iva Monteiro sabe que pode ser “apenas uma gota, mas que sem essa gota o oceano seria, de certeza, menor”.
Elvira Sabonete e o triunfo da simplicidade
“O que fariam se vos desafiasse a fazer uma omelete sem ovos? É isso que eu gosto de fazer: inventar e criar novas possibilidades”. Foi assim que Elvira Sabonete, uma jovem de apenas 21 anos, começou o seu testemunho.
Tinha apenas dois anos quando os pais se divorciaram e passou a viver apenas com a mãe. Sem um emprego fixo e com a vida de uma criança para assegurar, a mãe da jovem é a prova e o exemplo do significado da expressão “desperdício zero”, já que “reaproveitar” sempre foi a sua palavra de ordem. E foi com isso que Elvira cresceu: com a certeza de que “nada deve ser desperdiçado” e que “devemos utilizar aquilo que temos para alcançar os nossos objectivos”.
Uma das suas memórias mais felizes está relacionada com os papelões onde dormia e que a mãe trazia, todos os dias, do trabalho. “Todos os dias trazia papelões novos porque, como não tinham a marca do nosso corpo, eram mais macios e confortáveis”, explica. “E esse gesto fazia-me feliz”.
O gosto de transformar e inventar coisas foi-lhe, por isso, incutido desde cedo, motivo pelo qual se quis formar na “ciência da transformação”: Química. Os conhecimentos que adquiriu já lhe permitiram criar, por exemplo, pilhas a partir de refrigerantes e extintores.
Conta ainda que, numa viagem que fez observou um grupo de jovens rapazes a vender coco. E foi então que, com o desperdício destes frutos fez, com eles, óleo de coco que os jovens “puderam vender e ganhar mais dinheiro”. Dando este exemplo e explicando que esta foi “uma acção simples que melhorou o dia daqueles rapazes”, Elvira assume que, todos os dias, procura ser a “melhor versão” de si própria.
Sentindo-se grata à sua mãe por tudo o que aprendeu com ela ao longo da vida, a jovem terminou o seu testemunho com a ideia de que “podemos não ter omeletes, mas podemos fazer algo melhor com as coisas que temos ao nosso alcance”.
Filipa Caldeira e a importância de sermos felizes na nossa profissão
Dando início à segunda parte do encontro, Filipa Caldeira, fundadora da FullSix, começou por referir que se sente “com o dobro da idade e com metade das experiências” das três jovens moçambicanas.
Adepta do ténis, Filipa Caldeira cresceu dividida entre a escola e o desporto, sendo formada em Marketing pela Universidade Católica Portuguesa. Depois de terminar a faculdade e com um início de carreira de sucesso numa empresa multinacional que lhe oferecia boas condições de trabalho, entendeu que era tempo de ter o seu próprio negócio. “Se actualmente a palavra de ordem é startup, naquela altura, a palavra mais ouvida era franchising”, explica. E foi com essa palavra em mente que se uniu a dois amigos e, juntos, abriram um restaurante de comida mexicana fast-food.
Com cinco lojas abertas em Lisboa, o negócio parecia correr bem mas os três empreendedores acabaram por contrair diversas dívidas e foram forçados a abandonar aquele negócio. Insatisfeita com a situação, com contas para pagar e com um bebé a caminho, Filipa Caldeira achou que a melhor forma de contornar a situação era “criar um novo negócio”, já que, a trabalhar para outrem iria demorar muito tempo para saldar o valor que tinha em dívida. E foi assim que nasceu a FullSix, uma agência dedicada ao Marketing que, com escritórios em Portugal e em Espanha, emprega actualmente mais de mil pessoas.
Com esta experiência, Filipa Caldeira considera que aprendeu duas coisas: a primeira é “não ter medo de errar e de assumir os erros”, considerando também importante “saber pedir ajuda”; a segunda é que “temos que fazer aquilo de que gostamos porque se fazemos aquilo que apenas nos dá dinheiro não chegamos a lado nenhum”, explicando que “pessoas apaixonadas pelo que fazem conseguem gerar mais valor”.
A empreendedora terminou o seu testemunho, contando uma outra lição que aprendeu com um senhor que conheceu em tempos e cuja conclusão é que “quando alguma coisa nos acontece, temos o hábito de perguntar ‘porquê eu?’ mas que devemos, ao invés, questionar ‘por que não eu?’”, sendo certo que “aquilo que acontece aos outros também nos pode acontecer a nós”.
Margarida Couto e a ideia de que não estamos sozinhos
Cruzando-se, em alguns pontos, com algumas histórias já apresentadas, Margarida Couto aprendeu, desde cedo, que ter vontade própria é bom mas também pode trazer alguns dissabores.
Nasceu e viveu a sua infância em Moçambique, e explica que “quem lá viveu sabe que é uma terra de chamamento”. Conta que também estudou na rua, encostada a uma árvore, tendo, no entanto, uma visão mais romântica daquela que apresentou Vera Guitiche (a primeira oradora) relativamente a este aspecto.
Certo dia recebeu a notícia de que a família iria abandonar aquele país e iria regressar para Portugal e, já no aeroporto, descontente com a situação, resolveu barricar-se numa casa de banho, pensando ser este o “plano perfeito” para não entrar no avião que a afastaria do seu país preferido. “Claro que fui encontrada e o resultado foi uma tareia”, remata.
Formou-se em Direito contra a própria vontade, pois nunca se imaginou a desempenhar uma profissão na área. E foi quando chegou à Vieira de Almeida que compreendeu que, afinal, aquela licenciatura foi útil e teve um propósito, encontrando aqui a oportunidade de criar e desenvolver um Programa Pro Bono e de Responsabilidade Social Corporativa, através do qual a sociedade de advogados colabora com diversas entidades da Economia Social, prestando serviços de assessoria jurídica em regime pro bono a diversas instituições sem fins lucrativos.
Explicando que “os advogados sãos intermediários obrigatórios de acesso à justiça”, a também presidente do Grupo de Reflexão e Apoio à Cidadania Empresarial (GRACE) considera que as empresas têm que perceber que “não são só as pessoas que devem ser cidadãs”. Com base no trabalho que tem vindo a desenvolver ao longo dos anos, Margarida Couto não tem dúvidas de que “nunca estamos sozinhos”.
Rita Nabeiro e a certeza de que todos são necessários
Tal como o nome indica, Rita Nabeiro é neta de Rui Nabeiro, o mais reconhecido empresário português. Podia ter abraçado o negócio da família desde cedo, mas preferiu traçar o próprio caminho e formou-se em Design de Comunicação.
Trabalhou durante algum tempo numa agência de comunicação e, devido a uma doença que o irmão teve, tornou-se freelancer na área para a qual estudou para o poder acompanhar de perto. Teve uma chefe mulher mas não conseguia esquecer-se de que “tinha, em casa, uma pessoa incrível e o melhor exemplo de todos”: o avô.
E foi com essa noção em mente que optou por entrar no negócio da família, ocupando um cargo de designer. No encontro, Rita Nabeiro conta que trabalhava “numa equipa composta maioritariamente por homens” mas que isso nunca a afectou. Sendo designer e não gestora sentia-se, por vezes, “uma carta fora do baralho”, ou uma “artista no mundo do trabalho” mas, com o tempo, passou a ser respeitada na sua individualidade.
Actualmente, a neta de um dos homens mais respeitados do nosso país é CEO da Adega Mayor (também da família) e sabe que o seu propósito é “fazer crescer o negócio e ajudar a criar uma sociedade melhor”. E faz um apelo às mulheres: “se querem fazer a diferença, contem também com os homens e envolvam-nos, porque todos são necessários”.
Em jeito de conclusão, a jornalista Laurinda Alves sublinhou que “cada pessoa influencia pelo menos mil outras pessoas ao longo da vida”. Cabe agora, a cada um de nós, saber e decidir como queremos influenciar aqueles com quem nos cruzamos.
Sobre a Girl Move Academy:
[su_youtube url=”https://www.youtube.com/watch?v=QgD_bBelLws” width=”700″ height=”220″]
Jornalista