A cooperação portuguesa para a Educação vive estrangulada pela deficiente coordenação entre instituições públicas e ONGD, pela vigente burocratização dos processos e por uma fraca avaliação de resultados. A falta de previsibilidade dos financiamentos compromete uma acção continuada. Mas Portugal tem vantagens face aos restantes doadores, que deve potenciar adequando-se “às necessidades dos países parceiros e aos sectores onde pode fazer a diferença”, diz, em entrevista, a autora do estudo recentemente apresentado pela Campanha Global para a Educação Portugal dedica ainda uma percentagem “relativamente modesta” da sua ajuda aos sectores sociais e, no total da ajuda ao desenvolvimento, está longe de atingir a meta dos 0,7% do Rendimento Nacional Bruto (RNB), estabelecida até 2015. Em contexto de crise, não se perspectivam quaisquer aumentos de verbas, “o que alerta para a necessidade de melhoria da utilização dos fundos disponíveis e de procura de sinergias”, sublinha, em entrevista ao VER, Patrícia Magalhães Ferreira, consultora independente na área da cooperação para o desenvolvimento e autora do estudo “Entre o Saber e o Fazer: A Educação na Cooperação Portuguesa para o Desenvolvimento”, promovido pela Campanha Global pela Educação (Coligação Portuguesa). O estudo, recentemente apresentado, revela a deficiente coordenação entre os actores da cooperação portuguesa nesta área (nomeadamente entre os projectos das instituições públicas e das ONGD). E confirma a ainda vigente burocratização dos processos, transversal à cooperação portuguesa no seu todo, e uma cultura de avaliação de resultados “ainda insuficiente”. A falta de previsibilidade dos financiamentos compromete a acção, pois não permite planear as acções com continuidade,conclui ainda o estudo. O documento recomenda, pois, que se construa “uma visão estratégica mais integrada e coordenada” entre os muitos actores que intervêm neste sector. E que considere “a grande fragilidade” dos sistemas de ensino nos países parceiros, aponta Patrícia Ferreira, tomando em linha de conta as complexidades e necessidades locais (muito diferentes entre os vários países) e envolvendo equipas locais na gestão dos projectos. Só assim se podem “gerar resultados sustentáveis”, defende a autora do estudo. Por outro lado, é preciso trabalhar reconhecendo que o apoio à Educação e o investimento nos recursos humanos “só têm resultados visíveis no longo prazo”. Para além da questão linguística e de semelhança do quadro jurídico-administrativo, a cooperação portuguesa na Educação tem vantagens, face aos restantes doadores, como a disponibilidade para um envolvimento de longo prazo em cada país, “indispensável para gerar resultados no âmbito do capital humano” e a flexibilidade na reorientação de acções e montantes dentro dos projectos definidos. Portugal deve assim ter como prioridades nesta matéria a adequação às necessidades dos países parceiros e aos sectores onde pode fazer a diferença ou apresenta mais-valias, caso dos subfinanciados níveis de ensino secundário e superior. Doadores retiram apoios Mas perante a crise mundial, e segundo Patrícia Ferreira, muitos países doadores estão “a utilizar o argumento de que têm de concentrar mais a sua ajuda em termos sectoriais e geográficos para retirar apoios a determinados países ou áreas, quando na verdade essa diminuição tem a ver com dificuldades internas e com a necessidade de limitarem os financiamentos públicos para a cooperação”. Se esta tendência se mantiver, e considerando o aumento do número de crianças em idade escolar, “em 2015 existirão mais crianças sem acesso à Educação”, acusa a consultora independente na área da cooperação para o desenvolvimento. Também preocupada, Mariana Hancock, membro da Coligação Portuguesa da Campanha Global pela Educação (CGE), garante que numa altura em que o financiamento internacional ao desenvolvimento “se encontra sob pressão considerável, pautado por incertezas e pela discussão de uma agenda de desenvolvimento global pós-2015””, a CGE, enquanto parte de um movimento internacional, vai “continuar a pressionar os governos de todo o mundo para que a Educação seja central nas agendas políticas”. Na sua opinião, é fundamental continuar a chamar a atenção para que nenhuma das metas da Educação para Todos seja negligenciada, e para que a expansão das oportunidades de acesso e de frequência do ensino seja equitativa e não perca de vista a qualidade da Educação. Por cá, e num contexto “particularmente desafiante”, a coligação da CGE “estará particularmente atenta a factores que possam comprometer a eficácia, sustentabilidade e impacto da cooperação portuguesa no sector da Educação”, avança ao VER Mariana Hancock. Este estudo surge no âmbito de um projecto de Educação para o Desenvolvimento, com a duração de dois anos, co-financiado pelo Instituto Português para o Desenvolvimento (IPAD). O objectivo é colmatar a necessidade de existência de uma análise sectorial da Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) portuguesa no sector da Educação, “até agora inexistente”, segundo Mariana Hancock, que sirva de base para reflexão, discussão e acção.
Quais são as principais conclusões a retirar do estudo “Entre o Saber e o Fazer: A Educação na Cooperação Portuguesa para o Desenvolvimento”? No geral, o estudo alerta para dois aspectos essenciais. Em primeiro lugar, para a necessidade de realismo naquilo que é possível atingir neste sector. Face à grande fragilidade dos sistemas de ensino nos países parceiros, a cooperação portuguesa não pode esperar que seja possível mudar totalmente essa realidade com projectos de 3-4 anos. Nem esperar que a presença de algumas dezenas de professores na Guiné-Bissau opere uma mudança estrutural no ensino ou que seja exequível enviar duzentos professores para Angola em poucos anos (como foi prometido em 2007). Assim, é preciso perspectivar as acções reconhecendo que o apoio à Educação e o investimento nos recursos humanos é algo que só tem resultados visíveis no longo prazo, e que a pressão para resultados rápidos e quantificáveis no curto prazo não gera sustentabilidade. Em segundo lugar, é necessária uma grande consciência e conhecimento das complexidades locais, como demonstram vários projectos da cooperação portuguesa. No passado, muitos dos projectos foram geridos como entidades autónomas, coordenados por quadros expatriados, com pouca ligação às formas locais de educar ou aos sistemas de ensino do país em causa. Nos últimos anos, várias acções incluem já estas preocupações e demonstram que a inserção dos projectos nos sistemas educativos locais e o envolvimento de equipas locais na concepção, gestão e implementação dos projectos são as únicas formas de gerar resultados sustentáveis. Como comenta o facto de os valores atribuídos à cooperação portuguesa para o desenvolvimento no sector da Educação se manterem constantes, mas com uma redução do peso relativo em quase 5%, entre 2005 e 2010? O que existe sim, é uma reorientação das verbas dentro do sector, uma vez que apesar da atribuição de bolsas de estudo ainda ter um peso considerável na cooperação com alguns países parceiros, os últimos anos assistiram a uma maior canalização de verbas para programas de formação de professores e para apoio ao ensino secundário nos países parceiros (PALOP e Timor-Leste), o que corresponde de facto às suas necessidades.
A que se deve o facto de a Educação pré-escolar e do ensino básico serem os níveis onde se verifica menor investimento? Contudo, é uma opção que pode fazer sentido no quadro global e da ajuda ao desenvolvimento na Educação em cada país parceiro, já que no nível básico é onde se concentra, normalmente, o maior número de doadores – nomeadamente grandes agências multilaterais (como o Banco Mundial ou as agências especializadas das Nações Unidas), que apostam em estratégias de massificação do ensino e em ‘programas-padrão’, aplicados de forma semelhante na maioria dos países onde estão presentes. Ao possuir mais-valias específicas noutros sectores que estão largamente subfinanciados nos países parceiros, a opção pelo ensino secundário e superior por parte de Portugal pode potenciar o impacto dos escassos recursos financeiros disponíveis. Isto para além de corresponder a necessidades locais cada vez maiores, já que os países em desenvolvimento registam grande crescimento demográfico e o ensino secundário sofre uma pressão crescente, à medida que cada vez mais crianças concluem o ensino primário. No entanto, isto não quer dizer que Portugal não possa potenciar e aumentar o seu investimento noutros níveis de ensino, como é o caso da educação na primeira infância e do ensino pré-escolar, onde a cooperação portuguesa pode ter mais-valias que estão ainda inexploradas. Quais são as prioridades da Estratégia da Cooperação Portuguesa para a Educação? Essas prioridades adequam-se às necessidades dos países? As prioridades, no geral, têm sido quatro: a aposta em programas de reforço do sistema educativo dos países parceiros, onde se destacam os projectos direccionados para o ensino secundário e que incluem formação de professores; as acções de reforço da capacidade ao nível legislativo, administrativo e de gestão, nomeadamente através de assistências técnicas; os projectos de cooperação inter-universitária; e os programas de concessão de Bolsas de Estudo. Se nos parece que estas prioridades fazem sentido, é preciso salientar que em cada um destes vectores de actuação há aspectos a melhorar e o estudo revela um caminho de evolução que é preciso continuar a trilhar, no sentido de contribuir para uma maior eficácia e sustentabilidade das acções que promovem a qualidade da Educação. Quais são as evoluções estratégicas e os grandes constrangimentos que se colocam à cooperação para o desenvolvimento na Educação? No geral, isto significa que as acções passaram a concentrar-se mais nos recursos humanos (investindo menos na construção e reabilitação de escolas) e no desenvolvimento de capacidades, transitando-se de programas de envio de professores portugueses de substituição para programas de formação de professores locais. Naturalmente, isto também significa maior complexidade e exigência, por exemplo no recrutamento dos recursos humanos envolvidos nos projectos, já que é completamente diferente o perfil de um professor que vai leccionar, de outro que deve fazer formação de professores ou apoiar a reformulação dos sistemas de gestão escolar (e que não encaixa no perfil do recém-licenciado sem experiência, como normalmente acontece).
Outra evolução importante é o envolvimento cada vez maior de uma diversidade de actores portugueses na concepção e execução dos programas de cooperação, o que traz novas competências aos projectos. São parceiros específicos na área da Educação (como é o caso das Escolas Superiores de Educação dos Institutos Politécnicos do Porto, de Viana do Castelo e de Leiria), mas também ONG (como o Instituto Marquês de Valle Flôr, em São Tomé e Príncipe, e a Fundação Fé e Cooperação na Guiné-Bissau e Angola) e outros actores da sociedade civil (por exemplo, a Fundação Portugal-África, em Moçambique). O estudo identifica naturalmente vários aspectos menos positivos – desde a deficiente coordenação entre os actores da cooperação portuguesa nesta área (nomeadamente entre os projectos das instituições públicas e das ONGD), até questões comuns à cooperação portuguesa no seu todo, como a burocratização dos processos, a ainda insuficiente cultura de avaliação e incorporação de lições aprendidas, ou a falta de previsibilidade dos financiamentos. As recomendações formuladas vão exactamente no sentido de colmatar essas dificuldades, no sentido de construir uma visão estratégica mais integrada e coordenada entre os vários actores da cooperação portuguesa que intervêm neste sector – e que são de facto em grande número, incluindo a cooperação descentralizada, as ONGD, as escolas e institutos, as igrejas, entre outros. O que é ainda necessário fazer para melhorar a eficácia da ajuda? A incerteza actual relativamente ao Fundo da Língua – que financia alguns dos grandes projectos da cooperação portuguesa para a Educação – ou a necessidade de aprovação anual de alguns fundos prejudica claramente a execução dos projectos (por exemplo, atrasando por vezes a deslocação de professores face ao calendário lectivo dos países parceiros). Outra forma de aumentar a eficácia é melhorar a coordenação dos actores da cooperação portuguesa. Ao longo da última década foram inúmeras as acções não enquadradas que resultaram de contactos bilaterais (missões, anúncio de apoios no terreno aquando de visitas ministeriais, assinatura de protocolos sectoriais), sem real capacidade de coordenação do IPAD (agora fundido com o Instituto Camões), onde também não existe uma abordagem sectorial das questões da Educação. Esta descoordenação torna-se especialmente visível no terreno, quer perante as autoridades dos países parceiros, quer perante os outros doadores internacionais. Para além da coordenação interna há também grande potencial para apostar, cada vez mais, em acções conjuntas com outros doadores, onde a cooperação portuguesa ainda tem pouca tradição. Os fundos de outros parceiros podem ser essenciais para implementar acções que têm várias componentes (desde a construção de escolas à reformulação dos currículos). Como vê a fusão da cooperação portuguesa para a Educação com a promoção da língua e cultura portuguesas? Não é possível contabilizar as acções de promoção da língua como ajuda ao desenvolvimento, segundo os critérios da OCDE. As recomendações deste organismo à cooperação portuguesa, em 2010, afirmavam a este propósito que, não obstante a língua portuguesa ser a língua veicular do ensino e das acções de cooperação, a No entanto, as opções tomadas vão no sentido contrário, como atesta a fusão institucional entre o IPAD e o Instituto Camões, ou o estabelecido nas Grandes Opções do Plano para 2012-2015, onde se refere o ensino ‘da’ Língua Portuguesa (em vez do reforço do ensino ‘em’ Língua Portuguesa) como um objectivo a prosseguir no contexto da cooperação para o desenvolvimento. Tudo depende agora de como funcionar na prática essa fusão, mas transmite certamente uma imagem de regressão em termos internacionais e pode representar uma confusão de conceitos e de práticas no relacionamento com os países parceiros da cooperação. Em suma, qual é o actual panorama da cooperação portuguesa no sector da Educação, face às metas de Ajuda Pública ao Desenvolvimento nesta matéria? E como funciona essa cooperação nos principais países parceiros? Assim, é necessária uma estratégia adaptada não só às necessidades de cada país, mas ao contexto internacional da ajuda ao desenvolvimento no país e ao valor acrescentado que a cooperação portuguesa tem nesse quadro. A posição de Portugal varia consideravelmente no cômputo geral dos doadores em cada país, o que se reflecte na sua capacidade de influência e liderança do sector: se na Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste ocupa um lugar de destaque no apoio à Educação, em Angola e Moçambique a intervenção é mais modesta devido à dimensão das necessidades e das intervenções. Os instrumentos também variam, incluindo por exemplo a ajuda orçamental através do Fundo de Apoio ao Sector da Educação (FASE) em Moçambique, embora a cooperação portuguesa seja implementada na vasta maioria através de projectos. O facto de não existirem delegações da cooperação no terreno, com maior autonomia de fundos e de competências, tem prejudicado a celeridade e eficácia da cooperação portuguesa no geral. A nível global, houve uma evolução positiva no acesso à Educação, mas com disparidades geográficas e sectoriais e com o abrandamento de alguns progressos, como a ajuda estagnada ou o desinteresse pelo tema na Agenda internacional. A que se devem essa evolução e esse abrandamento, no actual contexto socioeconómico? Por seu turno, o crescimento da importância dos doadores emergentes não parece ter grandes reflexos na ajuda internacional para a Educação, já que a vasta maioria da ajuda ao desenvolvimento concedida pela China e pela Índia se destina a outras prioridades, como as infra-estruturas de transporte ou de energia. Entre os chamados doadores “tradicionais”, muitos estão a utilizar o argumento de que têm de concentrar mais a sua ajuda em termos sectoriais e geográficos para retirar apoios a determinados países ou áreas, quando na verdade essa diminuição tem a ver com dificuldades internas e com a necessidade de limitarem os financiamentos públicos para a cooperação. O desafio do financiamento da Educação é, assim, um dos principais problemas com que se confrontam os países em desenvolvimento, pelo que a diversificação das fontes externas de recursos e a procura de fontes inovadoras ou não tradicionais de financiamento devem também estar no centro dos debates internacionais sobre a matéria. |
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Jornalista