Ano após ano, os índices de confiança nas instituições têm vido a declinar.
E, sem confiança, as sociedades ficam mais vulneráveis ao caos e ao conflito, e com uma menor capacidade para criar e inventar. Num artigo publicado pela Stanford Social Innovation Review, no qual se escreve que “a confiança é o sistema imunitário da sociedade”, são propostos seis caminhos para inverter este défice de confiança pública. A serem trilhados por todos nós
Traduzido e adaptado por HELENA OLIVEIRA
© Stanford Social Innovation Review
Os níveis de confiança pública estão a cair a pique e a varrer o globo. Estão a afectar as relações entre as pessoas e os seus governos, contagiando outras instituições sociais. Sentimos esta erosão de confiança nos media sociais e na política doméstica, nas nossas comunidades e até nos jantares com amigos. A desconfiança “injecta-se” na retórica pública e nos debates políticos, funcionando como um obstáculo ao interesse público. Em conjunto, esta desconfiança cumulativa está a prejudicar a capacidade das instituições sociais para funcionarem e para servirem as pessoas que devem beneficiar. E se os investigadores estão certos quando afirmam que a confiança é muito mais fácil de destruir do que construir, as consequências do défice de confiança hoje sentidas poderão perseguir as gerações vindouras.
Tal como o professor de Harvard, Tarun Khanna, descreve no seu livro Trust: Creating the Foundation for Entrepreneurship in Developing Countries, as instituições que inspiram confiança “empurram” as sociedades para a frente ao assumirem dois papéis importantes: por um lado simplificam significativamente o quotidiano e, por outro, permitem a existência de novas soluções colaborativas. Ou e por outras palavras, instituições de confiança lubrificam a máquina social. Inversamente, a escassez de confiança nas instituições produz custos. Khanna e outros académicos afirmam que quando os cidadãos não sentem confiança, torna-se menos provável que cumpram leis e regras, que paguem impostos, que tolerem pontos de vista diferentes, que contribuam para a vitalidade da economia, que resistam ao apelo dos demagogos e que apoiem os seus vizinhos. Sem confiança, as sociedades ficam mais vulneráveis ao caos e ao conflito. E tal traduz-se numa menor capacidade para criar e inventar.
Encontrar uma cura
Não existe nenhum principal culpado do aumento desta desconfiança, mas é possível enumerar alguns bons candidatos: a corrupção nos sectores público e privado, a retórica pública venenosa, a incapacidade dos governos em garantirem segurança essencial e serviços humanizados, as falhas na justiça, o aumento da desigualdade económica, as percepções de que nem as vozes individuais nem os votos contam, e o sentimento de que as elites e os poderosos manipulam o sistema – todos os sistemas – para benefício próprio. Adicionalmente, o clima volátil que caracteriza os media no geral, e os media sociais no particular, e que contribui para a disseminação da desinformação e da polarização, exacerba as divisões e os sentimentos de indignação social.
É provável que esta crescente epidemia de desconfiança possa acabar por si mesma. Não é a primeira escalada de desconfiança pública na história mundial. Mas, e por outro lado, o défice de confiança pública pode conter os ingredientes para a sua própria cura: ao se acentuar a disfunção e a iniquidade, as pessoas poderão responder com novas coligações e soluções que, por seu turno, poderão superar divisões, realinhar estruturas de poder e reconstruir a confiança pública.
Todavia, a maior preocupação é que nada disto aconteça e que as sociedades confiem apenas numa ilusão – em vez de fazerem um esforço proactivo – para que algo mude, sendo esta uma perspectiva assustadora. Em muitos países, a disfunção e a desconfiança alimentam-se a si próprias e consomem exactamente as instituições que deveriam estar à procura de soluções. Na verdade, instituições fracas e pouco credíveis criam uma espécie de armadilha. E como é que se pode escapar dela? Na verdade, as sociedades podem repor os seus níveis de confiança e coesão social, trilhando alguns caminhos específicos.
Assegurar que as instituições são eficazes e que oferecem benefícios reais às pessoas
O mais importante determinante da confiança social nas instituições – estejamos a falar de escolas, hospitais, bibliotecas, departamentos sanitários ou governos locais – consiste em quão bem fazem o seu trabalho e se oferecem um valor real aos cidadãos. A execução no dia-a-dia pode não ser propriamente glamorosa, mas é o que realmente importa.
A boa notícia é que as instituições podem aprender e melhorar a sua execução e existem muitos recursos – entre eles o livro Execution: The Discipline of Getting It Done – para ajudar. Claro que aqueles que detêm o poder não desistem dele facilmente nem oferecem necessariamente uma oportunidade aos outros, mas melhorar a eficácia e o impacto das instituições é possível. Mas exige que as organizações alinhem o seu compromisso e incentivos e que tenham vontade de seguir em frente.
Por outro lado, ajuda também o facto de os cidadãos estarem conscientes da sua performance eficaz, de confiança e no tempo certo, na medida em que ter consciência de comportamentos passados ajuda a construir a confiança no futuro. Empresas, governos, instituições educativas, agências humanitárias e outros organismos podem todos contribuir para tornar as instituições mais eficazes.
Desenvolver futuros líderes que trabalhem para o bem maior e não para si mesmos
Em mais países do que seria desejável, os líderes governamentais mantêm-se nos seus cargos durante décadas. Muitos deles reprimem a oposição, utilizam os seus cargos para benefício próprio e para o dos seus aliados e pouco ou nada fazem para fortalecer a responsabilização ou a transparência. E é muito mais difícil reformar líderes enraizados como estes do que “fazer crescer” outros novos que trabalhem para o bem comum e não se enriqueçam a si mesmos às custas dos dinheiros públicos.
Líderes que se agarram ao poder representam um desafio global, sendo este fenómeno particularmente visível em África, onde políticos envelhecidos lideram algumas das mais jovens populações do mundo. Na verdade, 28 das 30 populações mais jovens do mundo situam-se em África, bem como sete dos 10 líderes mais velhos do mundo. Este desfasamento deixa muito poucas oportunidades aos líderes mais jovens que podem emergir como tal, apesar do aumento do pluralismo e da democracia ao nível nacional, regional e local. E quando existe uma escassez de oportunidades – seja em África ou em outra parte do mundo – muitos jovens acabam por ir para o estrangeiro, retirando do país talento precioso.
Seja em que região for, os países precisam de desenvolver pipelines de líderes talentosos e oferecer oportunidades para que pessoas com pontos de vista diferentes e backgrounds distintos possam participar na governação, nas empresas e na vida cívica. E essa é a ideia subjacente ao programa Mandela Washington Fellowship, o qual identifica jovens africanos promissores e trabalha as suas competências e conhecimentos para, eventualmente, os preparar para liderar instituições e fortalecer as normas democráticas nos seus países natais. O mesmo propósito tem o investimento no valor de 280 milhões de dólares da Ford Foundation, um programa de bolsas de estudo internacionais, o qual apoia a próxima geração de fazedores de mudança social em países em desenvolvimento.
Fortalecer a responsabilização e a transparência
Em muitos países, a corrupção é insidiosa e os índices de corrupção publicados pela Transparency International têm demonstrado que a maioria deles pouco ou nenhum progresso tem atingido nas tentativas para a eliminar. Mas, e como defende a própria Transparency International, existem remédios, os quais incluem: a quebra do ciclo de impunidade através do reforço das leis; o aumento da gestão e das auditorias financeiras; assegurar uma maior abertura dos governos, maior liberdade de imprensa e acesso à informação; conferir aos cidadãos maiores capacidades para monitorizarem e reportarem casos de corrupção; e terminar, de uma vez por todas, com a lavagem de dinheiro por parte de bancos e instituições financeiras offshore. A tendência é para pensarmos que a corrupção está tão enraizada que nada há a fazer. Mas muitos países conseguiram superar enormes legados de corrupção, como é o caso de Hong Kong, Singapura, a Geórgia ou o Ruanda.
E são também várias as instituições que podem contribuir para uma maior prestação de contas e transparência. Um sector de media independente pode expor a corrupção e outras falhas. Os tribunais e as autoridades policiais podem assegurar que até os mais poderosos não escapam impunemente. Um governo aberto e serviços de e-government podem também reduzir a corrupção ao tornarem os processos de adjudicação transparentes e fornecendo os serviços directamente aos cidadãos.
Envolver os cidadãos na resolução de desafios comunitários e societais
A confiança cresce quando as pessoas sentem que fazem parte de uma comunidade ou sociedade, que leva em consideração a sua voz e as suas preocupações – particularmente nos casos em que essa mesma confiança é baixa.
Consideremos o exemplo da Ucrânia, onde os cidadãos não confiavam, historicamente, na sua significativamente corrupta força policial, a qual os mandava parar arbitrariamente e exigia subornos. No seguimento da revolução Euromaidan de 2014, que conduziu a uma reforma governamental com um mandato anti-corrupção, o governo ucraniano instituiu uma reforma das suas forças policiais no país todo, recrutando um quadro de polícia comunitária inteiramente novo. Todavia, a confiança não surge da noite para o dia: o governo foi obrigado a esforços deliberados para mudar as atitudes da população e estabelecer novas expectativas. Um desses esforços é um programa denominado Citizen Engagement and Reform Communication Program, o qual até agora já envolveu mais de 11 mil cidadãos ucranianos, ONGs e os media em reuniões com a polícia local.
Os encontros proporcionaram à polícia uma maior sensibilidade face às necessidades e preocupações da comunidade; conduziram a reformas policiais substanciais, tal como a criação de uma força especializada para responder de forma mais eficaz a situações de violência doméstica e resultou também numa maior compreensão e respeito pelo papel da polícia na sociedade. Os cidadãos que participaram na iniciativa aumentaram as suas atitudes positivas para com as autoridades de 40% para 73%, o que sugere que depositam agora uma confiança muito maior nas mesmas.
Reforçar a coesão social
Quando as pessoas se sentem afastadas das oportunidades devido a questões de género, raça, idade, grupo étnico ou religioso, incapacidade ou por outras razões, é difícil esperar que confiem nas mesmas instituições que as marginalizam. Divisões sectárias em muitos países prejudicaram profundamente a boa governança e a prosperidade económica, o que resultou, muitas vezes, num pretexto para a violência.
Um estudo exaustivo elaborado em 2013 pelo Banco Mundial, bem como outros relatórios sucessivos da mesma instituição, identificou uma multitude de formas para aumentar a inclusão social. Reformas na redistribuição de terras que conferem aos residentes de longo prazo a possibilidade de estes serem proprietários, em conjunto com o acesso à banca e competências financeiras e educativas para ajudar muitas pessoas a ultrapassar barreiras económicas.
O relatório defende também o alojamento para pessoas com deficiência; transportes acessíveis; tratamento justo nos tribunais; uma melhor “competência cultural” entre os fornecedores de serviços de saúde e sociais que trabalham com pessoas de diversos backgrounds; a utilização de linguagens múltiplas nas comunicações públicas e esforços concretos e conscientes para integrar imigrantes e outros nos sistemas sociais vigentes. Adicionalmente, defende também dar às raparigas e às mulheres educação básica e de níveis superiores para que estas possam prosperar, em conjunto com cuidados de saúde de qualidade e acesso pleno a oportunidades económicas e políticas.
Estabelecer um compromisso real
Nenhum destes caminhos poderá ser percorrido a não ser que os líderes governamentais, empresariais, cívicos e de outras instituições façam um esforço legítimo para reconhecer o problema da desconfiança social, dando passos para melhorar as suas políticas, práticas e retórica.
Uma liderança que aborde o défice de confiança pode ser proveniente de vários quadrantes. Pode ter origem nas próprias instituições, sejam elas empresas, governos, sociedade civil ou dos media, e a nível global, nacional, regional, local e até de bairro. Os cidadãos podem-se organizar e lutar pela mudança. E cada um de nós pode dar passos no sentido de reconstruir a confiança no interior das nossas comunidades. Devemos também exigir aos políticos que nos representam e que apoiamos com os nossos votos e impostos, em conjunto com as empresas que apadrinhamos, que se comportem mediante formas que contribuam para melhorar a confiança social.
Os filantropos, as ONGs e os investidores sociais têm também um papel a desempenhar. Ao desenvolverem e apoiarem iniciativas que estimulem a confiança social, podem criar elementos de base que conduzam a maiores níveis de confiança. Podem igualmente apoiar esforços que estudem e analisem o que melhor funciona. Apesar de sabermos muito sobre o que provoca erosão na confiança, sabemos muito pouco sobre como restaurá-la. Os dados, as bases probatórias e os fundamentos analíticos de como é possível recuperar a confiança são fracos e os desafios são enormes. Mas as comunidades e até nações inteiras que não seguirem estas medidas e outras formas de restaurar e manter a confiança dos cidadãos arriscam-se a enfrentar crises complexas, ao não terem a unidade e o capital social necessário para competir e muito menos para prosperar.
No livro A Savage Order: How the World’s Deadliest Countries Can Forge a Path to Security, a autora Rachel Kleinfeld sugere que a confiança é o sistema imunitário da sociedade. E a verdade é que precisamos de nos defender contra um hospedeiro de vários males sociais. Reconstruir a confiança social é possível e, talvez, as feridas da desconfiança social possam curar-se a si mesmas. Mas a esperança não é uma estratégia. É crucial uma abordagem mais responsável que, de forma proactiva e preventiva, restaure a confiança nos governos, nas empresas e nas instituições cívicas. E este é um objectivo que deve ser perseguido por todos.
Sobre a autora: Kristin M. Lord é presidente e CEO da IREX, uma organização sem fins lucrativos dedicada ao desenvolvimento e à educação global.
Traduzido com permissão de “Six ways to repair declining social trust”. © Stanford Social Innovation Review 2019
Editora Executiva