A pandemia atingiu um mundo já instável, marcado por contradições. Por um lado, assistimos a falta de coordenação e até mesmo competição entre as pessoas, as instituições e países. Mas, por outro, fez-nos recordar que as nossas prioridades são partilhadas por outros e que a cooperação e a solidariedade são chave para encontrar soluções globais
POR MARIA DE FÁTIMA CARIOCA
Estamos todos conscientes do desafio que a pandemia nos colocou como país e à escala global e, mais do que nunca, ao olhar o futuro pós-covid, compreendemos que é decisivo estabelecer prioridades claras e unir forças. Neste mesmo sentido, o Programa da Presidência alemã do Conselho da UE, que se desenrolará durante este segundo semestre de 2020, colocou como meta: “Juntos. Relançar a Europa”. Na realidade, são duas metas. Uma primeira que visa o fortalecimento económico da Europa, apoiada em estratégias de sustentabilidade, inclusão e coesão social, inovação e digitalização. E uma segunda que afirma a necessidade de que esse caminho seja trilhado em conjunto, articuladamente, de forma a que todos os países europeus recuperem da crise instalada.
Porém, persiste a razoável dúvida sobre se vamos ultrapassar a crise de forma adequada, duradoura e eficaz. Aquando da apresentação na AESE do livro “Esperança e Reinvenção”, coordenado por Luís Ferreira Lopes, uma vez mais, as perguntas surgiram: Conseguiremos não abdicar de critérios de sustentabilidade em nome de uma suposta eficiência económica de curto prazo? Continuaremos a viver a solidariedade e articular recursos como o fizemos durante a pandemia?
A minha resposta é que devemos, podemos e é muito bom que o façamos.
Estados, empresas e organizações em geral, produtos e serviços devem considerar a sua responsabilidade social e ambiental. Já antes da pandemia vinha em crescendo a exigência pública para as empresas agirem de forma responsável e proativa. A crise apenas intensificou essa tendência. Muitas empresas foram forçadas, sob a pressão da pandemia, a reinventar-se, a mudar estratégias, a repensar abordagens e objetivos e fizeram-no mais rápido do que alguma vez imaginariam. Passaram a produzir ventiladores, máscaras, viseiras, álcool-gel, zaragatoas, vestuário, a fornecer alimentos a clientes diferentes, por outros canais, etc. Fizeram tudo isto não deixando de cumprir critérios de produção ainda mais rigorosos e contribuindo para um controlo mais eficaz do contágio.
O espetro de uma recuperação suja começa, porém, a pairar. Olhando para a China, um dos primeiros países a reabrir, concluímos que a promissora melhoria na qualidade do ar verificada em fevereiro e março quando as suas fábricas, a distribuição e o transporte pararam, por agora já se esfumaram.
Mas a temática da sustentabilidade não se reduz ao ambiente, devendo integrar, em simultâneo, a consideração da responsabilidade social. De pouco interessa salvar o planeta se não pudermos viver nele com dignidade. Muitos dos desafios atuais ligam-se diretamente com o uso (abuso) dos recursos disponíveis – água, energia, alimentos, matérias-primas – e os impactos que a sua utilização excessiva e descontrolada causa nas alterações climáticas, na biodiversidade, na produção de resíduos e desperdício. No entanto, as respostas ecológicas não se podem reduzir a um conjunto de soluções ambientais. A resposta necessita de ser integral e, desde logo, antropológica, afirmando a centralidade e primazia do ser humano em sociedade.
Estamos a viver uma oportunidade única para inovar em modelos de negócios, serviços e produtos em torno de novas definições de valor. A própria digitalização como motor e acelerador da mudança, foi protagonista de uma mudança sem precedentes durante a pandemia. Mas há que não esquecer que subjacente a este progresso tecnológico e desenvolvimento económico devem estar / têm de estar critérios éticos muito claros. É imperativo – não é opcional – para as empresas adotar uma visão sistémica e de longo prazo, olhando o mundo e a sua complexidade, refletindo sobre o seu impacto no mundo e na sociedade. Envolve, naturalmente, fazer escolhas, optar por abordagens rigorosas e dar tempo. Exige coragem para reconhecer e audácia para responder a este desafio. Mas muitas oportunidades se abrem e, a seu tempo, é mesmo a única estratégia que compensa e que gera retorno a todos os níveis.
A pandemia atingiu um mundo já instável, marcado por contradições. Por um lado, assistimos a falta de coordenação e até mesmo competição entre as pessoas, as instituições e países. Mas, por outro, fez-nos recordar que as nossas prioridades são partilhadas por outros e que a cooperação e a solidariedade são chave para encontrar soluções globais. Agora que estão em causa as medidas combinadas de estímulo à economia, vitais para a recuperação de cada país, é bom ter em conta que a coordenação entre os países tornaria as medidas de estímulo consideravelmente mais eficazes, enquanto que ações descoordenadas ou unilaterais podem agravar os custos sociais e económicos, direta e globalmente.
De facto, as consequências sociais das medidas tomadas, nomeadamente em termos de pobreza e desigualdade social, tal como o vírus, não conhecem fronteiras. Para dar uma ideia, estima-se que no ano passado as remessas enviadas por trabalhadores migrantes para os países de origem totalizaram 554 biliões USD – mais de três vezes a ajuda ao desenvolvimento dispensada pelos chamados países ricos, segundo o Banco Mundial. Este ano, no geral e de acordo com uma estimativa das Nações Unidas, a pandemia prejudicou o poder aquisitivo de 164 milhões de trabalhadores migrantes que apoiam pelo menos 800 milhões de parentes.
Devemos e podemos … Na realidade, em última instância, o que se pede a todos nos dias de hoje, é sobretudo uma mudança de comportamentos. Ora, neste momento, não há dúvida de que somos capazes de mudar hábitos e que podemos fazê-lo muito rapidamente. O confinamento encorajou muitas e muitas pessoas a adotar soluções digitais, seja por razões profissionais seja por razões sociais e, potencialmente, suavizou a adoção futura de tudo o que já conhecemos e o que ainda nem imaginamos. Além disso, fez-nos vivenciar estilos de vida diferentes, mais saudáveis e tendencialmente mais humanos não fosse a agressividade das medidas de distanciamento social. Fez-nos, por último, experimentar a fragilidade e vulnerabilidade do ser humano, individual e coletivamente.
Perante esta realidade que vamos atravessando, deveria agora ser fácil comprometermo-nos com padrões de maior sobriedade na utilização e reutilização de recursos, mas muito em especial habituarmo-nos a olhar o mundo com um olhar diferente que valorize e integre convenientemente cada pessoa. E isso sim, é bom, mesmo muito bom!
NOTA: Artigo originalmente publicado no Negócios, a 28-7-2020
Professora de Factor Humano na Organização e Dean da AESE Business School