POR HELENA OLIVEIRA
Miguel Pina e Cunha, em conjunto com outros seus pares académicos*, respondeu a um repto da ACEGE para desenvolver um paper que explorasse a forma como os líderes interpretam a denominada cultura de amor nas organizações em que trabalham. Partindo do livro escrito pelo presidente da Associação, António Pinto Leite, intitulado “O Amor como critério de gestão”, os académicos em causa concluíram, numa fase inicial da sua pesquisa, que apesar de o amor ser talvez o mais poderoso dos processos humanos e que, continuamente, tem atraído a atenção de académicos nos vários domínios culturais e científicos, o mesmo não acontecia na teoria e investigação relacionada com a gestão.
O VER conversou com Miguel Pina e Cunha sobre os principais resultados do estudo, cuja amostra incluiu 26 CEOs pertencentes à ACEGE, os quais têm vindo a reflectir sobre o amor enquanto fenómeno organizacional, e a implementar na prática, este “estilo” de gestão nas empresas que lideram. Os fundamentos teóricos e outro tipo de resultados mais gerais serão apresentados num outro artigo, presente nesta mesma edição.
O repto para a realização deste paper surgiu como resposta a um livro escrito pelo presidente da ACEGE – António Pinto Leite – que se intitula “O Amor como critério de gestão”. Em termos de fundamentos teóricos, revelaram alguma “negligência”, por parte dos autores que se dedicam a temas de cultura organizacional, no que respeita ao termo “amor” como uma interpretação estrutural na pesquisa em gestão. A seu ver, que principais factores contribuem para esta espécie de “pudor” em considerar o amor como um fenómeno organizacional?
É interessante que se encontre referência ao amor em todo o lado, menos no trabalho. Uma explicação possível é que toda a teoria de gestão – começando logo pelos grandes clássicos, ou nomeadamente por alguns clássicos, como Frederick W. Taylor ou Max Weber – considerava a organização sobretudo como uma construção racional e legal, e portanto, a ideia que prevalece durante muito tempo é a de que a organização é uma construção racional. Sabemos também que há quem defenda que quando chegamos ao trabalho, devemos deixar o lado pessoal e as emoções de fora. E essa maneira de ver a organização acaba por prevalecer ao longo de quase todo o seculo XX, até que finalmente, já quase no seu final, surge o interesse pela inteligência emocional [pela mão de Daniel Goleman], a qual vem, de algum modo, inverter essa interpretação. Portanto, e pela primeira vez, a ideia que surge é que é possível, e necessário, gerir o lado humano, na medida em que as pessoas não deixam as emoções lá fora quando entram pela porta da empresa. E mesmo que conseguíssemos fazê-lo isso não era adequado. Assim, toda a linha dos estudos organizacionais positivos acaba por vir aprofundar esta noção ao enfatizar temas que estavam completamente fora da discussão. Por exemplo, nas minhas aulas costumo falar de temas que há 10 ou 15 anos não passavam pela cabeça de ninguém fazerem parte de uma aula de gestão. A questão do perdão, a questão das virtudes, a questão da humildade, a generosidade, entre outros, os quais são, no fundo, processos humanos mais ou menos básicos no sentido em que fazem parte da nossa vida, mas que nas organizações eram considerados como uma espécie de tema tabu.
Isso significa que estamos a assistir a uma mudança efectiva no que a estes temas diz respeito?
Sim, pelo menos em alguns contextos em que as pessoas são vistas holisticamente. Uma pessoa tem razão e tem emoção, e separar uma e outra é um artificialismo que não beneficia ninguém. Nem as organizações, nem as pessoas, obviamente. Portanto, o que me parece é que existe uma maior sensibilidade para alguns processos humanos básicos – como este do amor, que é uma emoção fundamental para muitos autores – virem a ser tratados, e neste caso em particular, não no sentido romântico do tema, mas no sentido de amor ao próximo. Alguns autores chamam a isto “companionate love”.
A vossa amostra incluiu 26 CEOs, todos eles católicos e seleccionados exactamente por já terem desenvolvido reflexões pessoais sobre tópicos relacionados com a virtude, a verdade, a justiça e que clamam estar a viver, nas suas próprias empresas, o amor enquanto fenómeno organizacional. Relativamente ao universo de entrevistados, gostaria que explicitasse os resultados mais importantes relativamente às questões de partida que lhes foram colocadas:
- De que forma é que interpretam o conceito do amor nas suas práticas de gestão diárias e como é que essas interpretações podem ser traduzidas em acções?
- E que consequências – incluindo ao nível económico – têm essas mesmas acções?
Porque o livro original de António Pinto Leite é mais uma reflexão pessoal, quase introspectiva, o nosso objectivo era ver o que é que as pessoas, na prática e numa perspectiva mais managerial, associavam à noção de amor enquanto critério de gestão. As entrevistas realizadas foram deliberadamente “abertas”, para que os entrevistados pudessem explorar o tema da maneira que considerassem mais interessante. E eu diria que o grande resultado do trabalho se resume à associação que é feita a dois temas principais: por um lado, a questão da(s) virtude(s) – o amor é uma forma de abordagem virtuosa da organização -, e, por outro, a noção da comunidade humana de trabalho, no sentido em que a organização não é apenas uma máquina produtiva, mas sim uma comunidade onde sentimos que temos um objectivo comum e partilhado.
No que respeita às virtudes sublinhadas pelos entrevistados, enquanto intrínsecas e que fazem com que alguém seja admirável, em conjunto com outras que são particularmente relevantes para as práticas organizacionais, como a temperança, o humanismo, a coragem, a humildade, a justiça e a transcendência, o vosso paper conclui que estas mesmas virtudes são expressas através da prática repetida das forças de carácter, do exercício da rectidão – justiça, verdade, transparência e respeito, disponibilidade para os outros (emocional, física e espiritual) e predisposição para reconhecer e estar atento às necessidades dos que nos rodeiam. “Fazemos parte dos outros e os outros fazem parte de nós”, afirma um dos entrevistados. Se estas virtudes podem ser consideradas como quase universais, o que é que as diferencia neste contexto em particular?
No fundo, em termos organizativos e de liderança, está tudo lá. A virtude é um meio-termo equilibrado entre dois extremos que não são virtuosos. Nesse sentido, não tem nada de novo. Tudo isto já foi dito na Antiguidade clássica e o que é interessante aqui é, sobretudo, a persistência. Ou seja, algumas dimensões que são universais, visto serem intemporais. Mas basta pensarmos em tudo o que tem vindo a acontecer, para vermos que é fácil esquecermo-nos daquilo que é básico: a ideia de que a liderança deve ser um exercício de expressão ética e virtuosa, o que nos últimos anos parece ter sido esquecido ou secundarizado em muitos casos. Eu posso falar muito das virtudes e não ser nada virtuoso. As virtudes praticam-se, não se apregoam. A ideia diferenciadora aqui é que se uma organização se assume como uma fonte de virtudes, então convém que seja consequente.
Mas que aspectos particulares lhe pareceram mais importantes ao nível destas virtudes? Ou seja, como é possível garantir que este tipo de organizações consiga colocar a prática das virtudes em detrimento das pressões dos mercados, da concorrência, no seu dia-a-dia, e num mundo em que é tudo tão complexo?
Evidentemente que isso não se resolve com códigos de ética e o desafio é exactamente como é que conseguimos ser virtuosos apesar das pressões do mercado. Eu penso que passa muito por criar culturas éticas, no sentido em que a própria cultura neutraliza as tentações que os gestores possam vir a ter. Nesse sentido e como é obvio, a pressão para resultados de curto prazo não é um factor que torne estes temas mais queridos na C-suite. Por outro lado, também sabemos que existem organizações que conseguem manter uma postura ética consistente ao longo do tempo e isso não as torna menos competitivas. O que me parece mais importante é que quem lidera consiga perceber que tipo de cultura está a criar…
Isso leva-nos a outra conclusão que é a do líder enquanto role model, a qual é também expressa no paper: “os líderes consideram que conseguem disseminar este amor agindo como ‘modelos positivos a seguir’ e orientados pelas suas convicções ‘interiores’”. Ou ainda “esta natureza virtuosa do amor pode ser sentida através da forma como os gestores comunicam com o seu staff, incluindo a sua capacidade de os perceber e os ouvir e também por não tomarem decisões apressadas, pensando sempre nas consequências mais amplas dessa decisão”.
Sim, no fundo a primeira fonte de construção de uma cultura é o comportamento de quem manda. Os líderes são exemplo para o bem e para o mal. Quando se diz “deve-se liderar pelo exemplo”, eu acho que se se lidera sempre pelo exemplo. Pode é ser um mau exemplo. E a diferença reside exactamente nas pessoas que estão dispostas a liderar para o longo prazo e até ganhar menos para manter a organização sustentável e os casos em que o que interessa é o próximo trimestre e, portanto, o curto prazo sobrepõe-se a todas as demais questões. Na ideia subjacente a gerir com amor, ou assumir o amor como critério de gestão, eu devo ser o exemplo daquilo que quero praticar. E estamos a falar de pessoas que vêm da rede da ACEGE. Ou seja, não me basta transmitir uma mensagem, mas sim ser um agente da minha mensagem, sob pena de o meu discurso não casar com a minha acção.
Sim, mas a questão do curto e do longo prazo é um dos grandes temas que se coloca e já há alguns anos a esta parte, no mundo da gestão. É também um dos motivos porque falamos tanto em sustentabilidade. O que eu pergunto é: de acordo com a noção que existe hoje em dia, de que as empresas estão todas a ficar muito boazinhas porque têm departamentos de RS e porque nos seus relatórios constam todas estas virtudes que aqui são expressas, até que ponto é que podemos acreditar que está realmente a existir uma mudança de comportamento?
Em primeiro lugar, é interessante a expressão que usou que as empresas estão a ficar boazinhas. Mas atenção que ser bom não é o mesmo que ser bonzinho, tal como ser santo não é a mesma coisa que ser santinho. Pelo contrário, o que me parece é que ser bom exige tomar, por vezes, decisões duras. Portanto, acho que as organizações devem ser boas nos vários sentidos da palavra e não boazinhas. Mas estarão as empresas a ficar melhores ou não? O facto de terem essas declarações não quer dizer nada. Basta vermos o exemplo do BPN ou da Enron. Mais uma vez as virtudes praticam-se, não se apregoam. O que nos leva à questão que me parece que é onde se torna inteligente abordar a RS – e no fundo este amor pela comunidade – que é uma das dimensões que aparece no paper – a organização como comunidade, que também se articula com outras comunidades que estão à sua volta. O que eu penso é que é possível ter uma visão estratégica da nossa relação com a comunidade. E eu posso saber coisas que me defendem na comunidade e que defendem o negócio enquanto parte de uma determinada comunidade. O exemplo de que gosto mais é: quando uma empresa de água mineral protege o ambiente natural à sua volta, está a proteger-se a ela própria. E eu acho que isso faz todo o sentido.
Antes de passarmos à segunda dimensão – a de comunidade – os entrevistados referem também que é necessário construir os valores da empresa que estejam em linha com aquilo que o amor representa. Nomeadamente, os valores da participação, da perseguição do bem, de encontrar soluções que funcionem para todos os stakeholders e não só para os accionistas, a busca da honestidade, da sinceridade e das boas práticas. E a transformação em força motivacional para se agir de modo moral e bom. Estamos a falar de um ideal ou é possível seguir esta filosofia de gestão?
Eu penso que a ideia principal é a de que as pessoas são todas mais ou menos iguais e querem todas a mesma coisa. Todos querem ser bem tratados, ter alguma segurança naquilo que fazem, ser respeitados, ter um trabalho que tenha algum significado (…) acho que isso é mais ou menos universal. E se eu aceitar isso como universal e formar a minha filosofia de gestão a partir destes valores, eu posso criar organizações nas quais isto seja verdade. Todavia, eu penso que devemos ser igualmente realistas quando falamos concretamente desta questão do amor. Não quero passar a ideia que tudo isto é cor-de-rosa e que temos de gostar todos uns dos outros. O ponto não é esse. Da mesma forma que quem tem filhos, tem de ser duro, por vezes, com eles, – na medida em que amar as pessoas não significa que vale tudo – o mesmo acontece com este tipo de organizações. O tema que mais me apaixona nas organizações é a gestão de paradoxos. E isto também é paradoxal – no sentido em que não estamos a falar de amor incondicional, em que “faço tudo e estou disposto a aceitar tudo”. Não, tratar as pessoas com respeito também significa exigir. Portanto, aqui a questão é: como é que conseguimos ser exigentes e duros quando é necessário, e em simultâneo, respeitar as pessoas? Eu imagino que uma organização que adopte este tipo de lógica pode igualmente ser uma organização “dura” para trabalhar, no sentido que é exigente. Eu quero dar muito, mas também quero que me dêem muito a mim. Eu quero pessoas que tenham valor, que estejam dispostas a trabalhar arduamente, mas a organização também terá de as compensar. E cada organização pode interpretar o conceito à sua maneira, com estes pilares que incluem a noção de respeito, a noção de inclusão, a noção de comunidade de trabalho, mas não tem de ser necessariamente a filosofia barata de que “as pessoas são o nosso melhor activo” e tudo o resto é secundário. Afinal, é óbvio que se existe uma organização onde toda a gente é bem tratada, mas não tem recursos para sobreviver, que raio de amor pode ser esse? O que eu acho que é o desafio neste tema é ser positivo, sem ser ingénuo. Porque uma coisa não implica a outra.
Falemos então da segunda grande dimensão que sobressai deste paper e que sublinha que a forma de desenvolver culturas de amor consiste em encorajar e manter um sentido de comunidade. Apesar de a consideração da organização enquanto uma comunidade não ser nova – Henry Mintzberg utiliza o termo “communityship” para explicar como as organizações podem equilibrar as motivações individuais com os objectivos colectivos – é sugerido também no vosso paper que o amor pode ser um poderoso antídoto contra o individualismo e contra concepções “estreitas” de gestão no que respeita ao papel da organização. Que comentários tece no que respeita a esta ideia?
A ideia de que uma organização é uma comunidade humana é, para mim, a mais importante. E que faz todo o sentido hoje, como faria ontem ou como fará amanhã. Cada organização é diferente das outras organizações, mas este sentimento de comunidade humana é uma ideia muito poderosa e a verdade é que tem sido relativamente desconsiderada na teoria e na prática. É talvez a regra de ouro – e tal como António Pinto Leite explicita no seu livro – é “tratar os outros como queremos que eles nos tratem a nós”. Considero que este é um bom princípio de actuação, um princípio mais operativo – comparativamente ao que defende que “as pessoas são o melhor activo das organizações “– e, no fundo, talvez seja a nossa conclusão mais importante. Se a organização quer que os outros a tratem como se fosse deles, então tem que tratá-los como se fossem a organização. E considero que é um princípio poderosíssimo que temos andado a esquecer em nome de outras coisas que são mais “modernas”, mas muito menos poderosas.
Para terminar, houve alguma coisa que o marcou mais profundamente neste trabalho?
O que eu acho interessante é sobretudo a noção da importância de a ACEGE ter colocado, em Portugal, este tema em cima da mesa.
Sim, no fundo é uma espécie de “back to basics”… aos valores fundamentais que nos foram incutidos e que vamos esquecendo.
Eu cada vez defendo mais o regresso ao básico, no sentido positivo da palavra: ou seja, quanto mais básico, mais fundamental, e melhor. Provavelmente a melhor forma de motivar as pessoas é reconhecer e agradecer aquilo que elas fazem. E se isto é básico? É. É barato? É. O que é dramático é que podemos ter sistemas de gestão de compensação extraordinariamente sofisticados para gerir a motivação e depois construímos esses sistemas sofisticadíssimos em cima de bases que se esquecem do fundamental. Sendo que esse sistema e tudo o que ele dá não substitui o reconhecimento, que é também uma forma de amor.
Nota: O paper “ALL YOU NEED IS LOVE? A CONTEMPORARY ORGANIZATIONAL PHENOMENON” foi desenvolvido por:
Miguel Pina e Cunha, Nova School of Business and Economics, Universidade Nova de Lisboa
Stewart R. Clegg, University of Technology Sydney; Nova School of Business and Economics, Universidade Nova de Lisboa; Newcastle University Business School, UK
Claudia Costa, Nova School of Business and Economics Universidade Nova de Lisboa
António Pinto Leite, ACEGE
Arménio Rego, Universidade de Aveiro and Business Research Unit, ISCTE-IUL, Lisboa
Ace Volkmann Simpson, University of Technology Sydney
Marta Oom De Sousa, School of Business and Economics Universidade Nova de Lisboa
Editora Executiva