“Pensavam que uma bala nos reduziria ao silêncio, mas do silêncio saíram milhares de vozes”. Vozes que se juntam, desde 2012, à coragem e determinação da jovem activista paquistanesa na conquista do direito à educação para todas as crianças, especialmente as mais excluídas: as meninas. Depois da nomeação em 2013, Malala torna-se agora na primeira adolescente a vencer um Nobel, o da Paz. A sua causa ganha pernas para andar contra o extremismo, a intolerância e a violência, e o mundo ganha, na sua causa, uma réstia de esperança para que as gerações futuras consigam, através da poderosa arma que é a educação, exterminar de vez as atrocidades que ainda esta semana se perpetuaram no massacre numa escola de Peshawar
POR GABRIELA COSTA

“Eu conto a minha história não porque ela seja única, mas porque não é”

A verdade crua contida na afirmação de Yousufzai  Malala, que discursava na recepção do Prémio Nobel da Paz com a liberdade própria dos miúdos, mas o carisma – nascido da sua determinação – de uma pessoa (muito) crescida, estende-se tanto à história de terror que quase a matou, em Outubro de 2012, e que ainda esta 5ª feira vitimou brutalmente mais de 140 crianças no seu país de origem, o Paquistão, como aos vergonhosos números relativos à multidão de crianças sem acesso à educação, em pleno século XXI.

[pull_quote_left]58 milhões de crianças não têm acesso à educação. Metade vive em zonas de conflito[/pull_quote_left]

Do alto dos seus 17 anos, e dos seus 1, 57 metros de altura, “contando com os saltos altos”, Malala encantou mais uma vez o mundo com as suas palavras vibrantes: “embora na aparência eu seja uma menina, eu não sou uma voz solitária, eu sou muitas”.

Dedicando o prémio “às crianças esquecidas que querem educação, às crianças assustadas que querem a paz, às crianças sem direito à expressão que querem mudanças”, a jovem activista defendeu, como sempre faz, o direito à educação, insistindo na ideia lançada na intervenção que fez na ONU no dia do seu aniversário, a 12 de Julho de 2013, de que “uma criança, um professor, uma caneta e um livro podem mudar o mundo.”

A adolescente, agora a mais jovem vencedora de sempre de um Nobel, estava no seu local favorito quando recebeu a notícia da distinção: a escola, em Birmingham, no Reino Unido, onde reside desde que foi baleada pelos talibã.

© DR
© DR

“Símbolos da consciência do mundo”

Na cerimónia de entrega dos Nobel da Paz aos distinguidos em 2014 – Malala e o indiano Kailash Satyarthi, 60 anos (que desde que se dedica à luta contra o trabalho infantil já conseguiu retirar perto de 80 mil crianças desta escravidão, tendo fundado a organização Bachpan Bachao Andolan e movimentos como a Marcha Global contra o Trabalho Infantil e a Campanha Global pela Educação) -, realizada em Oslo, na Noruega, a 10 de Dezembro, o presidente do Comité, Thorbjørn Jagland, apelidou os dois laureados de “campeões da paz” e os melhores “símbolos da consciência do mundo” sobre a necessidade de união entre as nações.

Eleitos entre um recorde de 278 candidaturas, Malala e Satyarthi merecem o Nobel da Paz “pela sua luta contra a repressão de crianças e jovens e pelo direito de todas as crianças à educação”, considera o Comité. A jovem, já o disse e repetiu, quer fazer parte da “primeira geração a decidir ser a última que vê salas de aula vazias, infâncias perdidas, potenciais desperdiçados”.

[pull_quote_right]168 milhões de crianças no mundo são forçadas a trabalhar[/pull_quote_right]

Convocando os líderes mundiais “a agir, unindo-se” num esforço global pela educação, Malala anunciou que a prioridade, na aplicação do dinheiro do Prémio Nobel (num total de 8 milhões de coroas suecas, ou seja, quase 842 mil euros) é ajudar a dar às meninas de todo o mundo uma educação de qualidade, através do Fundo Malala.

A jovem paquistanesa explica que a história de uma das suas melhores amigas, que sonhava um dia tornar-se médica, mas que foi forçada a casar-se aos doze anos, tendo um filho logo em seguida, é a razão pela qual dedica este investimento ao apoio a “Shazia, Kainat, Mezon ou Amina”, e a tantas outras “meninas como eu”. O primeiro destino deste financiamento “é lá onde reside o meu coração, para construir escolas no Paquistão — especialmente na minha terra natal de Swat e Shangla”, adianta ainda no discurso em que expressa a sua gratidão pelo Nobel da Paz: “é por lá que irei começar, mas não é por lá que irei parar. Vou continuar esta luta até ver todas as crianças na escola”.

Na Jordânia, com crianças sírias refugiadas
Na Jordânia, com crianças sírias refugiadas

“A educação não é oriental nem ocidental”

“Quando nasci, os habitantes da nossa aldeia exprimiram o seu pesar à minha mãe e ninguém deu os parabéns ao meu pai. Cheguei de madrugada, quando a última estrela se extinguia. Era uma menina nascida numa terra em que se disparam armas para celebrar o nascimento de um filho, enquanto as filhas são escondidas por detrás de uma cortina, sendo o seu papel na vida simplesmente fazer comida e parir filhos. (…) “Venho de um país que foi criado à meia-noite” (“I Am Malala”).

Malala Yousafzai tornou-se conhecida pela sua defesa do direito universal à educação e à paz em todo o mundo, depois de ter sido vítima de um atentado, em Outubro de 2012. O tiro disparado por talibãs paquistaneses contra a adolescente de 15 anos, por contestar aqueles radicais islâmicos (graças aos quais, no vale de Swat, a noroeste do Paquistão, onde cresceu, ainda hoje apenas metade das raparigas vão à escola), não a matou, fortaleceu-a: “os talibãs pensavam que uma bala nos reduziria ao silêncio mas falharam”, e “do silêncio saíram milhares de vozes”, disse num dos seus mais marcantes discursos sobre tolerância, proferido na sede da ONU, em Nova Iorque, a 12 de Julho do ano passado. A data foi declarada pela ONU como o “Dia de Malala”.

[pull_quote_left]A cada três segundos, uma menina torna-se numa noiva forçada[/pull_quote_left]

A jovem paquistanesa amante dos livros e da vida logo foi apelidada de embaixadora global do direito à educação para todas as crianças e é admirada pela sua coragem por líderes mundiais e várias celebridades. A sua determinação em questionar a legitimidade dos talibãs para retirar às meninas da sua região o seu direito básico à educação, inicialmente tornada pública através de um blog que desenvolveu para a BBC Urdu, sob pseudónimo, atravessou fronteiras e contagiou o mundo.

E a própria Malala percorreu quilómetros, residindo e estudando em Birmingham, desde que foi transportada para o Reino Unido para ali receber tratamento médico, depois de ter sido alvejada. Foi já no Ocidente que esta jovem, que acredita que “a educação não é nem oriental nem ocidental”, e que não percebe por que motivo “as pessoas têm dividido o mundo inteiro em dois grupos”, viu ser publicada a sua biografia, “Eu, Malala”, da autoria da jornalista britânica Christina Lamb (editado em Portugal pela Presença), conquistou  o  Prémio Sakharov 2013, atribuído pelo Parlamento Europeu, e foi nomeada pela primeira vez para o Nobel da Paz, também no ano passado.

Agora, Malala faz ouvir a sua voz de resistência ao medo e à opressão ainda mais alto, ao tornar-se na primeira adolescente a conquistar um Prémio Nobel. Porque, como anuncia no seu projecto Malala Fund, os terroristas não mudaram os seus objectivos nem impediram as suas ambições, mas mudaram “a força, o poder e a coragem” com que hoje inspira jovens um pouco por todo o planeta. E, como disse à imprensa internacional outra criança, que quando for crescida também quer lutar pelos direitos dos seus pares, “a educação é a nossa vida e Malala levantou a voz por ela, por isso devemos-lhe muito”.

“Nunca nos derrotarão”

© Michael Volpicelli, 2013, Flickr
© Michael Volpicelli, 2013, Flickr

“Permitam-nos que passemos da educação de 40 para 40 milhões de meninas”. O apelo, proferido pela vencedora do Nobel da Paz 2014 aquando do anúncio oficial da criação do Malala Fund, em Abril de 2013, revela a determinação da jovem em fazer da educação um direito efectivamente universal.

Inspirado pelo seu exemplo de vida, este fundo investe no empowerment de raparigas através da educação, quebrando com o ciclo de pobreza de que ficam prisioneiras, em regiões extremistas e desfavorecidas. A missão intervém prioritariamente no Paquistão, Nigéria, Jordânia e Quénia, em articulação com organizações locais, apoiando-as com educação de qualidade e soluções de escala centradas nas comunidades, com vista a ajudar crianças exploradas laboral e sexualmente, raparigas vítimas de discriminação de género e outros casos de vulnerabilidade como, no último ano, as centenas de crianças sírias refugiadas no Norte da Jordânia.

Defendendo que todos temos o dever de trabalhar, contribuindo para garantir que a sua será a última geração onde uma criança fica excluída da escola, onde um rapaz ou uma rapariga passam a sua infância a trabalhar numa fábrica, onde adolescentes são forçadas a casar e a ter filhos, onde crianças inocentes perdem a vida numa guerra, a menina que não tem medo de quebrar o silêncio contra as injustiças face aos direitos básicos das crianças e jovens apela, através da campanha # Be the First to See the Last, a uma mudança definitiva. A qual começa no esforço dos líderes mundiais mas que, mesmo com o empenho de todos, está longe de passar de uma miragem, tão distante como o alcance dos ODM em 2015, ou a implementação efectiva de uma Agenda global de Desenvolvimento pós-2015.

[pull_quote_right]Quatro em cada cinco vítimas de tráfico humano são raparigas[/pull_quote_right]

Como espelha, com total indignação, o ataque terrorista que fez esta 3ª feira 141 vítimas, entre elas 132 estudantes, e 124 feridos, numa escola para filhos de militares em Peshawar, no noroeste do Paquistão. O massacre, imediatamente reivindicado pelo Movimento dos Talibãs do Paquistão, principal grupo extremista islâmico do país, atingiu os jovens de forma indiscriminada e já foi considerado o mais grave da história do país.

Como muitas outras vozes com maior ou menor poder, Malala Yousafzai condenou de imediato este acto desumano “sem sentido e a sangue frio”, que se traduz em mais um atentado “atroz e cobarde”que choca a comunidade internacional, mas que não muda a intolerável realidade. Como Malala, ficámos “com o coração partido”. E, como ela, queremos acreditar que “nunca derrotarão” aqueles que, constituindo o futuro do mundo, se recusam a serem silenciados.

Dados sobre Educação (fontes):

  • ONU
  • UNESCO
  • ODM
  • OIT
  • Malala Fund

Jornalista