O fim das moratórias criará certamente grandes dificuldades, mas não à maioria dos devedores, nem sequer a uma grande parte. Serão grupos que há muito se habituaram a sofrer escondidos. Isso não chega para atingir o quadro entusiástico da recuperação e das avaliações oficiais, baseado, como sempre, na classe média. Porque no resto da sociedade, fora da média, reina o silêncio
POR JOÃO CÉSAR DAS NEVES

Nas guerras, revoluções e epidemias o sofrimento ferve durante toda a catástrofe; mas para as sociedades os períodos mais perigosos são o início e o fim. O povo ajusta-se a tudo; só se dá muito mal com as mudanças. Por isso, a surpresa do choque e o regresso à normalidade são os pontos que levantam maiores dificuldades.

O termo chegou agora, com o fim das moratórias. Claro que a pandemia COVID 19 não acaba, mas a sociedade portuguesa, vacinada e farta de confinamento, decidiu passar a outro ciclo. A escolha do encerramento das moratórias de crédito e seguros como marca desse momento vem do facto de Portugal ter sido dos países onde esse instrumento foi mais usado, devido a uma opção política expressa. A escolha não é má. A única real diferença face aos métodos alternativos é a localização da inevitável dívida.

A gripe pandémica trouxe consigo uma grave maleita no sistema produtivo. Face à paralisia implicada pelo encerramento forçado da atividade, o grande perigo económico é uma espiral depressiva que arrase todo o sistema. A vacina para essa terrível gripe estava descoberta há muito: o suporte de rendimento às populações, uma profilaxia que vem em duas modalidades, subsídios ou adiamento de despesas.

Como são sempre as pessoas e empresas quem acaba por pagar os gastos do Estado, o custo cai sempre sobre os mesmos. Mas colocar dinheiro no bolso das pessoas aumenta fortemente o endividamento das autoridades, enquanto obrigar os bancos a adiar os juros, mera extensão das dívidas, fica logo a pesar nas contas familiares, poupando o Orçamento de Estado.

Em ambos os casos existe um ponto de tensão grave no término dos apoios, seja subsídios ou moratórias. A questão mais difícil é, portanto, coordenar esse momento com a recuperação da economia. Se for demasiado cedo, regressa o fantasma da depressão; se demasiado tarde, torna insuportável o peso financeiro da operação. Por isso a expectativa é grande neste Outono de 2021.

Numa primeira análise não são de esperar grandes problemas. A economia recupera normalmente e, na ausência de surpresas desagradáveis, a grande maioria das empresas e famílias deve conseguir retomar os pagamentos. Além disso, os bancos, que detestam acima de tudo falências de clientes, montaram sistemas de monitorização e o Estado criou medidas de recurso no caso de acidentes inesperados. Por isso não são de prever cenários catastróficos. O país passará ao novo ciclo político que, como todos sabem, será dominado pelas inaugurações e gastos dos dinheiros europeus, de novo jorrando sobre a nossa economia.

Quer isto dizer que não haverá dificuldades graves nos pagamentos das prestações do crédito? Claro que sim, mas essas ficarão ocultas, sem criar problemas globais ao cenário positivo. Até porque nem sequer estarão diretamente ligadas à pandemia, embora tenham sido agravadas pela gripe. Elas resultam de uma velha tragédia nacional, cujo principal sintoma é o silêncio. O drama real é a pobreza, que se pode dizer ter sido a grande esquecida nestes dois anos de emergência.

A sociedade portuguesa está controlada pelos grupos de pressão da classe média. Trata-se de profissões e sectores organizados, que dominam a comunicação social e os partidos políticos. Não é corrupção, engano ou maldade, mas bravos cidadãos, defendendo corajosamente os seus interesses, acreditando serem realmente o país. O lema, repetido ao longo das décadas, de que a classe média é a grande sacrificada, prova evidentemente esse domínio.

O vírus SARS-Cov 2 foi muito injusto, atingindo mais fortemente certos estratos da população, enquanto poupava outros, tanto no aspeto clínico como no económico. Mas a verdadeira desigualdade aconteceu entre aqueles que conseguiram fazer ouvir as suas queixas e os que, como habitualmente, gritaram sem que ninguém atendesse.

Todos sabemos que idosos, doentes crónicos e imunodeficitários estiveram em grande risco, tal como desempregados, empresas de turismo, comércio, discotecas e afins. Para eles se dirigiu justamente a política e os apoios nos meses de pandemia. Mas outras zonas de grande devastação ficaram esquecidas na grande maioria das discussões.

Mendigos, vendedores ambulantes, trabalhadores ocasionais e sem contrato foram tanto ou mais afetados que os mais afetados da crise, mas não existiu qualquer programa, plano ou apoio que lhes fosse dirigido. Ninguém falou deles, no meio do enorme rol de graves problemas de que sofria a classe média. O seu sofrimento não se ouve, antes como durante a pandemia.

O fim das moratórias criará certamente grandes dificuldades, mas não à maioria dos devedores, nem sequer a uma grande parte. Serão grupos que há muito se habituaram a sofrer escondidos. Isso não chega para atingir o quadro entusiástico da recuperação e das avaliações oficiais, baseado, como sempre, na classe média. Porque no resto da sociedade, fora da média, reina o silêncio.

Economista, professor catedrático na Universidade Católica e Coordenador do Programa de Ética nos Negócios e Responsabilidade Social das Empresas