Não é uma brincadeira de mau gosto nem o argumento de qualquer filme. Ter os anticorpos certos no nosso sangue – um marcador potencial de imunidade contra o coronavírus SARS-COV-2 – poderá em breve determinar quem pode ir trabalhar ou não, quem tem de permanecer confinado ou quem tem o direito de circular livremente. Apesar de o debate estar ainda à frente da ciência, pois não existem certezas sobre o facto de o vírus desencadear a produção de anticorpos capazes de fornecer imunidade, tal circunstância não está a demover vários decisores políticos sobre a possibilidade de atribuição de certificados ou passaportes a quem já foi infectado, concedendo “libertação” para o trabalho na urgente retoma económica, mas dividindo irremediavelmente a sociedade em “fortes e fracos”
POR HELENA OLIVEIRA

Com centenas de milhões de pessoas forçadas a permanecer nas suas casas para estancar a disseminação do vírus, políticos e especialistas em saúde pública procuram desesperadamente mecanismos seguros que permitam às pessoas regressar ao trabalho sem que seja despoletada uma segunda vaga de contágios.

Para já, na Alemanha está a apostar-se mais seriamente em testar o maior número possível de pessoas para detectar a presença de anticorpos do novo coronavírus como forma de perceber o nível de imunidade existente numa determinada comunidade, “libertando-a”, se os resultados forem positivos, das medidas de confinamento domiciliário e possibilitando o regresso à vida fora de portas. No Reino Unido está igualmente a discutir-se a ideia, bem como em Itália e em algumas regiões dos Estados Unidos, apesar de a Organização Mundial de Saúde já se ter manifestado contra esta possibilidade, pois neste momento não existem evidências suficientes sobre a eficácia da imunidade pela presença de anticorpos.

A ideia, que evoca a literatura distópica e os filmes de ficção científica, está contudo a ser crescentemente discutida à medida que aumenta a pressão para se abrir a economia e evitar-se uma recessão catastrófica. E é verdade que – e ciência para já à parte – existem alguns bons argumentos para se pensar na implementação destes passaportes ou certificados de imunidade, pois oferecem uma sedutora promessa de um número crescente de pessoas poder deixar de estar confinada e, ao invés, possa ajudar ao “regresso” do mundo. E é verdade, estas pessoas poderão ter um papel importantíssimo no período que irá anteceder a existência de tratamentos eficazes contra a Covid-19 ou a descoberta de uma vacina. Contudo, e como é óbvio, esta solução levanta um conjunto de questões de ordem ética, nomeadamente a divisão entre os que serão “livres” e os que continuarão, sem culpa nenhuma, obrigados ao confinamento.

Tempos de excepção admitem medidas excepcionais?

Numa altura em que quase todos os governos estão a ser obrigados a estabelecer um equilíbrio entre a garantia da saúde pública e o regresso possível ao activo, não estranha que se tenha igualmente de sopesar o que é melhor para a sociedade, mesmo que tal signifique discriminar os seus membros ou reduzir-lhes a privacidade individual, traduzida pela utilização de critérios biológicos que, em tempos “normais”, seriam certamente repudiados. Uma indesejável etapa darwinista num mundo cada vez mais globalizado e tendente à igualdade de oportunidades.

“Parece que estamos a dividir a sociedade entre os fortes e os fracos”, afirma ao The New York Times Michela Marzano, professora de filosofia moral na Universidade Paris Descartes. “Mas é o que está realmente a acontecer”, acrescenta.

E o que significará, na prática, utilizar estes possíveis certificados de imunidade? Por um lado, os empregadores e os governos poderão exigir que apenas as pessoas com passaportes de imunidade possam ser admitidas em trabalhos que envolvam contacto humano substancial, como os serviços de saúde, o sector da alimentação, do retalho, dos serviços, dos transportes, entre outros. Por outro, restaurantes, bares, eventos desportivos, concertos ou outro tipo de concentrações públicas poderão admitir apenas aqueles que tiverem estes mesmos certificados. Mais ainda, as viagens em transportes públicos ou a possibilidade de comparência a aulas presenciais poderão igualmente ser limitadas a indivíduos que possam comprovar a sua imunidade. E basta puxarmos um pouco pela imaginação para percebermos que esta hipótese irá, realmente, provocar uma cisão entre “os que os têm e os que não os têm”. Como escreve o professor de Direito e Genética da Universidade de Stanford e presidente do Conselho de Ética Biomédica da mesma universidade, Henry T. Greely, “estes certificados são realmente apelativos – a não ser que sejamos uma das muitas pessoas que terá de abrir mão do mundo sem ter qualquer tipo de culpa, e isso é discriminação: algumas pessoas poderão trabalhar, ter lazer e viajar. Outras não”.

Mais complexa ainda será a sua aplicação em meios pequenos onde toda a gente se conhece. Martin Schnell, professor de Filosofia Social e Ética na Saúde da Universidade Alemã Witten/Herdecke alertou, num artigo recentemente publicado na Deutsche Welle, que este tipo de propostas constitui “um sinal de uma sociedade profundamente insegura”. O risco da criação de ressentimentos numa sociedade dividida em dois grupos, um que pode voltar a fazer a sua vida normal e outro que não pode, seria extremamente “prejudicial para a solidariedade comunitária” que está a manter as pessoas unidas neste momento, acrescenta ainda.

O “bilhete dourado” e os privilegiados

À primeira vista, não é difícil enumerar os benefícios inerentes a esta solução, sendo o mais crítico, para os decisores políticos, o da reanimação de uma economia já suficientemente estrangulada. Deste modo, conceder passaportes de imunidade a pessoas presumivelmente recuperadas da Covid-19 ajudaria a reduzir o confinamento, pois os “imunes” poderiam circular livremente, regressar em segurança ao trabalho tendo em conta que não voltariam a estar doentes e que não transmitiriam o vírus a outros, e, em alguns países que os estão a considerar, permitindo que segmentos populacionais críticos para o funcionamento da sociedade – como profissionais de saúde e professores, por exemplo – fossem os primeiros a receber este novo “passe social”.

Mas os riscos poderão não compensar os benefícios. Em primeiro lugar, porque não existem ainda certezas sobre a precisão de testes que determinam se um paciente recuperado fica realmente imune a uma nova infecção ou recaída, o quão forte é esta imunidade, se realmente existir, e qual a sua duração. Ou seja, os cientistas não têm ainda elementos que comprovem que alguns indivíduos recuperados tenham os anticorpos suficientes para lutar contra o coronavírus uma segunda vez, o que faz com que esta estratégia de saída não seja imediatamente uma via aberta. Como tem vindo a ser reportado, existem relatos de pessoas infectadas duas vezes, nomeadamente na China e na Coreia do Sul.

Por outro lado, e conforme mencionado, não é apenas a ciência a dificultar a implementação deste tipo de certificados, mas um conjunto de questões sociais, na medida em que poderão dar origem a uma sociedade bipartida, na qual os que os “têm” poderão regressar à normalidade possível e os “outros” terão de continuar a viver as suas vidas sujeitos a inúmeras restrições.

Existe igualmente a possibilidade de estes certificados darem origem a uma contracção deliberada do vírus por parte dos mais jovens, que continuam a considerar que as suas hipóteses de sobrevivência ao vírus são suficientemente elevadas para arriscarem. E não é possível esquecer o enorme valor económico associado a este tipo de passaportes, com muita gente suficientemente desesperada para mentir ou pagar para os conseguir obter. Apesar de poder parecer uma loucura, “a verdade é que se o facto de se ter anticorpos representar o custo necessário para se entrar no mercado de trabalho e, consequentemente, poder alimentar-se uma família, existirão muitos trabalhadores a sentir a pressão para o fazer”, afirmou, à Bloomberg Glenn Cohen, especialista em bioética na Harvard Law School.

Para já, afirma Allison Hoffman, professora da Universidade da Pensilvânia e especializada em Direito do Trabalho, “conferir privilégios a pessoas que tenham anticorpos poderá ser o preço a pagar para voltar a fazer rodar a economia, desde que os governos providenciem o apoio necessário aos que não têm trabalho”. Uma outra consequência seria o aparecimento de um mercado negro para a obtenção destes passaportes para a liberdade, verdadeiros “bilhetes dourados” que valeriam, em tempo de pandemia, mais do que qualquer outra mercadoria.

Se é para fazer, que se faça bem

Apesar de persistirem inúmeras dúvidas face à progressiva reabertura da sociedade – o estado de emergência será oficialmente abandonado em Portugal no próximo dia 2 de Maio à meia-noite – é verdade que a estratégia de confinamento não pode persistir indefinidamente, pois o risco de adiar o “regresso” incorre em custos económicos, sociais e psicológicos demasiado avultados. O mundo precisa de voltar a abrir-se, mas tendo em conta que esta abertura terá de ser feita de uma forma que proteja a população e que não comprometa a sua privacidade.

Daqui resulta que a ideia dos certificados de imunidade não constitui um desvario por parte de alguns decisores políticos, mas uma solução que, mais cedo ou mais tarde, poderá vir a ser realmente implementada. Prova disso é um paper recente, publicado a 20 de Abril último pelo Centro de Ética Edmond J. Safra, uma unidade de pesquisa da Universidade de Harvard, e que versa exactamente sobre os prós e os contras desta possível solução. No estudo em causa, os autores definem o conceito de “certificados de imunidade” como “credenciais digitais que permitirão aos indivíduos partilharem o seu ‘status de Covid-19’ a partir de uma forma verificável”.

De acordo com o paper, os certificados, armazenados nos smartphones das pessoas, indicariam não só que estas tinham recuperado da infecção e que, presumivelmente, tinham ficado imunes, mas estender-se-iam igualmente a quem tivesse feito testes recentes que comprovassem não estar actualmente infectado (testes estes que teriam de ser repetidos com regularidade). Este sistema permitiria que muitos locais de trabalho, desde estruturas médicas, a companhias aéreas ou negócios de preparação de alimentos, entre outros exemplos, pudessem exigir aos trabalhadores que revelassem qual o seu “estado” perante a pandemia enquanto condição de acesso a um posto de trabalho em particular. De forma complementar, estes mesmos indivíduos poderiam divulgar os seus resultados, “carimbados” com a data em que tinham sido efectuados, sem ser necessário partilhar os seus nomes ou outro tipo de informação identificadora. Além disso, afirma também o paper, caberia a governos, agências reguladoras, grupos da sociedade civil e a outras partes interessadas o desenvolvimento de legislação e regulamentação adequada ao objectivo em causa para garantir uma governação eficaz destes mesmos sistemas.

Obviamente que qualquer programa de identificação digital apresenta um risco de exclusão: os que são capazes de demonstrar a sua identidade ou, neste caso, os resultados dos testes realizados, teriam vantagens únicas comparativamente aos que não pudessem exibir provas verificáveis. Por outro lado, um sistema que obrigue à utilização de um smartphone significa igualmente que algumas pessoas, tais como os idosos, os sem-abrigo ou os que vivem em regiões de baixos rendimentos, não tenham acesso à tecnologia. Ou seja, para evitar este ostracismo teria de existir uma forma alternativa – por exemplo um atestado em papel passado por um médico – que servisse de prova aceitável para os empregadores ou para se poder circular em determinados sítios.

Um outro risco, em particular na actual fase da pandemia em que a capacidade de testar a população é ainda muito limitada, reside na discriminação no acesso aos testes e, consequentemente, aos certificados de imunidade, mencionando ainda os que não têm a possibilidade de aceder facilmente ao sistema de saúde.

O paper em causa identifica igualmente o risco relacionado com as fraudes. Fornecedores de serviços de saúde sem escrúpulos poderão sentir-se tentados a obter ganhos económicos consideráveis no negócio da falsificação de testes. Uma forma de contornar esta probabilidade reside no acesso a testes rápidos e gratuitos, algo que também ainda não é possível. E, obviamente, a existência de processos de verificação será crucial para assegurar que os certificados são passados aos indivíduos certos, com os procedimentos adequados para a verificação de identidade e atribuição de dados a serem incluídos numa “estrutura de confiança”. O paper de Harvard aconselha ainda, quando possível, a utilização da biometria para assegurar um segundo nível de confiança, fazendo equivaler sem qualquer dúvida a credencial ao seu proprietário.

Em resumo, e apesar de serem vários os países que anseiam pela implementação deste sistema ou de algo similar, a verdade é que não existem ainda condições para o fazer. Todavia, e como em tempo de pandemia tudo parece mudar mais rapidamente do que o que é habitual, estejamos alerta para esta probabilidade e todas as outras.

E, sobretudo, as nossas balanças de aferição sobre o que é bom e o que é mau precisarão da melhor manutenção que jamais conheceram. Recorrer às fontes certas e rejeitar (e denunciar) informação falsa pode nunca ter sido tão fundamental.

Editora Executiva