POR MÁRIA POMBO
Numa época em que muitos são os teóricos que afirmam que a crise económica e financeira já está em fase decrescente, importa analisar concretamente em que “lugar” estamos, como está a saúde da nossa economia e se já conseguimos recuperar dos estragos causados no passado, com soluções que passam por não os repetir. É precisamente esta análise que faz o presidente do Conselho de Administração da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). No seu mais recente working paper, denominado “A Crise Financeira: Aprendemos as Lições?”, Carlos Tavares faz um balanço do que foram os primeiros anos de crise e quais são os seus efeitos na actualidade, tentando compreender se, de facto, aprendemos ou não com os erros do passado.
O economista começa por explicar que, em 2008, estávamos “na presença de uma crise de enormes proporções”, tendo sido tomadas diversas medidas de regulação e supervisão do sistema financeiro para que, mais do que ultrapassar o momento complicado que se começava a viver, se evitassem também as suas réplicas.
Considerando que, em 2008, era impossível fugir de uma reforma do sistema financeiro, nomeadamente ao nível da sua regulação e supervisão, diversas foram as recomendações nos fóruns políticos e regulatórios internacionais que, na altura, surgiram para ultrapassar o momento difícil de crise. No paper, o autor destaca as principais: que os bancos fossem mais pequenos e simples; que o excesso de crédito/dívida que conduziu ao desencadear da crise impusesse um processo de desalavancagem significativa; que os mercados fossem regulados e mais transparentes; que os produtos financeiros fossem mais simples e de características bem conhecidas dos investidores; e que fossem criados instrumentos para melhorar a avaliação e gestão dos riscos”.
[pull_quote_left]“O conhecimento dos riscos é hoje mais perfeito”, mas “a actuação no sentido da sua redução tem-se revelado mais problemática”[/pull_quote_left]
Oito anos depois, “o conhecimento dos riscos é maior”, e as áreas mais problemáticas (como os derivados OTC, que são contratos negociados fora de bolsa, directamente entre as duas partes envolvidas, sem passar por qualquer intermediário) “estão mais reguladas e controladas”. Contudo, surgiram novos riscos no mercado financeiro, nomeadamente resultantes da “escassez de colateral [e importa explicar que um colateral é um activo que foi dado como garantia de pagamento para uma obrigação de dívida] para assegurar as obrigações decorrentes da regulação do mercado de derivados”, o que tem levado muitos bancos a desenvolver “novas linhas de negócio baseadas na cedência de colateral de boa qualidade a participantes daquele mercado”. Ou seja, de acordo com Carlos Tavares, “o conhecimento dos riscos é hoje mais perfeito”, mas “a actuação no sentido da sua redução tem-se revelado mais problemática”.
O antigo professor da Faculdade de Economia do Porto aponta os agentes do mercado (instituições financeiras, auditores, agências de rating, etc.) como “os principais causadores da crise que ainda vivemos”. As instituições legisladoras, reguladoras e supervisoras são importantes nesta matéria, mas, para o representante da CMVM, “a sua acção, por melhor que seja, nunca será suficiente para evitar as crises financeiras”.
Assim, são os gestores de instituições financeiras que devem ser questionados e auditados. Pois são eles que não se podem deixar levar por “interesses egoístas e de curto prazo”, nem “expor as empresas que gerem a riscos excessivos que ponham em causa não só o dinheiro dos seus accionistas, como a estabilidade do sistema financeiro e das economias”. E que devem respeitar “os padrões éticos necessários à gestão de instituições que vivem da gestão das poupanças dos seus clientes”. Complementarmente, são estes responsáveis pelas instituições financeiras que devem colocar os interesses dos seus clientes em primeiro lugar, devendo ser fiscalizados por entidades competentes e independentes.
Regulação dos mercados continua demorada, rígida e pouco transparente
Verificar todas as situações acima descritas é fundamental para afirmar que os erros do passado não estão a ser cometidos novamente. Contudo, nem o autor deste documento o consegue fazer de forma inequívoca, sendo visível e consensual que “os progressos no governo das instituições financeiras, em geral, ficam aquém do desejável.
O – em alguns casos exagerado no detalhe e no tempo – processo de regulação dos mercados, cuja quase inexistência e pouca transparência constitui uma das principais falhas identificadas entre as causas da crise, é por norma pesado, demorado e pouco flexível, envolvendo a Comissão Europeia, o Conselho Europeu, o Parlamento Europeu e, mais recentemente, as Autoridades Europeias de Supervisão. Esta demora e rigidez obriga a que “aspectos essenciais para a protecção dos investidores, como a transparência dos mercados obrigacionistas, a transacção de derivados em mercados organizados, os produtos financeiros complexos, o abuso de mercado ou as novas formas de negociação, como a negociação algorítmica e de alta frequência”, só tenham a nova regulamentação em vigor “nove e 10 anos depois da eclosão da crise”, em 2017 e em 2018.
No outro lado da balança, uma parte da nova regulamentação ficou, na opinião de Carlos Tavares, “aquém do desejável para atacar os problemas que estiveram na origem da crise”, dificultando também a prevenção de “outros problemas que possam levar a uma nova e, certamente, ainda mais dramática crise”.
[pull_quote_left]Ao invés do que se esperava, verifica-se uma concentração e fusão de instituições, conduzindo este sector rumo à temida situação vulgarmente apelidada de “too big to fail”[/pull_quote_left]
A falta de transparência, por exemplo, continua a ser um problema actual. Em Portugal, e à semelhança do que acontece nos restantes países da União Europeia, embora se verifiquem progressos desde 2012, a negociação transparente em mercado regulamentado “continua a representar apenas 55% do total”.
A necessidade de reduzir a oferta de serviços financeiros através da redução do número de instituições bancárias (em resultado da fusão das mesmas), particularmente em 2014 e 2015 e durante este ano, tem seguido o caminho contrário do esperado. Ou seja, ao invés de se verificar uma tendência que leva os bancos a tornarem-se mais pequenos e simples (que era uma das recomendações), verifica-se uma concentração e fusão de instituições, conduzindo este sector rumo à temida situação vulgarmente apelidada de “too big to fail”. Tudo isto porque, de acordo com diversos estudos referidos no paper, os bancos mais pequenos “têm maior probabilidade de obter ganhos de eficiência de custos mais cedo do que os grandes bancos”. Contudo, a boa notícia é que, se os bancos existentes diminuírem a sua dimensão, esta meta ainda poderá ser alcançada.
Quando, ao contrário do esperado, o endividamento se agrava
Para combater o endividamento – que constitui uma outra recomendação –, a Directiva Resolução Bancária criou uma nova forma de tratamento de bancos em crise, minimizando o impacto negativo deste fenómeno na economia real e nas finanças públicas. Todavia, a mesma revela ser “particularmente insensível às questões relacionadas com a protecção dos investidores”. A desalavancagem dos bancos, caracterizada pela capacidade de estes reduzirem a dívida, não tem sido, assim, “acompanhada de correspondente movimento de todos os outros agentes”, agravando significativamente “o excesso de endividamento global”.
Este é um ponto preocupante, já que constitui um forte condicionamento à recuperação das economias. O pior é que, mais do que não terem sido resolvidas, esta e outras questões que se colocaram há oito anos têm sido agravadas. De acordo com o European Systemic Risk Board – uma entidade especializada na análise do sistema financeiro da União Europeia –, em Junho último, 16 países (entre 28 apurados) apresentavam dívidas totais superiores a 200%. Portugal é a quarta nação mais endividada, nesta análise, com uma dívida total superior a 300%.
[pull_quote_left]A desalavancagem dos bancos não tem sido “acompanhada de correspondente movimento de todos os outros agentes”, agravando “o excesso de endividamento global”[/pull_quote_left]
Complementarmente, “a inflação acentuada em vários mercados de activos, a incerteza quanto aos efeitos de longo prazo de persistentes taxas de juros baixas, bem como a distância que separa os objectivos de 2008 da situação actual”, são também apontadas pelo presidente do Conselho de Administração da CMVM como outras das principais razões que permitem duvidar do facto de se terem aprendido as lições que originaram a actual crise financeira “e cuja ultrapassagem não se vislumbra ao fim de nove longos anos”.
No paper, Carlos Tavares refere ainda que “o comportamento das economias tem sido decepcionante, o investimento das empresas não tem descolado e a inflação tem permanecido teimosamente próxima de zero”. Contudo, o economista explica que existem razões que justificam esta situação, como a “persistente redução da velocidade de circulação da moeda que se encontra nos níveis mais baixos desde que temos informação estatística”.
Um dos problemas deste fenómeno diz respeito à imprevisibilidade quanto às consequências da inflação, no caso de se verificar um aumento do incentivo à aplicação em títulos de dívida assim como da velocidade de circulação da moeda para “valores mais normais”, ou seja, menos baixos. Complementarmente, o economista explica que “os efeitos colaterais das taxas de juro prolongadamente muito baixas têm vindo a manifestar-se e a acentuar-se em comportamentos de ‘search for yield’ [que, em tradução livre, significa a procura de activos financeiros com rendibilidades relativamente elevadas], implicando acumulação de riscos de crédito e de taxa de juro e induzindo a uma ainda maior complexidade dos produtos financeiros”.
[pull_quote_left]Portugal é a quarta nação mais endividada, entre 28 países, e tem uma dívida total superior a 300%[/pull_quote_left]
Por fim, as taxas de juro incrivelmente baixas podem incentivar a existência de investimentos de baixa eficiência, afectando a competitividade da economia. Carlos Tavares reforça que “este último aspecto é particularmente relevante em economias como a nossa, que precisam de um surto de investimento expressivo para garantir a convergência dos níveis de produtividade e crescimento com os da UE”.
Ao longo do texto, conclui-se que muitas das recomendações internacionais destacadas pelo economista tinham o objectivo de ajudar os diversos países a recuperarem da crise não têm tido os resultados esperados e que outras tantas revelam um agravamento, mesmo tendo sido tomadas medidas no sentido contrário. É por este motivo que o presidente do Conselho de Administração da CMVM conclui que existe uma única questão essencial para que as medidas tomadas e os modelos adoptados sejam eficazes, e que se prende com a “qualidade profissional e ética das pessoas que actuam nos mercados financeiros”.
Carlos Tavares conclui o documento afirmando que “a verdade é que não há bons modelos que resistam às más pessoas”, sendo necessário que todos os que têm responsabilidades nos mercados financeiros se questionem sobre se aprenderam com os erros do passado. Através do paper apresentado, sabemos que, a esta pergunta, muitos deles responderão que não.
Jornalista