Intitulado “Os bancos centrais e a estabilidade financeira na era das alterações climáticas”, um extenso relatório lançado em Janeiro último pelo Bank for International Settlement, uma organização financeira internacional que integra 60 bancos centrais de todo o mundo, faz soar preocupantes alertas sobre a possibilidade de as alterações climáticas poderem derrubar o sistema financeiro global. E faz saber que bancos centrais mundiais não estão suficientemente equipados para responder a esta crise ou até prever o que muito possivelmente irá acontecer
POR HELENA OLIVEIRA
“Cada geração sente-se, indubitavelmente, chamada a reformar o mundo. A minha sabe que não o vamos reformar, mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Consiste em evitar que o mundo se destrua a si mesmo”.
A citação é do escritor francês Albert Camus, na altura em que recebeu o Prémio Nobel da Literatura em 1957. E se o contexto é diferente do que aquele em que vivemos, as suas palavras permanecem relevantes numa altura em que a humanidade enfrenta a complexa ameaça das alterações climáticas. O excerto faz parte de um extenso relatório publicado pelo Bank for International Settlement (BIS), uma organização financeira internacional que serve como uma espécie de banco central dos bancos centrais, com sede em Basileia, na Suíça, e que alerta para o facto de um futuro desastre climático, ou um evento “cisne verde”, poder derrubar por completo o sistema financeiro global. Tal como acontece com os eventos “cisne negro”, também o “cisne verde” será muito difícil de prever e “explodirá” quase sem pré-aviso. O potencial para uma cascata de crises provenientes das alterações climáticas ameaça a estabilidade financeira global e, de acordo com o relatório (ao qual o BIS chama livro), os bancos centrais mundiais não estão suficientemente equipados para lhe responder ou até prever o que muito possivelmente irá acontecer.
O aumento na frequência e intensidade de eventos climatéricos extremos poderá despoletar perdas financeiras não-lineares e irreversíveis. Por sua vez, a transição imediata, e em todo o sistema, necessária para combater as alterações climáticas poderá ter efeitos de longo alcance, afectando potencialmente todos os agentes na economia bem como o preço de todos os activos. Assim e desta forma, os riscos relacionados com o clima ameaçam não só os mandatos de preços e a estabilidade financeira dos bancos centrais, como também os nossos sistemas socioeconómicos no seu todo. Apesar de existirem alguns bons sinais no que respeita à tomada de consciência por parte da banca destes potenciais riscos, a verdade é que todos nós estamos a perder a guerra contra as alterações climáticas. E, por vezes, o papel que as instituições financeiras devem representar nesta batalha é questionável. Todavia, e como defende o BIS, é importante sublinhar que não podem ser apenas os bancos centrais a jogar este jogo. Para navegar nestas águas turbulentas, perspectivas mais holísticas tornam-se essenciais para coordenar as acções dos bancos centrais, reguladores e supervisores com as dos demais players, a começar pelos governos. E esse é um dos objectivos deste “livro”. “Se os bancos centrais são chamados a preservar a estabilidade financeira e dos preços na era das alterações climáticas, é do seu interesse ajudar a mobilizar todas as forças necessária para vencer esta batalha”, afirma, no prefácio, o governador do Banco de França, François Villeroy de Galhau.
Como se pode ler no sumário executivo, este “livro” analisa alguns dos principais desafios que as alterações climáticas colocam aos bancos centrais, reguladores e supervisores, bem como possíveis formas de os enfrentar. E começa com a percepção crescente de que as alterações climáticas constituem uma fonte de instabilidade financeira (e de preço): assim, é provável que giram riscos físicos relacionados com danos climáticos e riscos de transição relacionados com estratégias de mitigação potencialmente desordenadas. Desta forma, as alterações climáticas são da competência dos bancos centrais, reguladores e supervisores, na medida em que são estes os responsáveis por monitorizar e manter a estabilidade financeira. E foi devido ao seu desejo de melhorar o papel do sistema financeiro na gestão dos riscos e mobilizar capital para investimentos verdes e de baixo carbono, no contexto mais amplo do desenvolvimento ambientalmente sustentável, que os levou a criar a Rede de Bancos Centrais e Supervisores para o Greening do Sistema Financeiro (NGFS, na sigla em inglês).
No entanto, a integração da análise de riscos relacionados com o clima na monitorização da estabilidade financeira e na supervisão prudencial é particularmente desafiadora devido às características distintas dos impactos das alterações climáticas e das estratégias de mitigação. Estes incluem riscos físicos e de transição que interagem com efeitos complexos, de longo alcance, não lineares e de reacção em cadeia. E exceder os “pontos críticos” do clima poderá conduzir a efeitos catastróficos e irreversíveis que impossibilitariam quantificar os danos financeiros. Evitar que tal aconteça requer uma acção imediata e ambiciosa em direcção a uma transformação estrutural das nossas economias, envolvendo inovações tecnológicas que podem ser dimensionadas, mas também mudanças significativas nas normas e regulamentações sociais.
Desta forma, alerta o BIS, as alterações climáticas podem levar aos já mencionados eventos de “cisne verde” e ser a causa da próxima crise financeira sistémica. Os riscos físicos e de transição relacionados com o clima envolvem dinâmicas ambientais, sociais, económicas e geopolíticas não-lineares e fundamentalmente imprevisíveis, que são irreversivelmente transformadas pela crescente concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera.
Riscos e alertas
Os riscos financeiros resultantes das alterações climáticas integram tipicamente duas categorias: o risco físico e o risco de transição. O primeiro refere-se a desastres naturais ou a alguma outra calamidade relacionada com o clima, o qual impõe altos custos à sociedade devido a danos físicos, como uma seca ou um furacão. Por seu turno, o risco de transição refere-se ao repricing de activos, à medida que a economia global muda para uma energia mas limpa, de que é exemplo uma empresa de petróleo que perde muito do seu valor depois da aprovação de um imposto “doloroso” sobre o carbono.
Como já anteriormente mencionado, estes tipos de risco são caracterizados por “uma profunda incerteza e não linearidade”, como alerta o BIS e, pior ainda, podem interagir entre si, resultando em efeitos negativos que podem aprofundar o stress financeiro. Por exemplo, a destruição de imóveis costeiros pode provocar falências bancárias ou o colapso dos mercados de seguros à medida que as perdas se vão acumulando. E os efeitos-cascata são difíceis de prever, com a crise de 2008-2009 a relembrar que o sistema financeiro pode “encalhar” num instante.
No entanto, os eventos de “cisne verde” são diferentes de um evento típico de “cisne negro” pois, embora os pormenores ou o momento do desastre sejam imprevisíveis existe, no entanto, um elevado grau de certeza de que as catástrofes climáticas acontecerão. Ou seja, são “ainda mais graves do que a maioria das crises financeiras sistémicas, na medida em que podem representar uma ameaça existencial para a humanidade”, alerta o relatório do BIS.
Por outro lado, os bancos centrais têm poucas ferramentas à sua disposição para responder a crises financeiras relacionadas com o clima. Apesar de poderem fazer, com antecedência, testes de stress, estudar a regulação ou recomendar determinadas políticas, a verdade é que “os riscos relacionados com o clima se manterão, em grande parte, não seguráveis e não acauteláveis, a não ser que sejam realizadas acções em todo o sistema”, afirma o BIS. E mesmo estando deficientemente equipados para evitar um desastre, os bancos centrais “podem inevitavelmente ser levados para águas desconhecidas”, à medida que a crise climática se for desenvolvendo, e forçados a “intervir como ‘ salvadores climáticos de último recurso’ e a “comprar grandes conjuntos de activos desvalorizados, para salvar o sistema financeiro mais uma vez”, alerta igualmente o relatório.
Como refere a organização sem fins lucrativos resilience.org, esta não é a primeira vez que soam alertas sobre a possibilidade das alterações climáticas derrubarem o sistema financeiro. A título de exemplo, o governador do Banco de Inglaterra, Mark Caney há anos que tem vindo a chamar a atenção sobre os riscos financeiros decorrentes das alterações climáticas, tendo-o feito novamente há pouco tempo. E são várias as organizações que têm vindo a soar os alarmes para os denominados “activos improdutivos”. Por seu turno, algumas das maiores instituições financeiras privadas estão também a reduzir a sua exposição aos combustíveis fósseis. A BlackRock, que gere a maior carteira de activos do mundo, e nas palavras do seu CEO, Larry Fink, foi notícia em Janeiro último quando anunciou a decisão de se desfazer de todas as empresas de carvão, com Fink a afirmar, numa carta destinada aos investidores, que “o risco climático é um risco de investimento”.
Mas o que é verdadeiramente notável, e preocupante em simultâneo, é o facto de ser o BIS a publicar este relatório. O Bank for International Settlement é uma organização que integra cerca de 60 bancos centrais de todo o mundo, incluindo a Reserva Federal dos Estados Unidos e o Banco Central Europeu, sendo por isso conotado como o banco central dos bancos centrais. Ou seja, não é um relatório publicado por nenhum grupo ambientalista nem por um conjunto de investidores socialmente responsáveis que apelam a um greening financeiro. Pelo contrário, são as mais poderosas instituições financeiras que estão a fazer soar os alarmes de que “uma nova crise financeira global desencadeada pelas alterações climáticas tornaria impotentes os bancos centrais e os supervisores financeiros”, como se pode ler no relatório.
E lançado depois de a última década ter sido considerada como a mais quente desde que há registos, insta veementemente os governos globais a agir agressivamente para reduzir as emissões climáticas.
Avisos não faltam. Continua a faltar a vontade política.
Editora Executiva