Jan Vandemoortele foi um dos “arquitectos” que, em 2001, definiu aqueles que viriam a ser conhecidos como os Objectivos de Desenvolvimento do Milénio. A menos de três anos do prazo para o seu cumprimento, o actual investigador traça, em entrevista, os progressos alcançados por este compromisso global, ao mesmo tempo que tece duras críticas à forma como o processo tem vindo a ser conduzido pelas elites mundiais. “A agenda pós-2015 deverá seguir uma abordagem muito mais inclusiva”, defende.
“De co-arquitecto a amigo crítico dos ODM”. Foi assim que Jan Vandemoortele se apresentou na entrevista que concedeu ao VER. O antigo director do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e que viria a ser, em conjunto com o conselheiro especial de Kofi Annan, o autor dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, tem sido uma voz crítica no que respeita, em particular, à concepção errada que ainda se tem sobre o estabelecimento e alcance destes objectivos. Vandemoortele acusa ainda aqueles que clamam por uma estratégia geral para os ODM, argumentando que o que se pretende é “despolitizar o processo de desenvolvimento, reduzindo-o a uma série de intervenções estandardizadas de natureza técnica”. Actualmente investigador independente, escritor e orador convidado em conferências um pouco por todo o mundo, Vandemoortele alerta ainda para o facto de que o processo que levou à criação dos ODM não deverá ser repetido. “A formulação da agenda pós-2015 deverá seguir uma abordagem muito mais inclusiva”, defende. Como se envolveu na “arquitectura” dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM)? Escreveu recentemente que os ODM acabaram por ter significados diferentes para grupos de pessoas distintos e que existem concepções erróneas sobre os mesmos. O que queria dizer com esta afirmação? Ou seja, tentaram apropriar-se, indevidamente, dos ODM, para seu próprio proveito. Ao se repetir continuamente que milhões de pessoas estavam a ser retiradas da pobreza, por exemplo, assegurou-se que a agenda dos ODM não perturbava a narrativa convencional e que não iria prejudicar a visão do desenvolvimento centrada nas métricas dos fundos e das ajudas. Os esforços foram bastante bem-sucedidos, na medida em que o debate continua a centrar-se, de forma muito estreita, no crescimento económico e no rendimento – ou seja, na pobreza. E este é um dos grandes paradoxos dos nossos tempos. A maioria dos observadores concorda que a pobreza é multidimensional, mas que a sua quantificação é unidimensional ou seja, avaliada de acordo com o dinheiro disponível. Mas os ODM não consideram a relação pobreza-rendimento como a pedra basilar do desenvolvimento, do bem-estar humano ou dos direitos humanos. Antes pelo contrário.
Ninguém acredita verdadeiramente que os objectivos serão cumpridos até 2015. Na sua opinião, o que correu bem e mal ao longo da última década ou, utilizando a sua própria expressão, como podemos definir “o bom, o mau e o feio”? Os ODM estimularam igualmente estatísticas melhores no que respeita ao bem-estar humano. E contribuíram também para um trabalho mais eficaz entre os vários sectores. As pessoas que trabalham num determinado sector (por exemplo, no da saúde) têm agora um conhecimento mais apropriado do impacto do trabalho realizado em outros sectores, como o da educação, da água e das condições sanitárias, da nutrição, entre outros. O mau, como anteriormente mencionado, foi o facto de ter havido uma má interpretação no sentido de que resultados similares poderiam ser atingidos igualmente por todos os países, caso fosse seguida uma mesma abordagem centrada no crescimento, na governação e nos fundos [da ajuda internacional] – (‘3G’ – growth, governance e grants). A narrativa convencional propõe a seguinte fórmula: ‘crescimento económico rápido + governo democrático – mais/melhor ajuda = ODM’. Mas esta narrativa simplista está longe de ser suficiente para se realizarem as transformações fundamentais e necessárias para se alcançar os ODM, que transcendem “tecno-consertos”. O que estes pretendem é conferir uma prioridade mais elevada às pessoas mais prejudicadas e vulneráveis da sociedade, ou seja, às minorias étnicas, às mulheres iletradas, às crianças desfavorecidas, aos que vivem em bairros de lata, aos agricultores de subsistência ou aos agregados que se situam na base da pirâmide. Estas transformações nunca irão resultar a partir de uma aplicação normalizada de receitas que, muitas vezes, estão na origem destas próprias discriminações. Os ODM foram destorcidos e mal interpretados como objetivos que poderiam ser atingidos através de intervenções técnicas financiadas pela ajuda estrangeira, que visavam aumentar os investimentos e replicar lições aprendidas noutros lados. Aqueles que clamam por uma estratégia geral para os ODM pretendem despolitizar o processo de desenvolvimento, reduzindo-o a uma série de intervenções estandardizadas de natureza técnica. E o que aprendeu o mundo desde 2000? É frequente ouvirmos dizer que o país X não irá atingir os ODM. De acordo com as suas próprias palavras, e enquanto um dos arquitectos deste “compromisso”, os ODM acabaram por se centrar nas métricas relacionadas com as ajudas internacionais e com os financiamentos e em frases generalistas desprovidas de verdadeiro conteúdo. Mas se não existirem objectivos que sejam comuns, concretos e comparáveis, como é que sabemos que tipo de sucesso foi já alcançado? Mas este bom senso parece ter-se perdido entretanto. Uma aritmética simples implica que se todos os países fossem obrigados a atingir estes objectivos, então o mundo assistiria a um “excesso” dos objectivos estabelecidos – pois muitos países os irão ultrapassar. O enquadramento pós-2015 terá de ter uma cautela explícita no que respeita a esta má interpretação. Os ODM são objectivos colectivos; e não podem nunca ser equiparados às metas nacionais. Escreveu igualmente que não é África que está a perder a corrida dos objectivos, mas que somos nós que estamos a perder a perspectiva. Que perspectiva é essa que não está a ser compreendida pelo mundo? Todavia, os factos reais dão-nos um quadro muito diferente, nomeadamente aquele que nos diz que este continente tem feito progressos consideráveis. Apesar de a região não atingir os ODM, está provado que contribuiu de forma significativa para o progresso global da maioria dos objectivos estabelecidos. Mas, de forma sistemática, continua a ser sublinhado o facto de não conseguir atingir os objectivos propostos até 2015. As suas condições prévias, em 1990, eram demasiado negativas, sendo que os ODM globais colocaram uma fasquia demasiado alta e impossível de atingir. Adicionalmente, o fracasso em interpretar os ODM como objectivos colectivos faz esquecer essas condições iniciais. A declaração repetitiva de que “África não vai atingir os objectivos” acaba por omitir o ponto importante de que a África não vai, não pode e não deve alcançar os ODM para o mundo poder atingir os objectivos em 2015. Os ODM não foram estabelecidos especificamente para África, mas para o mundo enquanto um todo. Em qualquer que seja o desporto, os homens não jogam contra as mulheres. E, nos ODM, de acordo com as interpretações convencionais e que ignoram as suas condições de partida, torna-se óbvio que esta visão é absurda, no sentido em que cria uma competição muito injusta.
De acordo com a sua experiência, o que tem presenciado à medida que os países caminham para atingir estes objectivos? Mas o impacto dos ODM foi muito mais notório do que o que é expresso em meras mudanças nos indicadores nacionais. Um facto lamentável consiste no aumento das disparidades presente em todas as dimensões do bem-estar humano na maioria dos países. As crescentes desigualdades existentes entre os países constituem a principal razão para que o mundo não atinja os objectivos propostos para 2015. E a agenda pós-2015 tem de integrar esta dimensão de equidade. O espírito dos ODM não é só o de gerar uma velocidade suficiente, mas também o de promover um padrão equitativo de desenvolvimento, em linha com o princípio dos direitos humanos da não-discriminação. Um padrão equitativo e inclusivo do progresso é preferível não só na perpectiva dos direitos humanos, como também do ponto de vista da eficácia. Assim, a preocupação em torno da equidade não pode ser ignorada como uma engenharia social ou como a prática da política da inveja. Apesar das desigualdades estarem a receber uma atenção crescente, o ponto de viragem ainda não foi alcançado. O trabalho árduo de se integrar a equidade nas reformas políticas e nas intervenções operacionais ainda está por fazer. Exemplos de países que levaram a cabo progressos respeitáveis no sentido dos ODM e que foram capazes de transformar esse progresso num processo muito mais equitativo incluem o Bangladesh, o Brasil e o Malawi. Esperemos que o seu exemplo possa contagiar outros países a replicarem este feito louvável. Num recente paper que publicou, afirmou que o processo através do qual os ODM foram criados não deverá ser repetido quando se formular a agenda pós-2015. O que pensa que irá acontecer a seguir a 2015 e o que deverá o mundo fazer de diferente na altura? As vozes das pessoas têm de ser ouvidas e não podemos voltar a cair no erro de repetir um processo demasiado tecnocrata e centrado no financiamento. Até à data, existem poucos exemplos de processos internacionais que envolvam cidadãos e demais stakeholders para influenciar tomadas de decisão globais. Mas também já assistimos a grandes avanços nos métodos participativos, tanto a nível digital como face a face. As novas tecnologias e abordagens apresentam enormes oportunidades para um planeamento inclusivo pós-2015, anteriormente inimagináveis. Reuniões camarárias nas cidades, assembleias de cidadãos, os media sociais, os inquéritos globais, os focus groups e as redes eletrónicas podem aumentar sobremaneira o grau de participação. As assembleias de cidadãos, em particular, oferecem caminhos promissores para integrar a inclusão no centro das discussões em torno das prioridades do desenvolvimento global. E já existem em inúmeros países, como por exemplo na Austrália, Bélgica, Canadá, Holanda, Nova Zelândia, Filipinas, no Cone Sul, na região de Sahel e na Venezuela. E podem agir potencialmente como um antídoto contra um mecanismo de responsabilização que está enviesado a favor dos segmentos mais bem posicionados da sociedade, referido muitas vezes como “a captura das elites”. E as questões que se levantam são: como equilibrar o papel dos especialistas e das demais pessoas em causa? Como equilibrar a voz da elite e a dos cidadãos comuns? Como equilibrar a influência dos países em desenvolvimento e dos países desenvolvidos? De que forma é que o poder de cada um deles deve ser controlado? Parte da resposta reside num processo o mais alargado possível, que permita capturar as visões do maior número possível de stakeholders. Especialmente nos países em desenvolvimento. |
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Editora Executiva