Esta é a premissa subjacente ao novo livro do reconhecido economista britânico, Paul Collier, o qual analisa as falhas do capitalismo contemporâneo, concentrando-se nas divisões fracturantes entre os mais e os menos “educados”, entre as grandes metrópoles e as cidades em declínio e entre as nações desenvolvidas e as “fracassadas”. Apontando o dedo à direita e à esquerda, o também professor de Oxford sugere formas pragmáticas que permitem oferecer a prosperidade para todos e não só para alguns, restaurando, a partir de uma base ética, as políticas nacionais, as empresas e as famílias
POR HELENA OLIVEIRA
É um tópico cada vez mais discutido e que tem feito correr muita tinta, entre artigos, ensaios e livros, e tanto a nível político como económico. E, entre uma panóplia de obras publicadas este ano sobre o mesmo, o livro The Future of Capitalism: Facing the New Anxieties, escrito pelo economista britânico Paul Collier, tem vindo a ser considerado como uma das mais úteis reflexões sobre este sistema que, com muitos males associados, é também responsável pelo elevar das condições de vida de muitas pessoas. Todavia, o seu questionamento crescente comprova a crise em que se encontra e são várias as propostas para o restaurar e devolver-lhe os valores que lhe estão subjacentes, em particular a geração de prosperidade para todos e não só para alguns.
O livro de Collier, professor em Oxford, oferece uma análise profunda sobre o capitalismo, sendo que os fundamentos para o seu sucesso – o equilíbrio entre liberdade e responsabilidade, reforçado pelo Estado Providência – são considerados pelo seu autor como elementos centrais para solucionar as preocupantes divisões entre famílias, cidades e nações, em conjunto com “as ansiedades do século XXI” como a erosão da confiança no futuro da rede de segurança social, o aumento do pessimismo entre as classes trabalhadoras e o apoio crescente aos extremismos políticos.
Collier foca-se em “grandes divergências que ocorreram nas economias ocidentais e que são muito perigosas” depois dos anos de 1980, estimuladas por dois grandes processos económicos. O primeiro é o da inovação tecnológica. Apesar de todas estas inovações contribuírem para uma maior produtividade, elas exigem, em simultâneo, que os indivíduos adquiram educação superior e competências especializadas, o que deu origem a uma “escada rolante em ascensão” para as classes mais educadas e para a agregação de competências em grandes centros de conhecimento, o que, por sua vez, produz aglomerações cada vez maiores em cidades como Londres ou Nova Iorque (e tantas outras). O outro processo é, como seria de esperar, a globalização, a qual incentiva também uma escada rolante, mas em sentido descendente, para os trabalhadores sem educação académica e com poucas competências.
[quote_center]Ambos os espectros políticos têm a sua quota de culpa, com a esquerda a depositar uma fé excessiva no governo e a direita a fazer o mesmo com os mercados não regulados [/quote_center]
Apesar de considerar que, em termos económicos, a globalização é “positiva em média”, Collier defende que teriam sido necessárias políticas redistributivas que assegurassem que esta traria vantagens para todos e que tal simplesmente não aconteceu. Pelo contrário, esta mistura de processos económicos resultou num “padrão de vencedores e perdedores”, o qual conduziu a ganhos astronómicos para um conjunto de grandes cidades, nas quais “as elites educadas colhem uma quota de rendimentos cada vez maior”, ao mesmo tempo que gerou perdas gigantescas nas cidades e províncias mais pequenas para os que “não são educados” e, consequentemente, têm baixos rendimentos.
Para o autor, os líderes políticos nada fizeram para evitar estas realidades e a culpa tanto é da direita como da esquerda. Na direita, escreve, “os ideólogos e libertários promoveram a ganância e a procura de lucro sem propósito”, o que permitiu a acumulação de riqueza nas mãos de uns poucos, enquanto vastos grupos de pessoas viram-lhes ser negada a oportunidade de terem uma vida decente; na esquerda, os políticos reduziram os cidadãos a meros consumidores e “nenhum esforço foi feito para promover trabalho com significado para aqueles deixados para trás pela mudança tecnológica”. Ambos os espectros políticos têm a sua quota de culpa, com a esquerda a depositar uma fé excessiva no governo e a direita a fazer o mesmo com os mercados não regulados.
Tudo isto traduziu-se num período de décadas, onde os principais fundamentos da sociedade, o Estado-nação, a empresa e a família viram os seus papéis serem alterados ou reduzidos para o pior, escreve ainda.
O “homem social”, reciprocidade e dignidade
Revisitando Adam Smith, e em particular a sua famosa obra A Teoria dos Sentimentos Morais, Collier advoga também a substituição do conceito de “homem económico” pelo de “homem social”, enfatizando a necessidade da reciprocidade e da dignidade como valores cruciais. Para o autor, e graças aos efeitos do utilitarismo, o capitalismo perdeu valores e a sua capacidade para gerar prosperidade, o que resultou numa “sociedade Rotweiler”: “ a ansiedade, a raiva e o desespero despedaçaram as afinidades políticas das pessoas, a sua confiança nos governos e até a confiança entre si”, escreve também no livro. E com o seu enfoque impiedoso nos lucros em conjunto com a crescente distribuição desigual de rendimentos e de oportunidades, argumenta, “o capitalismo anglo-americano perdeu muita da sua legitimidade económica, política e moral”.
Como resultado, as divisões entre classes, cidades e países assumem-me como as grandes falhas do sistema capitalista e o autor sugere uma abordagem pragmática destes problemas, propondo um capitalismo ético, fundamentado em valores e moldado por um raciocínio prático, ao mesmo tempo que conceptualiza igualmente um “estado ético”, uma “empresa ética”, uma “família ética” e, por fim, um “mundo ético”, terminando o livro com uma discussão sobre como restaurar uma política inclusiva.
[quote_center]Collier propõe ainda um manifesto que reconheça um Estado activo, mas que abrace um papel mais modesto em conjunto com um mercado funcional, mas fundamentado num sentimento de propósito assegurado pela ética e filosofia de David Hume e Adam Smith[/quote_center]
Collier argumenta a favor de um restaurar intelectual da democracia social, construída sobre os fundamentos do pragmatismo e do comunitarismo. O pragmatismo assenta na ideia de que, e porque as sociedades mudam, não se devem esperar verdades eternas, sendo que a eficácia de uma política deverá ser julgada a partir da sua eficiência e não se está em conformidade com os princípios de uma ideologia. Adicionalmente, diz, o pragmatismo é, na sua origem, comunitarismo, na medida em que a função da moralidade é fazer corresponder as nossas acções aos valores da nossa comunidade e às especificidades do contexto em causa. Assim, enfatiza que a disponibilidade e vontade para ajudar os outros é o resultado da combinação de três narrativas: “uma pertença partilhada” a um grupo, “obrigações recíprocas” no interior desse mesmo grupo e uma ligação decorrente de uma acção para o bem-estar desse grupo que demonstre ter uma orientação para esse mesmo fim.
Collier propõe ainda um manifesto que reconheça um Estado activo, mas que abrace um papel mais modesto em conjunto com um mercado funcional, mas fundamentado num sentimento de propósito assegurado pela ética e filosofia de David Hume e Adam Smith. É neste seguimento que propõe a substituição do “homem económico” pelo “homem social”, sendo que este último se importa com o que os outros pensam dele e vê o utilitarismo para além do seu próprio consumo, ou seja, incluindo a estima pessoal construída sobre os fundamentos da “pertença partilhada”. O homem social, a seu ver, permite-nos compreender as pessoas e induz-nos a tomarmos conta delas ao mesmo tempo que avaliamos o seu carácter moral.
Reequilibrar o capitalismo
Ao menosprezar as políticas de esquerda e de direita, Collier propõe um “centro forte”, o qual, para ser criado, necessita de alterações nos mecanismos políticos. Por exemplo, a sua recomendação é que a selecção dos líderes dos partidos seja confinada aos representantes eleitos e não aos seus membros. A seu ver, os representantes eleitos são menos susceptíveis de escolher populistas carismáticos graças ao interesse que têm em apelar a um número alargado de eleitores, sendo que este interesse os empurrará também para a escolha de candidatos mais ao centro.
Em segundo lugar, propõe igualmente inverter as divergências entre as grandes metrópoles e as “cidades falhadas” – aquelas que não resistiram à competição global veiculada pelas forças da globalização. E, neste caso, e para reequilibrar o capitalismo, se não é possível “desagregar” os trabalhadores com elevadas competências que trabalham nestas metrópoles, por que não submeter o seu trabalho a uma carga fiscal mais pesada e redistribuir as receitas pelos trabalhadores que se encontram nas tais cidades falhadas e áreas menos desenvolvidas? Da mesma forma, e porque vivemos numa economia global em que “ vencedor leva tudo”, escreve que “nessas indústrias onde ser o maior passou a implicar ser o mais produtivo, como a Amazon, existe espaço para taxas diferenciadoras de impostos sobre as empresas de acordo com a sua dimensão”. Esta proposta iria “não desencorajar as economias de escala, mas capturar alguns ganhos para a sociedade”, acrescenta ainda.
[quote_center]No que respeita a estreitar o fosso entre os trabalhadores com elevadas competências e os seus pares sem formação ou especialização académica, a proposta é de um “maternalismo social” e o refrear de comportamentos predatórios dos primeiros[/quote_center]
Adicionalmente, e para resolver a divisão entre “metrópoles e província”, por que não encorajar as grandes tecnológicas a deslocalizarem as suas operações para as cidades mais pequenas? Neste caso em particular, incentivos sob a forma de impostos mais baixos fariam sentido, na medida em que dar início a uma nova aglomeração numa cidade que, caso contrário não a teria, aumentaria significativamente as suas perspectivas económicas. O economista é ainda a favor de políticas mais severas no que respeita às práticas monopolistas e aos ordenados mínimos e máximos e propõe também o acesso ao financiamento através de bancos de desenvolvimento locais, em conjunto com o desenvolvimento de relacionamentos mutuamente benéficos entre as universidades e as indústrias locais.
Já no que respeita a estreitar o fosso entre os trabalhadores com elevadas competências e os seus pares sem formação ou especialização académica, a proposta é de um “maternalismo social” e o refrear de comportamentos predatórios dos primeiros. Este maternalismo social – que se traduz num assistência prática intensiva, na mentoria em detrimento da monitorização e na cooperação com ONG – em vez do paternalismo social servirá, aos seus olhos, para oferecer mais aos menos educados, em conjunto com políticas fiscais mais duras em sectores como por exemplo o da gestão de activos. Neste mesmo âmbito, e ao abordar a divisão entre classes, o economista e professor advoga a existência de políticas públicas específicas para as famílias mais vulneráveis, com apoios sociais desde a altura do nascimento e defende igualmente a aposta na educação e formação vocacional técnica de elevada qualidade no lugar da formação “cognitiva” realizada na maioria das universidades.
Já a divisão entre as nações necessita, para ser invertida, de organizações internacionais que consigam construir obrigações recíprocas (propõe maior poder, por exemplo, para a União Europeia e para a NATO), na medida em que as organizações supra-nacionais perderam a sua capacidade de criar estas mesmas obrigações recíprocas.
Como restaurar a ética nas entidades societais
Restaurar a ética nos mercados é também uma necessidade, a qual envolve quatro entidades societais: o estado, a empresa, a família e o mundo. Para o autor, a ausência actual de um propósito ético no estado reflecte um declínio moral em toda a sociedade, com muitas pessoas a serem cada vez menos generosas com os menos afortunados, sendo que a sua receita não é a de instalar “valores nacionais”, mas sim cultivar um sentimento de “pertença a um lugar”.
Ao nível da empresa, Collier argumenta que a ideia prevalecente de que o seu único propósito é o de gerar lucros, tendo em conta o primado do accionista, precisa de dar lugar a uma nova forma de pensamento sobre corporate governance, que explicitamente reconheça que as decisões dos conselhos de administração são importantes para a sociedade no seu todo. Assim, e para além da recomendação acima citada de se taxar as empresas de acordo com a sua dimensão, advoga também leis que exijam a consideração devida do interesse público por parte de todos os seus membros, em conjunto com a presença de representantes legais dos interesses dos trabalhadores nos próprios conselhos de administração. Finalmente, e enquanto considera que o papel do Estado enquanto regulador é necessário, o autor argumenta que o policiamento do interesse público da empresa deverá ser tarefa de “cidadãos éticos” informados.
[quote_center]A ausência actual de um propósito ético no estado reflecte um declínio moral em toda a sociedade, com muitas pessoas a serem cada vez menos generosas com os menos afortunados[/quote_center]
Também a “família ética” é tida em consideração nas propostas de Collier, argumentando que esta consiste na unidade natural para a criação do sentimento de pertença, considerando, no entanto, que a estrutura familiar vigente se encontra “cercada”, com o casamento e a educação das crianças a divergir significativamente entre os “mais educados e os menos”. Citando dados de 2010, que concluíram que a taxa de divórcios é de um em cada três para as famílias com menos níveis académicos e de um em cada seis para as “mais educadas”, Collier afirma que estamos perante uma desintegração das famílias [as primeiras], o que obriga a que o estado seja mais “paternalista” na educação das suas crianças. O seu antídoto para este fenómeno é pensar que, apesar do número decrescente de crianças ter reduzido a dimensão das famílias, a sua longevidade aumentou. E esta longevidade permite que “os patriarcas e as matriarcas” possam ajudar “regenerando a força que permite policiar as obrigações da família ética extensa”.
Por seu turno, e para restaurar o “mundo ético”, o professor de economia acredita que será crucial a existência de um “clube” multi-propósitos, que reflicta as realidades do actual poder económico e militar. Propõe ainda um G6, que inclua a China, a Índia, os Estados Unidos, a União Europeia, a Rússia e o Japão, que possa ajudar a “consertar” os problemas globais, de que são exemplo as alterações climáticas, as pandemias e os estados fracassados. Apesar de ter noção de que serão necessários vários anos para a formação deste clube, considera que a sua eficácia futura será superior aos acordos internacionais existentes como o G20 ou o G7.
Este trabalho de Paul Collier tem vindo a granjear-lhe tantos elogios quanto críticas. Para alguns, as suas propostas são por demais conservadoras, para outras, a receita certa para curar os males do capitalismo. Todavia, e como escreve, “o que aconteceu recentemente não é intrínseco ao capitalismo”. E, acrescenta, é antes “uma disfunção nociva a qual tem de ser corrigida”.
Editora Executiva