POR GABRIELA COSTA
O novo programa de financiamento a projectos da sociedade civil, no quadro do Active Citizens Fund/EEA Grants, é dotado com 11 milhões de euros de recursos públicos da Noruega, Islândia e Liechtenstein e irá desenvolver-se ao longo de sete anos, no período 2018-2024. Com o objectivo de reforçar a cidadania activa e capacitar as organizações sociais, os apoios serão concedidos mediante concursos a lançar anualmente, incidindo também sobre projectos de cooperação com entidades dos três países financiadores e dos restantes 14 países beneficiários dos EEA Grants.
Como explica, em entrevista ao VER, o director da Fundação Calouste Gulbenkian, Luís Madureira Pires, depois do enfoque dado aos domínios da promoção dos valores democráticos e do apoio à empregabilidade e inclusão de jovens pelo Programa Cidadania Activa, a prioridade – num contexto em que há pouca participação em processos cívicos e democráticos, persistem as desigualdades sociais, e as entidades do terceiro sector carecem ainda de sustentabilidade financeira e de capacidade técnica e organizacional – é actuar sobre democracia, participação cívica e transparência; direitos humanos, igualdade de tratamento e não discriminação; justiça social e inclusão de grupos vulneráveis; e eficácia na acção e sustentabilidade das ONG. Desenvolvendo uma proposta que esteja “em sintonia com o que as organizações consideram ser as suas principais necessidades”, como “o planeamento estratégico e a avaliação de resultados”, pelo que, e a par dos jovens como público-alvo, “a ênfase na capacitação das ONG permanecerá uma das principais características do Programa Cidadãos Ativos”.
Que balanço faz dos quatro anos de actuação do Programa Cidadania Ativa (2013-2016) ao nível de projectos apoiados, Organizações Não Governamentais e demais organizações envolvidas, montante dos apoios e número de pessoas beneficiadas?
O Programa excedeu as expectativas iniciais, tendo apoiado um total de 113 projectos de iniciativa de ONG. Estiveram formalmente envolvidas na implementação destes projectos 156 ONG e 88 outras organizações públicas e privadas, enquanto muitas mais ONG foram envolvidas como beneficiárias, e em particular, através de capacitação e formação em áreas necessárias para as suas actividades. Estima-se em 81 200 o número total de beneficiários directos, mais de metade dos quais jovens até aos 30 anos.
[quote_center]O Programa Cidadania Ativa contribuiu para facilitar a transferência de conhecimento entre organizações e para fomentar a cooperação entre organizações[/quote_center]
O montante total de apoios pagos atingiu 7 milhões de euros, correspondendo a cerca de 95% dos recursos disponibilizados pelos países financiadores dos EEA Grants – Noruega, Islândia e Liechtenstein. A Fundação Gulbenkian procurou ainda alavancar estes resultados de diversas formas, incluindo a aprovação de projectos em overbookinge o financiamento, com os seus recursos próprios, de algumas das candidaturas apresentadas aos concursos do Programa.
Face a esses resultados, que impactos teve o Programa Cidadania Ativa no tecido social português, enquanto instrumento de apoio às ONG?
Nos anos em que foram lançados concursos, 2013 e 2014, o Programa foi o instrumento de apoio especificamente dirigido a ONG com maior montante de apoios aprovados – 3,0 e 4,8 milhões de euros, respectivamente. Cerca de 70% dos projectos realizados enquadram-se em tipologias directamente relacionadas com a produção de efeitos na melhoria das condições de vida e bem-estar dos destinatários, e em particular, através da promoção dos direitos humanos e do combate às discriminações, da inclusão social de grupos mais desfavorecidos da população, e da realização de iniciativas visando facilitar o acesso dos jovens ao mercado de trabalho.
É destacado no estudo de avaliação final do Programa que os projectos nos domínios da promoção dos valores democráticos e do apoio à empregabilidade e inclusão de jovens foram os que tiveram mais relevância directa no tecido social, sendo que mais de 65% dos apoios foram focalizados nesses dois domínios.
O Programa apoiou projectos para os quais nem sempre é possível encontrar uma alternativa de financiamento público, mas que têm uma extraordinária relevância, como sejam por exemplo a sensibilização para as questões da cidadania, dos valores democráticos, dos direitos humanos e do combate às várias formas de discriminação.
[quote_center]Cerca de 70% dos projectos realizados promoveram os direitos humanos e o combate às discriminações, a inclusão social e o acesso dos jovens ao mercado de trabalho[/quote_center]
Importa ainda lembrar que no momento da implementação do Programa estávamos em plena crise económica, com todas as consequências que isso trouxe ao tecido social português. Por exemplo, a taxa de desemprego jovem atingiu os 40% no pico da crise. Os projectos apoiados permitiram desenvolver atitudes pró-activas entre os jovens na procura do seu percurso profissional, melhorar as suas competências pessoais e sociais e promover o sentido de autonomia. Para além disso, estes projectos constituíram uma oportunidade de desenvolvimento de parcerias com novos actores e uma experiência importante e potencialmente replicável para as ONG que estiveram envolvidas na sua implementação.
Outro grande enfoque do Programa foi a capacitação técnica e organizacional das ONG, uma área onde é essencial investir para que o sector possa actuar com um nível de eficácia mais elevado. Além dos apoios pagos a projectos nesta área, cerca de 24% do total, foi ainda realizado pela Universidade Católica, por iniciativa do Programa, um estudo de diagnóstico das ONG, que elencou as principais necessidades nesta área. Cerca de cem ONG e 9 mil pessoas receberam formação no âmbito dos projectos apoiados neste domínio.
Por último, o Programa contribuiu para que as ONG reforcem o seu papel nos processos de tomada de decisão pública em Portugal e na realização de actividades e prestação de serviços em parceria com as autoridades públicas, sendo certo que as ONG têm demonstrado capacidade para providenciar serviços que complementam ou aumentam as respostas dadas pelos serviços públicos às necessidades do tecido social português.
Quais foram as grandes “lições aprendidas” no que respeita ao fortalecimento da sociedade civil portuguesa, ou seja, de que modo contribuiu este programa para colmatar as suas principais fragilidades?
Por um lado, foram validadas as principais prioridades propostas pela Gulbenkian em 2013, o que se reflectiu na elevada relevância das candidaturas apresentadas a apoio. Importa referir que os programas congéneres no resto da Europa não tiveram, regra geral, um enfoque tão acentuado nos projectos ligados aos valores democráticos/direitos humanos e na capacitação das ONG. A aposta em temáticas diferenciadoras, para as quais as ONG dificilmente encontram fontes alternativas de financiamento, em muito contribuiu para a relevância do Programa.
[quote_center]As ONG têm demonstrado capacidade para providenciar serviços que aumentam as respostas dadas pelos serviços públicos às necessidades do tecido social[/quote_center]
O Programa contribuiu inquestionavelmente para a melhoria das competências técnicas dos recursos humanos e dos procedimentos de gestão das organizações participantes nos projectos; no entanto, verifica-se que existem vários problemas ao nível da capacitação das ONG que carecem ainda de significativo investimento, como sejam a sua sustentabilidade financeira de longo prazo, o reforço das suas competências técnicas e organizacionais e a sua capacidade de participação nos processos públicos de decisão. O estudo realizado pela Universidade Católica expandiu o conhecimento existente acerca do sector e será uma importante ferramenta para orientar o investimento a realizar ao nível da capacitação no próximo período dos EEA Grants. Algumas das principais preocupações para o próximo período, como o planeamento estratégico e a avaliação de resultados, decorrem quer da experiência adquirida com o Programa Cidadania Ativa quer do estudo da Universidade Católica.
O Programa contribuiu para consolidar condições facilitadoras da transferência de conhecimento entre organizações e da replicação de projectos e teve um contributo relevante para fomentar a cooperação entre organizações, através de práticas que importa reter para o futuro, como a obrigatoriedade de estabelecimento de parcerias para a implementação dos grandes projectos.
A cooperação bilateral com as entidades da Noruega, Islândia e Liechtenstein revelou-se bastante frutuosa, constituindo importantes oportunidades de aprendizagem, sobretudo para as ONG portuguesas e/ou alavancando os resultados alcançados por alguns dos projectos apoiados. Verificou-se, no entanto, que as ONG portuguesas tiveram dificuldade em efectivamente encontrarem parceiros, quer pelas suas próprias limitações técnicas quer pelo número insuficiente de entidades disponíveis para a cooperação por parte dos países financiadores, e isto não obstante o acesso a financiamento ser mais fácil no caso da existência de uma parceria com entidades destes países. A lição aprendida é que será necessário um maior enfoque na cooperação bilateral.
[quote_center]Será necessário um maior enfoque na cooperação bilateral[/quote_center]
Outra importante lição aprendida foi a necessidade de ir ao encontro das ONG localizadas fora das principais áreas metropolitanas, com medidas específicas de discriminação positiva. Verificou-se uma excessiva concentração de candidaturas apresentadas e de projectos apoiados nas áreas metropolitanas, mesmo comparada com a distribuição geográfica das ONG pelo território nacional. Da mesma forma, verificou-se que certos tipos de ONG ficaram sub-representados no conjunto de projectos apoiados, carecendo do mesmo tipo de medidas.
Que conclusões se podem retirar dos resultados da consulta online às Organizações do Terceiro Sector apresentada em Janeiro, e de que modo os contributos reunidos neste documento permitirão ajustar as linhas orientadoras do novo Programa apoiado pelo Active Citizens Fund/ EEA Grants?
Esta consulta auscultou a sociedade civil relativamente à proposta da Fundação Gulbenkian e da Fundação Bissaya Barreto para o próximo período de programação, e a principal conclusão foi de que esta proposta está em sintonia com o que muitas das organizações consideram ser as principais prioridades e necessidades.
O objectivo da consulta foi a discussão dos grandes desafios com relevância para o Programa que se apresentam hoje à sociedade civil em Portugal, e as melhores formas como o Programa poderá ajudar a responder aos mesmos. Relativamente à consulta online, foram recolhidas e analisadas 165 respostas, tendo-se realizado no final do mês um workshop de um dia com o mesmo objectivo, em que participaram 34 representantes dos vários sectores da sociedade civil.
[quote_center]É necessário ir ao encontro das ONG localizadas fora das principais áreas metropolitanas, com medidas específicas de discriminação positiva[/quote_center]
Ainda que tenha havido bom acolhimento relativamente às propostas feitas pelo novo Programa, foram recolhidos elementos úteis relativos às principais preocupações e expectativas da sociedade civil, aprofundada a análise relativa aos desafios a abordar, e identificadas algumas soluções a considerar no desenho dos concursos nestes próximos anos.
Quais são as perspectivas para o novo Programa, ao nível da dotação de 11 milhões de euros a projectos sociais, do ajustamento do programa às necessidades das ONG e dos concursos a lançar em 2018?
Estima-se que a dotação de 11 milhões de euros vá permitir apoiar um total de cerca de 150-160 projectos, repartidos entre as quatro áreas do Programa:democracia, participação cívica e transparência; direitos humanos, igualdade de tratamento e não discriminação; justiça social e inclusão de grupos vulneráveis; e eficácia na acção e sustentabilidade das ONG. Serão lançados concursos todos os anos entre 2018 e 2022, que na maioria dos casos abrangerão todas as áreas.
Geralmente estes concursos estão organizados por grandes ou pequenos projectos, com durações e dimensões financeiras um pouco superiores ao do Programa Cidadania Ativa. A taxa de comparticipação dos projectos manter-se-á, em regra, nos 90%. Aquando do lançamento de cada concurso serão conhecidas as suas especificidades, designadamente os critérios de avaliação e respectivos pesos.
[quote_center]A taxa de comparticipação dos projectos manter-se-á, em regra, nos 90%[/quote_center]
Tal como no período anterior, é possível e encorajada a apresentação de candidaturas que incluam entidades dos países financiadores como parceiros do projecto, mantendo-se também a possibilidade de implementar pequenos projectos designados Iniciativas de Cooperação Bilateral. O concurso para este tipo de projectos manter-se-á aberto ao longo do Programa. Existirá ainda a possibilidade de participar em Iniciativas Regionais de Cooperação com entidades dos outros países beneficiários dos EEA Grants, com contornos a anunciar oportunamente.
Da consulta à sociedade civil resultaram ajustamentos às tipologias de projecto apoiáveis em cada domínio, de forma a adequar o programa às necessidades das ONG.
Não existe ainda data marcada para a abertura dos primeiros concursos do Programa, dado que as negociações estão ainda a decorrer; no entanto, perspectiva-se que o lançamento possa acontecer em Junho ou Setembro.
No actual contexto português, e a médio prazo, qual é a relevância das quatro áreas prioritárias de intervenção em que serão apoiados os projectos?
Como referido, o fortalecimento da sociedade civil através das quatro áreas do Programa permitirá responder às necessidades identificadas pela Fundação Gulbenkian e pela Fundação Bissaya Barreto, e confirmadas pelo próprio processo de consulta à sociedade.
A selecção destas quatro áreas decorre, por um lado, do conhecimento e da experiência destas Fundações com a sociedade civil ao longo de décadas, enriquecido pela gestão do anterior Programa pela Gulbenkian; e, por outro lado, da análise feita ao sector no âmbito da preparação da candidatura das Fundações à gestão deste novo programa, e que se baseou em variados estudos de organizações internacionais como a OCDE, a Agência Europeia dos Direitos Fundamentais, o Eurobarómetro, o Instituto Europeu da Igualdade de Género; bem como de organizações nacionais como a Universidade Católica, o Instituto Nacional de Estatística, o Alto-Comissariado para as Migrações, etc.
[quote_center]O lançamento dos primeiros concursos do Programa perspectiva-se para Junho ou Setembro[/quote_center]
Verifica-se desde logo que o envolvimento cívico em Portugal é dos mais baixos em toda a Europa, o que se reflecte em variadas vertentes, desde a participação em actividades de voluntariado ao interesse na política e à participação nos processos eleitorais vitais para a democracia. Existem, pois, bons motivos para que o novo Programa apoie projectos que visem contrariar este estado de coisas, por um lado, e dêem uma voz mais forte aos cidadãos e à sociedade civil nos processos de decisão pública.
Além disso, diversos desafios no domínio dos direitos humanos continuam a exigir o empenho de toda a sociedade. Registam-se, nomeadamente, situações preocupantes de discriminação contra variados grupos, como as pessoas de etnia cigana, as pessoas LGBTI, os imigrantes, e muitas outras. Falta dar também grandes passos no sentido de se alcançar uma verdadeira igualdade de género; de prevenir e combater a violência de género, etc.
Por outro lado, o apoio às pessoas em situação de vulnerabilidade continua a ser crucial, e ainda mais desde a última crise económica. No momento actual, ao comparar os indicadores económicos relevantes face ao resto da Europa (taxa de desemprego, taxa de risco de pobreza, etc.), verifica-se que a situação em Portugal carece de intervenção, e a sociedade civil está mobilizada para a tarefa.
Por último, a maioria das ONG têm carências significativas em termos de capacidade técnica e organizacional que em muito limitam a sua sustentabilidade e eficácia de acção. Este problema, já bem conhecido, foi analisado a fundo pelo estudo da Universidade Católica, tal como já referido. A ênfase na capacitação das ONG permanecerá pois, à semelhança do período anterior, uma das principais características do Programa.
Falta ainda fazer duas referências quanto à relevância do Programa. A primeira é o destaque dado aos jovens, um grupo que experiencia muitos dos problemas referidos acima com maior severidade – este será considerado o principal público-alvo do Programa, à semelhança do anterior. A segunda referência é uma novidade: uma das principais preocupações deste novo Programa será o apoio a projectos localizados fora das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, e a projectos de grupos-alvo com particulares dificuldades em aceder a fontes de financiamento público.
Jornalista